quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Ao respeitável público





São Paulo, 1934.

Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, não tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Chegou meu dia. Que bela tarde para não se escrever!

Esse calor que arrasa tudo; esse Carnaval que está perto, que aí vem no fim da semana; esses jornais lidos e relidos na minha mesa, sem nada interessante; esse cigarro que fumo sem prazer; essas cartas na gaveta onde ninguém me conta nada que possa me fazer mal ou bem; essa perspectiva morna do dia de amanhã; essa lembrança aborrecida do dia de ontem; e outra vez, e sempre, esse calor, esse calor, esse calor…

Portanto, meu distinto leito, portanto, minha encantadora leitora, queiram ter a fineza de retirar os olhos dessa coluna. Não leiam mais. Fiquem sabendo que eu secretamente os odeio a todos, que vocês todos são pessoas aborrecidas e irritantes; que eu desejo sinceramente que todos tenham um péssimo Carnaval, uma horrível quaresma, um infelicíssimo ano de 1934, uma vida toda atrapalhada, uma morte estúpida!

Aproveitem este meu momento de sinceridade e não se iludam com o que eu disser amanhã ou depois, com a minha habitual falta de vergonha. Saibam que o desejo mais sagrado que tenho no peito é mandar vocês todos simplesmente às favas, sem delicadeza nenhuma.

Porque ousam gostar ou aborrecer o que escrevo? O que têm comigo? Acaso me conhecem, sabem alguma coisa de meus problemas, de minha vida? Então, pelo amor de Deus, desapareçam desta coluna. Este jornal tem dezenas de milhares de leitores; porque é que no meio de tanta gente vocês e só vocês, resolveram ler o que escrevo? O jornal é grande, senhorita, é imenso, cavalheiro, tem crimes, tem esporte, tem política, tem cinema, tem uma infinidade de coisas. Aqui, nesta coluna, eu nunca lhes direi nada, mas nada de nada, que sirva para o que quer que seja. E não direi porque não quero; porque não me interessa; porque vocês não me agradam; porque eu os detesto.

Portanto, se a senhorita é bastante teimosa, se o cavalheiro é bastante cabeçudo para me ter lido até aqui, pensem um pouco, sejam bem educados e dêem o fora. Eu faço votos para que vocês todos amanheçam amanhã atacados de febre amarela ou de tifo exantemático. Se houvesse micróbios que eu pudesse lhes transmitir assim, através do jornal, pelos olhos, fiquem sabendo que hoje eu lhes mandaria as piores doenças: tracoma, por exemplo.

Mas ainda insistem? Ah, se eu pudesse escrever aqui alguns insultos e adjetivos que tenho no bico da pena! Eu lhes garanto que não são palavras nada amáveis; são dessas que ofendem toda a família. Mas não posso e não devo. Eu tenho de suportar vocês diariamente, sem descanso e sem remédio. Vocês podem virar a página, podem fugir de mim quando entendem. Eu tenho que estar aqui todo dia, exposto a curiosidade estúpida ou à indiferença humilhante de dezenas de milhares de pessoas.

Fiquem sabendo que eu hoje tinha assunto e os recusei todos. Eu poderia, se quisesse, neste momento, escrever duzentas crônicas engraçadinhas ou tristes, boas ou imbecis, úteis ou inúteis, interessantes ou cacetes. Assunto não falta, porque eu me acostumei a aproveitar qualquer assunto. Mas eu quero hoje precisamente falar claro a vocês todos. Eu quero, pelo menos hoje, dizer o que sinto todo dia: dizer que se eu os aborreço, vocês me aborrecem terrivelmente mais.

Amanhã eu posso voltar bonzinho, manso, jeitoso; posso falar bem de todo mundo, até do governo, até da polícia. Saibam desde já que eu farei isto porque sou cretino por profissão; mas que com todas as forças da alma eu desejo que vocês todos morram de erisipela ou de peste bubônica. Até amanhã. Passem mal.

Rubem Braga



Sobre o autor


Rubem Braga, (1913-1990) foi um escritor e jornalista brasileiro. Tornou-se famoso como cronista de jornais e revistas de grande circulação no país. Foi correspondente de guerra na Itália e Embaixador do Brasil em Marrocos.

Rubem Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, no dia 12 de janeiro de 1913. Seu pai, Francisco Carvalho Braga era proprietário do jornal Correio do Sul. Iniciou seus estudos em sua cidade natal. Mudou-se para Niterói, Rio de Janeiro, onde concluiu o ginásio no Colégio Salesiano.


J Estanislau Filho

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Bichos




Aranha assanha
Formiga amiga
Cupim no capim
Carrapato no pasto
Grudado em mim...



Escorpião espião de baratas
Coisa chata
Besouro benzadeus
Louva-deus adeus
Canarinhos fazem ninhos
Maritacas algazarras nas estacas...



Mariposa que coisa
Percevejo não vejo
Pulgões fujões
Gafanhoto bicho maroto
Joaninhas que gracinhas!
O elefante um gigante
O boi? Já se foi...



Pardais nos fios desafiam
Andorinhas de déu em déu
Urubus voam no céu
Bem-te-vi não te viu
Beija-flor não veio...



Raul se distraiu com o relâmpago
E dormiu quando a chuva começou

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Lula: eu não vim para brigar, vim para lutar





Eu sei que vou viver uma vida de muita luta daqui pra frente. Mas quem sabe que é inocente não tem medo de brigar.

Lembro de quando cheguei na prisão e pediram pra eu tirar meus cadarços. Eu respondi que não ia me matar. Eu tinha uma força interior e sabia que sairia daquilo mais forte.

Vou vencer cada processo contra mim desmascarando a mentira deles. Minha inocência está provada nos autos do processo. Eles não tem provas, o que eles têm é uma tese: a de que o Lula não pode ficar solto.

Eu espero que se forme uma maioria no Congresso que entenda que não se pode mudar a Constituição de acordo com a conjuntura. A vida do Lula é passageira, a vida do país é eterna.

Eles tem que saber que democracia não é um pacto de silêncio. O governante precisa tirar a cera do ouvido e ouvir. Eu ouvia. Só não ouvia o Bolsonaro porque ele tava quieto os 8 anos do meu governo. Porque ele devia gostar. Ele sabe como investi nas Forças Armadas.

Eu participo da política desde 1975 e vocês nunca me viram incitando quebra quebra. Essa gente se ver o povo na rua fazendo procissão carregando vela vai dizer que a Igreja Católica tá querendo botar fogo no país. O povo tem direito de se manifestar.

Não sei se o Bolsonaro e o Guedes vão ler isso. Mas queria dizer uma coisa. Existem duas palavras pra ter uma economia sólida: credibilidade e previsibilidade. Esse governo não tem nenhuma das duas. Que investidor estrangeiro que vai querer investir no Brasil hoje?

Eu quero conversar com muita gente. Quero ouvir o que os economistas tem a dizer. Quero ver esse país voltar a sorrir. E você que é bolsonarista: o Lula não veio brigar. Eu quero fazer política de alto nível. Quem quiser brigar vai brigar sozinho.


terça-feira, 26 de novembro de 2019

Orifício





                 No orifício
            Oficio
          Meu ócio

      Sócios em lençóis
                 Macios
    Onde não se faz negócios


    É no orifício
    Que inicio roçar os lábios
    Labirinto indócil

    Em que estou ora sim ora não
    Por um fio de cabelo
    Nesse orifício que me leva do topo ao precipício


   J Estanislau Filho




Obs.: poema que integra meu livro Estrelas - página 59

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

amar de todas as maneiras



amo o amor que fica
amo o amor que parte
o amor que edifica
amor que reparte
pão e poesia

amor que se identifica
com a magia da arte
e em tudo se aplica
na vida ou na morte
na tristeza e n'alegria

amo o pássaro no ninho
cuidando com carinho
do filho que vai nascer
amo a terna companheira
que zela pelo bem-querer

amor que não discrimina
prepara o amanhã
de paz e gotas de chuva
de sol que se assanha
por uma lua tamanha

J Estanislau Filho



                           Imagens: jef

sábado, 23 de novembro de 2019

Pronunciamento Oficial de Lula ao PT




23 de novembro de 2019

Companheiras e companheiros do PT,

Convidados de todo o Brasil e de outros países,

Minhas amigas, meus amigos,

Esperei muito tempo para poder falar livremente ao povo brasileiro. Esse dia finalmente chegou, e minha primeira palavra tem de ser de agradecimento, pela solidariedade, pelo carinho e pelas manifestações de quem não desistiu de lutar e vai continuar lutando pela verdadeira justiça.

Durante 580 dias fui isolado da família, dos amigos e companheiros, apartado do povo, mesmo tendo o direito constitucional de recorrer em liberdade contra a sentença injusta e fraudulenta de um juiz parcial. Um direito que somente agora foi proclamado pelo Supremo Tribunal Federal, para todos, sem exceção.

Com as armas da verdade e da lei, continuarei lutando para que os tribunais reconheçam, agora, que fui condenado por quem sequer poderia ter me julgado: um ex-juiz que atuou fora da lei, grampeou advogados, mentiu ao país e aos tribunais, antes de desnudar seus objetivos políticos. Lutarei para que seja anulada a sentença e me deem o julgamento justo que não tive.

Aos 74 anos de idade, não tenho no coração lugar para ódio e rancor. Mas quem nesse país já sofreu a humilhação de uma acusação falsa, por causa da cor de sua pele ou por sua origem social humilde, conhece o peso do preconceito e é capaz de sentir o quanto fui ferido em minha dignidade. E isso não se apaga.

Nada nem ninguém vai devolver o pedaço arrancado da minha existência, mas quero dizer que aproveitei esses 580 dias para ler, estudar, refletir e reforçar meu compromisso com o Brasil e com nosso povo sofrido. Voltei com muita vontade de falar sobre o presente e principalmente sobre o futuro do Brasil.

Mas logo depois da minha primeira fala, de volta ao sindicato onde passei o último momento de liberdade, disseram que eu deveria ter cuidado para não polarizar o país. Que seria melhor calar certas verdades para não tumultuar o ambiente político, para o PT não provocar uma ameaça à democracia.

Vamos deixar uma coisa bem clara: se existe um partido identificado com a democracia no Brasil é o Partido dos Trabalhadores. O PT nasceu lutando pela liberdade durante a ditadura. Não tentem negar essa verdade porque nós apanhamos da repressão, fomos perseguidos, presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional por defender essa ideia.

Desde que foi criado, há quase 40 anos, o PT disputou dentro da lei e pacificamente todas as eleições neste país. Quando perdemos, aceitamos o resultado e fizemos oposição, como determinaram as urnas. Quando vencemos, governamos com diálogo social, participação popular e respeito às instituições.

Outros partidos mudaram as regras da reeleição em benefício próprio. Nós rejeitamos essa ideia, mesmo gozando de uma aprovação que nenhum outro governo jamais teve, porque sempre entendemos que não se pode brincar com a democracia.

Não fomos nós que falamos em fechar o Congresso, muito menos o Supremo, com um cabo e um soldado. Em nossos governos, as Forças Armadas foram respeitadas e os chefes militares respeitaram as instituições, cumprindo estritamente o papel que a Constituição lhes reserva. Nenhum general deu murro na mesa nem esbravejou contra líderes políticos.

Não fomos nós que pedimos anulação do pleito só para desgastar o partido vencedor; que sabotamos a economia do país para forçar um impeachment sem crime; que sustentamos uma farsa judicial e midiática para tirar do páreo o candidato líder nas pesquisas.

Não fomos nós os responsáveis, ativos ou omissos, pela eleição de um candidato que tem ojeriza à democracia; que foi poupado de enfrentar o debate de propostas, que montou uma indústria de mentiras com dinheiro sujo, sob a complacência da mesma Justiça Eleitoral que, desacatando uma decisão da ONU, cassou o candidato que poderia derrotá-lo.

São essas pessoas que agora nos dizem para não polarizar o país. Como se polarização fosse sinônimo de extremismo político e ideológico. Como se o Brasil já não estivesse há séculos polarizado entre os poucos que têm tudo e os muitos que nada têm. Como se fosse possível não se opor a um governo de destruição do país, dos direitos, da liberdade e até da civilização.

Aos que criticam ou temem a polarização, temos que ter a coragem de dizer: nós somos, sim, o oposto de Bolsonaro. Não dá para ficar em cima do muro ou no meio do caminho: somos e seremos oposição a esse governo de extrema-direita que gera desemprego e exige que os desempregados paguem a conta.

Somos e seremos oposição a um governo que rasga direitos dos trabalhadores e reduz o valor real do salário mínimo. Que aumenta a extrema pobreza e traz de volta o flagelo da fome. Que destrói o meio ambiente. Que ataca mulheres, negros, indígenas e a população LGBT; ataca qualquer um que ouse discordar.

Somos, sim, radicais na defesa da soberania nacional, da universidade pública e gratuita, do Sistema Único de Saúde, público, gratuito e universal. Nós não somos meia oposição; somos oposição e meia aos inimigos da educação, da cultura, da ciência e da tecnologia. Nós não aceitamos mais censura, tortura, AI-5 e perseguição a adversários políticos.

Andam negando essa verdade científica, mas a Terra é redonda e nós estamos, sim, em polos opostos: enquanto eles semeiam o ódio, nós vamos mostrar a eles o que o amor é capaz de fazer por este país.

Companheiras e companheiros,

Já foi dito que o PT nasceu para mudar o Brasil. E mudou. Porque trazemos na origem o compromisso com os trabalhadores, com os mais pobres, com os que carregaram ao longo de séculos o peso da exclusão e da desigualdade. Porque pela primeira vez fizemos um governo para todos os brasileiros e brasileiras, e isso fez toda a diferença em nosso país.

Se fosse para governar apenas para uma parte da população, o Brasil não precisaria do PT.

Para o mercado decidir quem pode e quem não pode se aposentar, quanto vai custar o gás de cozinha, o combustível, a energia elétrica, visando somente o lucro, o Brasil não precisaria do PT.

Se fosse para entregar ao estrangeiro as riquezas naturais, o petróleo, as águas, as empresas que o povo brasileiro construiu, o Brasil não precisaria do PT.

Se fosse para queimar a floresta, envenenar a comida com agrotóxicos, deixar impunes crimes como os de Marielle, Mariana, Brumadinho, ignorar desastres como o óleo no litoral do Nordeste, quem precisaria do PT?

Para o filho do rico estudar nas melhores universidades do mundo e o filho do trabalhador ter de largar a escola pra sustentar a família, o Brasil não precisaria do PT.

Se é para alguns terem mansão em Miami e muitos viverem debaixo do viaduto; para o rico ficar isento até do imposto de herança e o trabalhador carregar o peso do imposto de renda, o Brasil não precisaria do PT.

Para manter a mais escandalosa concentração de renda do planeta Terra, para o rico continuar cada vez mais rico e o pobre ficar cada dia mais pobre, aí mesmo é que o Brasil não precisaria do PT.

Porque o maior inimigo do Brasil hoje e desde sempre é a desigualdade, esse vergonhoso fosso em que 1% da população detém 30% da renda nacional e para a metade mais pobre sobram 17%, as migalhas de um banquete indecente.

Mas se este país quer superar a chaga imensa da desigualdade, recuperar a soberania e o seu lugar no mundo, se quer voltar a crescer em benefício de todos os brasileiros e brasileiras, o Partido dos Trabalhadores é mais do que necessário: ele é imprescindível.

Esta é a enorme responsabilidade que estamos recebendo. O Brasil nunca precisou tanto do PT. E o PT tem de ser grande o bastante para corresponder ao que o país espera de nós. Tem de estar unido, forte e cada vez mais conectado com o povo brasileiro.

Temos a responsabilidade de renovar o partido, compreender o que mudou na sociedade brasileira nesses 40 anos e buscar as respostas para os novos desafios. Fomos forjados na luta em defesa da classe trabalhadora.

O peso da injustiça recai hoje sobre os motoristas de aplicativos, os jovens que perdem a saúde e arriscam a vida fazendo entregas em motos, bicicletas, ou mesmo a pé. Os que não têm a quem recorrer por seus direitos, porque a única relação de trabalho que conhecem não é a carteira profissional, mas um telefone celular que ele precisa recarregar desesperadamente.

Esse é o lugar que resta aos deserdados de um modelo neoliberal excludente, cada vez mais desumano. Um mundo em que o mercado é deus e em que a solidariedade deixa de ser um valor universal, substituída por uma competição individualista feroz.

É com esse mundo novo que o PT precisa dialogar, sem abrir mão de nossos compromissos históricos, mantendo os pés firmes no presente e mirando sempre o futuro. Se as formas de exploração mudaram, a injustiça e a desigualdade permanecem e são cada vez mais cruéis. Temos de estar mais organizados, mais fortes, conscientes e mais decididos do que nunca a construir um país mais generoso, solidário e mais justo. É por isso que o Brasil precisa tanto do PT.

Companheiras e companheiros,

Salvar o país da destruição e do caos social que este governo está produzindo não é tarefa para um único partido. Fomos eleitos e governamos em aliança com outras forças do campo popular e democrático. Por mais que tentem nos isolar, estamos juntos na oposição com partidos da centro-esquerda e estamos com os movimentos sociais, as centrais sindicais e importantes lideranças da sociedade.

Embora tantos tenham cometido erros antes e depois dos nossos governos, é somente do PT que exigem a autocrítica que fazemos todos os dias. Na verdade, querem de nós um humilhante ato de contrição, como se tivéssemos de pedir perdão por continuar existindo no coração do povo brasileiro, apesar de tudo que fizeram para nos destruir.  Preciso dizer algumas verdades sobre isso.

O maior erro que nós cometemos foi não ter feito mais e melhor, de uma forma tão contundente que jamais fosse possível esse país voltar a ser governado contra o povo, contra os interesses nacionais, contra a liberdade e a democracia, como está sendo hoje.

Deveríamos ter feito mais universidades do que fizemos, mais reforma agrária, mais Luz Pra Todos, mais Minha Casa Minha Vida, mais Bolsa Família e mais investimento público.

Teríamos de ter conversado muito mais com o povo e com os trabalhadores, conversado mais com os jovens que não viveram o tempo em que o Brasil era governado para poucos e não para todos.

Também tínhamos de ter trabalhado muito mais para democratizar o acesso à informação e aos meios de comunicação, apoiado mais as rádios comunitárias, fortalecido mais a televisão pública, a imprensa regional, o jornalismo independente na internet.

Antes que a Rede Globo me acuse outra vez pelo que não disse nem fiz, não ousem me comparar ao presidente que eles escolheram. Jamais ameacei e jamais ameaçaria cassar arbitrariamente uma concessão de TV, mesmo sendo atacado sem direito de resposta e censurado como sou pelo jornalismo da Globo.

Eu sempre disse que jamais teria chegado onde cheguei se não tivesse lutado pela liberdade de imprensa. Hoje entendo, com muita convicção, que liberdade de imprensa tem de ser um direito de todos, não pode ser privilégio de alguns.

Não pode um grupo familiar decidir sozinho o que é notícia e o que não é, com base unicamente em seus interesses políticos e econômicos.

Entendo que democratizar a comunicação não é fechar uma TV, é abrir muitas. É fazer a regulação constitucional que está parada há 31 anos, à espera de um momento de coragem do Congresso Nacional. É fazer cumprir a lei do direito de resposta. E é principalmente abrir mais escolas e universidades, levar mais informação e consciência para que as pessoas se libertem do monopólio.

Enfim, penso que teríamos de ter lutado com mais vontade e organização, fortalecido ainda mais a democracia, para jamais permitir que o Brasil voltasse a ter um governo de destruição e de exclusão social como voltou a ter desde o golpe de 2016.

A autocrítica que o Brasil espera é a dos que apoiaram, nos últimos três anos, a implantação do projeto neoliberal que não deu certo em lugar nenhum do mundo, que vai destruir a previdência pública e que ao invés de gerar os empregos que o povo precisa está implantando novas formas de exploração.

A autocrítica que a democracia e o estado de direito esperam é daqueles que, na mídia, no Congresso, em setores do Judiciário e do Ministério Público, promoveram, em nome da ética, a maior farsa judicial que este país já assistiu.

O mundo hoje sabe que, ao contrário de combater a impunidade e a corrupção, a Lava Jato corrompeu-se e corrompeu o processo eleitoral e uma parte do sistema judicial brasileiro. Deixou impunes dezenas de criminosos confessos que Sérgio Moro perdoou e que continuam muito ricos.

Como podem dizer que combateram a impunidade se soltaram pelo menos 130 dos 159 réus que ele mesmo havia condenado? Negociaram todo tipo de benefício com criminosos confessos, venderam até o perdão de pena que a lei não prevê, em troca de qualquer palavra que servisse para prejudicar o Lula.

Que ética é essa que condena 2 milhões de trabalhadores, sem apelação, destruindo empresas para salvar os patrões acusados de corrupção?

Não tem moral, não tem autoridade para discutir ética quem deu cobertura aos procuradores de Deltan Dallagnol e Rodrigo Janot quando eles entregaram a Petrobrás aos tribunais dos Estados Unidos, um crime de lesa-pátria que já custou quase 5 bilhões de dólares ao povo brasileiro.

Temos muito o que falar sobre ética, sobre combate à corrupção e à impunidade. Mas acima de tudo temos que falar a verdade.

Meus amigos e minhas amigas,

Alguns professores de deus defendem um modelo suicida de austeridade fiscal e redução do estado, que não deu certo em nenhum lugar do mundo. Tiveram o apoio da mídia e das instituições para culpar os governos do PT por tudo de ruim que havia no Brasil. Mentiram que tirando o PT do governo tudo se resolveria, por obra do mercado e do ajuste fiscal. E os problemas se agravaram ainda mais.

Os indicadores econômicos do Brasil pioraram: a balança comercial em queda, a economia paralisada, setores da indústria destruídos, o investimento público e privado inexistente, o rombo nas contas aumentado irresponsavelmente por razões políticas. O custo de vida dos pobres aumentou e as pessoas voltaram a cozinhar com lenha porque não podem comprar um botijão de gás.

É preciso dizer umas verdades sobre isso também.

A primeira delas é que o Brasil só não quebrou ainda por causa da herança dos governos do PT. Por causa dos 370 bilhões de dólares em reservas internacionais que acumulamos e querem queimar na conta dos juros. Por causa dos mercados internacionais que abrimos e que uma política externa irresponsável está fechando. Por causa do pré-sal que descobrimos e que estão vendendo na bacia das almas.

O Brasil só não está passando por uma convulsão social extrema por causa da herança dos governos do PT. Porque não conseguiram acabar com o Bolsa Família, último recurso de milhões de deserdados. Porque milhões de famílias ainda produzem no campo, para onde levamos água, energia, tecnologia e recursos em nosso governo. E também porque não conseguiram destruir ainda os sistemas públicos de saúde, educação e segurança, mas fatalmente isso irá ocorrer pela criminosa política de cortes do investimento público.

Sempre acreditei que o povo brasileiro é capaz de construir uma grande Nação, à altura dos nossos sonhos, das nossas imensas riquezas naturais e humanas, neste lugar privilegiado em que vivemos. Já provamos que é possível enfrentar o atraso, a pobreza e a desigualdade, desafiando poderosos interesses contrários ao país e ao povo.

Soberania significa independência, autonomia, liberdade. O contrário é dependência, servidão, submissão. É o que está acontecendo hoje. Estão entregando criminosamente a outros países as empresas, os bancos, o petróleo, os minerais e o patrimônio que pertence ao povo brasileiro. Trair a soberania é o maior crime que um governo pode cometer contra seu país e seu povo.

A Petrobrás está sendo vendida em fatias a suas concorrentes estrangeiras.

Fiquem alertas os que estão se aproveitando dessa farra de entreguismo e privatização predatória, porque não vai durar para sempre. O povo brasileiro há de encontrar os meios de recuperar aquilo que lhe pertence. E saberá cobrar os crimes dos que estão traindo, entregando e destruindo o país.

Tão importante quanto defender o patrimônio público ameaçado é preservar os recursos naturais e nossa riquíssima biodiversidade. Utilizar esse patrimônio, fonte de vida, com responsabilidade social e ambiental.

Um país que não garante educação pública de qualidade a todas as suas crianças, adolescentes e jovens não se prepara para o futuro.

Mas parece que enfiaram o Brasil à força numa máquina do tempo e nos enviaram de volta a um passado que a gente já tinha superado. O passado da escravidão, da fome, do desemprego em massa, da dependência externa, da censura, do obscurantismo.

O Brasil precisa embarcar de volta para o futuro. E não tem ninguém melhor para pilotar essa máquina do tempo do que a juventude desse país. Porque essa juventude, seja ela branca, negra ou indígena, ela quer ensino de qualidade, quer adquirir conhecimento, quer de volta as oportunidades de trabalho digno, sem alienação e sem humilhações.

Essa juventude quer e merece um mundo melhor do que este em que estamos vivendo.

Hoje me coloco à disposição do Brasil para contribuir nessa travessia para uma vida melhor, vida em plenitude, especialmente para os que não podem ser abandonados pelo caminho.  

Sem ódio nem rancor, que nada constroem, mas consciente de que o povo brasileiro quer retomar a construção de seu destino; de que temos de fazer juntos um Brasil soberano, democrático, justo, em que todos e todas tenham oportunidades iguais de crescer e sonhar.

O futuro será nosso, o futuro será do Brasil!

Muito obrigado!


sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Álibi

Álibi

Criei álibis.
Inventei argumentos
Para ludibriar sentimentos.
Busquei amores n'outros braços,
Nos traços de minhas penas.
Como uma sombra você interrompia meus versos
Vivia ao avesso
Os álibis se desfizeram doce pequena...

J Estanislau Filho






sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A Terra não é mais plana. Voltou a ter polos e a girar




A libertação de Lula, iminente e inevitável, por mais chicanas a que se queira apelar, ajuda o Brasil a retornar à realidade.

O ex-presidente, artificialmente tirado do debate político há longo ano e sete meses, faz o país voltar a ter algo sem o que não há democracia, debate, contraditório: o Brasil volta a ter oposição.

Uma oposição que tem referência na memória e na vida dos brasileiros, porque a representada em alguém que tem a sua marca em um tempo em que este país acreditava em algo.

Restaurados os polos, as forças políticas agora se agruparão, mais ou menos próximas a eles, não na balbúrdia insana de hoje.

O Judiciário – ainda estamos distantes disso, infelizmente, tende a deixar o deformado protagonismo político que Lava Jato e mídia criaram e retornar a seu leito institucional.

Abalou-se o “Sergio Moro acima de tudo, Lava Jato em cima de todos”, embora ainda existam, e fortes, os ódios que levaram à endeusá-lo e a sanha que fez com que entregássemos os destinos do país a delegados e promotores que hoje, para os que têm olhos para ver, revelaram-se pouco mais que quadrilhas.

Não haverá mudanças imediatas, é lenta a precessão dos equinócios.

Mas a Terra, descomprimida que foi da forma plana que esta nossa Inquisição tupiniquim a pôs, volta a girar.




A volta de Lula à cena política é algo que lembra o que vi, com meus olhos e minha juventude: a volta dos exilados, em 1979, e de fato Lula foi levado a um exílio em Curitiba.

E, não duvidem: dele vai voltar sorrindo, conversando, disposto a conversar com todos que queiram conversar e até aturando os que não querem, porque sabem que só sem ele podem brilhar como estrelas de segunda ou terceira grandezas.

Porque é isso, como já foi antes em nossa história, a volta do brilho nos olhos da gente brasileira, mais forte e duradouro que as fagulhas de ódio que foram os argueiros que não deixavam ver o que é trave nos olhos deste país.

Lula sabe disso. Mais ainda, é sua natureza, à qual o desterro em uma cela em tudo parece ter se sublimado e que, agora, sai da prisão para voltar à História.

Por Fernando Brito - Tijolaço 





domingo, 3 de novembro de 2019

Dilma Rousseff, Estadão, AI-5 e Bolsonaro



A presidenta Dilma Rousseff recebeu do jornal Estado de S. Paulo uma pergunta sobre o que ela pensa da defesa que Eduardo Bolsonaro fez do AI-5, ao dizer que eventuais protestos contra o governo poderiam tornar necessário um ato de força semelhante.

Eis a sua resposta, em nota enviada ao jornal:


SOBRE OS SURTOS NEOFASCISTAS E A COVARDIA

Dilma Rousseff

Ninguém, dos órgãos de imprensa, pode se declarar surpreendido pela manifestação do deputado Eduardo Bolsonaro a favor do AI-5. Na verdade, ninguém pode se surpreender porque já houve seguidas manifestações contra a democracia por parte da família Bolsonaro. Defenderam a ditadura militar e, portanto, o AI-5; reverenciaram regimes totalitários e ditadores; homenagearam o torturador e a tortura; confraternizaram com milicianos. Desde sempre pensaram e agiram a favor do retrocesso. Antes das eleições não havia duvidas a respeito. Durante as eleições e depois dela, muito menos, pois têm se expressado contra a democracia e os princípios civilizatórios em todas as oportunidades que tiveram.

O grave é que nunca receberam da imprensa a oposição enérgica que mereciam. Ao contrário, acredito que a imprensa fez vista grossa ao crescimento do neofascismo bolsonarista, porque este adotara a agenda neoliberal. É que, além das pautas neofascistas, a extrema direita defende a retirada de direitos e de garantias ao trabalho e à aposentadoria; as privatizações desnacionalizantes das empresas públicas e da educação universitária e a suspensão da fiscalização e da proteção ambiental à Amazônia e às populações indígenas. Não é possível alegar surpresa ou se estarrecer diante da defesa do AI-5. Na verdade, em prol da realização da agenda neoliberal, na melhor hipótese se auto iludiram, acreditando que poderiam cooptar ou moderar Bolsonaro.

Mas a defesa do AI-5 e da ditadura sempre esteve lá.



Vamos novamente lembrar, o chamado filho 03, que agora diz que considera o AI-5 necessário, é o mesmo que, há algum tempo, disse que “um soldado e um cabo” bastavam para fechar o STF. Óbvio que sem o poder coercitivo de um AI-5, isto nunca seria possível.

O presidente, então ainda deputado, proferiu no plenário da Câmara um voto em que homenageou um dos mais notórios e sanguinários torturadores do regime militar. Aquele coronel só agiu com tal brutalidade contra os opositores do regime militar porque estava protegido pelo AI-5.

Jair Bolsonaro afirmou em entrevista que a ditadura militar cometeu poucos assassinatos de opositores políticos. E que os militares deviam ter matado “pelo menos uns 30 mil”. Também afirmou, na campanha do ano passado, que, se vencesse a eleição, só restariam dois caminhos aos petistas – o exílio ou a prisão – e de que maneira isto seria possível sem a força brutal de um ato institucional como o AI-5?

É estranho que me perguntem o que eu acho da última declaração sobre o AI-5, pois a minha vida toda lutei, e continuo lutando, contra o AI-5, seus assemelhados e seus defensores. O Estadão, que me faz esta pergunta, também deve e precisa responder, pois sua posição editorial tem sido, diga-se com muita gentileza, no mínimo ambígua diante da ascensão da extrema direita no País.

Quem nunca questionou as ameaças da família Bolsonaro com a firmeza necessária e que, em nome de uma oposição cega, covarde e irracional ao PT, se omitiu diante do crescimento do ódio e da extrema-direita, tornou-se cúmplice da defesa canhestra do autoritarismo neofascista.



J Estanislau Filho



sábado, 2 de novembro de 2019

obras-primas


                                                             Muralha da China



Cachoeira da Fumaça - Carrancas - MG





formigas carregam pétalas de rosas
abelhas sugam o néctar de flores
joões-de-barro constroem casas
beleza nos galhos das árvores

um beija-flor a beijar

e os rios seguem seus cursos
um quixote investe contra moinhos de vento
macaco-prego leva um filhote sobre o dorso
pombos se acasalam ao relento

nudez nas ondas do mar

a relva brota sem raiva
crianças na horta
lagarta devora a seiva
nasce uma borboleta

viver é navegar

estrelas abraçam a lua
tecem telas escrevem enigmas
delícias de guloseimas
a cachoeira deságua

gente pela vida a vagar

a chama crepita na fornalha
incendeia corações humanos
um corpo envolto na mortalha
seguirá para outro plano?

pergunta não quer calar

J Estanislau Filho



Capela Sistina
Machu Picchu

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Haicais do meu jeito


                                                                           Bashô

Você sabe o que é um Haikai?

Bom, o nome parece denunciar a origem da palavra, não é mesmo?

Haikai é um vocábulo composto por duas palavras da língua japonesa: hai = brincadeira, gracejo; e kai = harmonia, realização. É um tipo de poema bastante diferente daqueles que sugerem nossa memória, já que à primeira vista sua forma e disposição na página pouco lembram o modelo literário tradicional. São poemas pequenos, com métrica e moldes orientais e seus primeiros registros datam de um longínquo século XVI.

Bastante difundido no Japão, seu país de origem, o haikai encontrou espaço na Literatura Brasileira através de representantes como Paulo Leminski, Millôr Fernandes e Guilherme de Almeida. Mas foi Afrânio Peixoto, em seu livro de 1919, chamado de Trovas Populares Brasileiras, quem primeiro falou a respeito do poema japonês. Outros autores também falaram sobre suas impressões sobre o haikai, mas foi Afrânio Peixoto o principal divulgador e difusor dessa arte no Brasil. No Japão, Bashô, pseudônimo de Matsuo Munefusa, foi um dos principais poetas haicaístas em uma época em que escrever haikais era uma das principais diversões e passatempos do homem japonês do século XVII. Foi ele quem deu força à importância e à prática do haikai em seu país.

Fonte: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/literatura/haikai.htm



                                                               Paulo Leminski


Foi então que decidi brincar de escrever haikais, que prefiro aportuguesar para haicai. Do meu jeito:




Como num céu de aves
Um coração num voo mágico
Rabisca versos suaves

Do sol o brilho
Distante da montanha
Sapo andarilho

Lua andeja
Pássaro na árvore:
Coruja deseja

Casinha feliz
Esplêndida varanda
Pássaro aprendiz

Mar agitado
Pescador suspeita_
Tubarão espreita

Lágrima que cai
Que vem dos olhos do céu
Chuva na terra

Um grito ecoa
A vida em movimento
: Sapo na lagoa

Adeus meu amor
Procuro novo sabor
: Doce morango

Cartas de tarô
Sobre a mesa
Descarta o amor.


J Estanislau Filho



terça-feira, 15 de outubro de 2019

Amnésia




Evandro tentava compreender os motivos que o levara a se esquecer de eventos pretéritos e até mesmo presentes. Não entendia o sentido da existência de televisão, rádio, computador. Não enxergava matas, rios, nem mesmo pássaros em cativeiro. No zoo viu tamanduá dar bandeira. Em síntese, Evandro não entendia o sentido da vida. No estágio inicial do transtorno, conseguia apreender o instante já, o agora, que se esvaia, na vã tentativa de segurá-lo na memória.
      Andava pelas ruas e avenidas, entrava em supermercados reparando tudo, mas atento ao itinerário que o conduziria de volta à sua casa. Pegava ônibus e metrô, distribuía sorrisos e cumprimentos e ao regressar não se lembrava onde estivera. Olhava-se no espelho durante um longo tempo, ora sorrindo, ora fazendo caretas. E perguntava: - Quem é você? De onde veio, para onde vai?
      A família e os amigos demoraram a entender que Evandro não estava bom da cachola. A coisa foi acontecendo de modo imperceptível e quando perceberam, estava em estágio avançado: Evandro perdera completamente as faculdades mentais, concluíram. Não falava coisa com coisa.
     No começo ele conversava, aparentemente, normal. Respondia com clareza às perguntas; falava de literatura e filosofia: “se Stravoguini crê não crê que crê, se Stravoguine não crê, não crê que não crê”, citando Camus, analisando o personagem de Dostoiéviski em o Mito de Sísifo. Gostava de Ivan Karamazov e Joseph K. Dizia-se ser o homem dionisíaco, do meio-dia, além do bem e do mal.
    Deixou-se levar a um eminente psiquiatra, que se interessou pelo caso. O problema de Evandro o interessou tanto, que ele abriu mão dos honorários e cancelou consultas, para garantir agenda ao novo cliente. O Dr. Hipócrates vislumbrou a possibilidade de elaborar uma nova teoria sobre a condição humana. “Ah Evandro, poderei ser o primeiro especialista da psiquê tupiniquim a ganhar o Prêmio Nobel de psiquiatria...”, devaneava o médico, com olhos esbugalhados e cabelos desgrenhados. Evandro olhava o psiquiatra e ria um riso do outro mundo. O médico esfregava as mãos de contentamento.
      Dr Hipócrates receitou-lhe centenas de comprimidinhos coloridos e Evandro ingeria-os com sonoras gargalhadas. Às vezes os retiravam das cartelas e os espalhavam sobre a mesa. E se distraia construindo castelos, mandalas, edifícios e outras coisas incompreensíveis às pessoas lúcidas. Acontecia de sair à rua nu, para desespero dos familiares. Ao ser recolhido, recebia beliscões de advertência e ele ria, ria, ria e dizia, “mamãe, você não quer Vandinho pelado mais não? Ah mamãe...”
     Hematomas brotavam em seu corpo, marcas da intolerância humana. Evandro, outrora um trabalhador responsável, rapaz de bons modos, tornara-se um estorvo. A família pediu ao Dr Hipócrates que o internasse imediatamente. O psiquiatra sorriu de contentamento. “Muito bem, decisão sábia. Assinam esses documentos, que me autorizam a cuidar do paciente, certo? Doravante cuidarei de você – disse olhando para Evandro, que se encontrava sentado na poltrona do consultório, de olhos fixos em um ponto indefinido – meu rapaz, vamos dissecar sua mente e revelar à humanidade os avanços da indústria farmacêutica da medicina, muito obrigado, podem ir”. – Ficamos livre daquele mala – disse Ana Flávia, a irmã, cujo endereço, na internet é flavialindinha.com.br .
    Poucos anos depois, Evandro e Dr Hipócrates foram encontrados nus, por funcionários do Ibama, atirando pedras para o ar e aparando com a cabeça, próximos de uma cachoeira na Serra do Cipó. Ambos foram entregues às respectivas famílias, pois, com a nova legislação, não se permite internar pessoas com transtornos mentais.

J Estanislau Filho


Com Geraldo Bernardes no lançamento de Palavras de Amor no Berimbau Circo Bar - Contagem-MG