Por José Correa Leite
Cidades brasileiras viverão neste fim de semana manifestações contra as queimadas. Por que construir um movimento climático é vital para o futuro do país e do planeta. Como ele pode enfrentar o agronegócio e sua aliança com o governo
Foto: Zdf.de
As queimadas, cuja fumaça só poupou uma capital brasileira, Teresina, e as enchentes, que destruíram boa parte da região de Porto Alegre, estão mostrando, nesse ano de 2024, que as mudanças climáticas já se tornaram um grande problema para o povo brasileiro e caminham para se tornar o maior desafio já enfrentado pelo Brasil. Elas conectam diretamente as grandes cidades do país, onde vive a imensa maioria da população, 85% dela urbana, à necessidade de preservação do Cerrado, do Pantanal e da Amazônia.
97% dos brasileiros aceitam que as mudanças climáticas existem e 78% avaliam que elas têm causas humanas, um dos maiores índices do mundo. Talvez isso seja resultado de um aprendizado prático nas condições de existência: 5.233 municípios brasileiros (94% do total de 5.565) tiveram emergência ou calamidade decretadas entre 2013 e 2023, principalmente por chuvas e cheias torrenciais, deslizamentos ou secas prolongadas. Mas quando perguntadas sobre quem são responsáveis, a maioria das pessoas responde com termos genéricos como “os homens” ou “os seres humanos”. Porém, diferente de muitos outros países, onde as consequências do aquecimento global parecem resultado de processos sistêmicos mais distantes (principalmente pelo uso dos combustíveis fósseis), no Brasil temos uma interação entre os biomas e o clima (e um monitoramento por satélite dos incêndios) que nos permite obter o CPF e o RG dos grandes interessados e responsáveis pelos incêndios.
Temos o CPF e o RG dos responsáveis
São os ruralistas, o segmento da classe capitalista vinculado ao controle de terras, um grupo numericamente insignificante da população, mas que vertebra o poder no país. Eles lidam com os territórios que conquistam como enxames de gafanhotos em guerra contra a terra, explorando-a até esgotar sua capacidade produtiva e depois se deslocando para outras regiões onde reproduzem o mesmo processo. Eles vertebram o bloco social de raízes agrárias que dominou com mão de ferro o Brasil até 1930, quando foram então parcialmente deslocado do centro do Estado, mas voltaram a controlar o poder depois de 1990, desindustrializando o país e voltando a colocá-lo no mundo, em grande medida, como uma grande fazenda.
Os ruralistas estão articulados com o setor financeiro e são coadjuvados, na predação dos territórios e do clima, pelos envolvidos em setores como a produção e uso de combustíveis fósseis, a mineração e por seus representantes políticos, agentes ideológicos e gestores estatais. Como proprietários ausentes, alimentam, nas grandes cidades, booms imobiliários especulativos, que desfiguram o tecido urbano. Aliados com pastores neopentecostais, vertebram a vaga neofascista que vive o país.
A classe dominante agrária se estabeleceu no Brasil com base no escravismo e no controle do acesso à terra (formalizado pela Lei de Terras de 1850), depois em formas diversas de trabalho compulsório, para finalmente adotar o assalariamento, mantendo sempre a violência para o controle social. Ainda hoje são comuns as denúncias de uso de trabalho similar ao escravo. Seu outro alicerce foi e é a predação ambiental. Observamos isso quando olhamos para a Mata Atlântica, que ocupava 1,3 milhões de quilômetros quadrados (15% do território) e da qual restam hoje fragmentos, boa parte destruída pelo já no século XX. A agropecuária hoje repete o processo no Cerrado, na Amazônia e no Pantanal.
O ruralismo produtor de commodities (soja, cana, carne, café) repõe, a cada momento histórico, o que Caio Prado chamou de “o sentido da colonização”, produzindo riquezas para o mercado mundial às custas do saque interno da natureza e do trabalho humano. Isso se distingue da agricultura produtora de comida, voltada para o mercado interno, quase toda produzida pelo campesinato e pela agricultura familiar, ambientalmente muito mais responsável. As commodities são parte da alimentação apenas indiretamente, fornecendo insumos para a “junkie food” ultraprocessada. A pecuária tem, nessa cadeia, a particularidade de ser também o principal mecanismo de grilagem de terras e vetor de desmatamento no Bioma Amazônico, para onde se desloca a fronteira agrícola.
A agropecuária produtora de commodities destroi imensas parcelas do território tão somente em benefício próprio, tendo sempre se oposto à construção nacional. É por responsabilidade dela que, ao contrário do discurso vigente, o Brasil não é uma vítima detentora de uma dívida climática para com o Norte. Esse discurso só leva em conta as emissões industriais; somos, ao contrário, o quarto maior emissor acumulado de carbono depois de 1850 devido ao desmatamento – atrás apenas dos EUA, da China e da Rússia, segundo o levantamento da Carbon Brief. Ou alguém acha que a destruição da enorme Mata Atlântica, do Cerrado e de parte da Amazônia pelo ruralismo brasileiro não jogou e continua jogando bilhões de toneladas de carbono na atmosfera; ou que o rebanho bovino brasileiro, maior que a população do país, não constitui um passivo ambiental gigantesco? Se tomarmos a sério a dinâmica do colapso ambiental em curso, o ruralismo brasileiro é, junto com os produtores de petróleo e carvão, um dos vilões maiores do clima do planeta, um dos grandes inimigos da humanidade.
A dinâmica global-local da emergência climática
O aquecimento global evidenciou, desde junho de 2023, um salto de qualidade, produzindo consequências por todas as partes do planeta. Uma boa síntese das conclusões dos cientistas tem sido apresentada por Johan Rockstrom em suas conferências recentes, como em “Os pontos de virada da mudança climática – e onde estamos” (disponível com legendas em português). O aquecimento global está se acelerando: de 0,18° por década passou, depois de 2010, para 0,26° por década. Vamos, certamente, ultrapassar o aquecimento de 2° acima da temperatura pré-industrial antes de 2050, talvez atingindo 2.5°. Entre nós, Carlos Nobre tem reproduzido o mesmo diagnóstico. A grande aceleração capitalista extrapolou as fronteiras naturais do planeta e aponta para a ruptura, nos próximos anos, de vários “tipping points” decisivos do Sistema Terra. A crise da civilização capitalista ganha contornos dramáticos: guerras, crise social, deslocamentos de população e fascismo acompanham o colapso climático, inclusive a possibilidade de colapso da Amazônia O destino da Floresta Amazônica, que as pesquisas de Luciana Gatti mostra que está se tornando uma emissora de carbono, é uma questão candente para toda a humanidade.
O clima perdeu a estabilidade relativa que teve nos últimos dez mil anos (o período Holoceno). Tornou-se, no Antropoceno, o resultado da disputa entre a destrutividade do capitalismo extrativista e fossilista, que ameaça a biosfera do planeta, e as forças sociais que buscam uma alternativa que hoje não pode deixar de ser qualificada como ecossocialista. É, cada vez mais, o vetor resultante da luta civilizatória da vida contra a morte, travada pelos povos sempre no terreno local, mas que se projeta no espaço nacional e global. Não há hierarquias rígidas e, embora alguns territórios sejam decisivos para toda a humanidade (como, no nosso caso, a Floresta Amazônica) ou para um país (como o Cerrado, a caixa d’água do Brasil, e o Pantanal, fonte de biodiversidade única), as escalas são muito variáveis, dependendo das condições ecológico-territoriais, sócio-econômicas e políticas. Um programa ecossocial tem que envolver múltiplos atores e situações, alianças e encadeamentos de transição.
O problema não está apenas no campo, mas também nas cidades, que estão se transformando em ilhas de calor infernais. O expansionismo do setor imobiliário nas cidades intensifica o calor, destroi as áreas verdes e recusa toda ideia de esponjas urbanas. Uma cidade como São Paulo é de 5 a 10 graus mais quente que as regiões de vegetação da Mata Atlântica remanescente ao redor. Os grandes empreendimentos imobiliários são a contrapartida urbana da irresponsabilidade do agronegócio no campo.
O engajamento na disputa política se dá, assim, em múltiplas dimensões, inclusive a global. As cláusulas ambientais no comércio internacional são um instrumento de pressão imprescindível contra o comportamento criminoso de inúmeros setores econômicos. A pecuária brasileiro é exemplar de um setor que precisa ser enquadrado por estruturas políticas muito mais fortes que as do governo brasileiro. Ela não aceita rastrear a origem do gado cuja carne é exportada porque grande parte dele é criado ilegalmente na Amazônia desmatada e depois levado para estados de outras regiões para abate. A União Europeia está implementando, a partir de 2025, uma lei contra o desmatamento que afetará as importações de commodities como carne e soja – as mais destrutivas para o meio ambiente brasileiro. Segundo o Itamaraty e o Ministério da Agricultura, que protestam contra a legislação junto às autoridades europeias, ela deve afetar 30% das exportações do setor para a Europa. Por outro lado, o Observatório do Clima defendeu, corretamente, que a Europa inicie a fiscalização já no início do próximo ano. É só o início de uma pressão que todos nós devemos procurar fazer crescer de forma exponencial.
Construir as alianças, focalizar o inimigo, aproveitar as oportunidades
As queimadas atuais têm um forte componente de incêndios criminosos por parte do agronegócio. Como afirma Luciana Gatti, a Floresta Amazônica está sendo assassinada e sabemos por quem. Os focos de incêndio no Pantanal e nos canaviais paulistas também têm CPF e RG. Desde a promulgação do Novo Código Florestal sob o governo Dilma, em 2012, assistimos uma ofensiva crescente do setor contra todos os mecanismos de limitação de suas atividades e proteção da natureza. Do uso de todo tipo de agrotóxico banido na Europa à atual ofensiva de flexibilização da legislação que conseguimos manter, passando pela porteira para a boiada de Salles e Bolsonaro, a maioria venal do Congresso é uma máquina para referendar a destruição dos biomas brasileiros.
Como afirma Luiz Marques em uma recente entrevista ao site O joio e o trigo, “O agronegócio é o grande problema do Brasil. Se ele não for extirpado, o Brasil não tem a mais remota chance de viabilidade como sociedade e como natureza. É uma atividade social basicamente criminosa e predadora. E eles controlam o Congresso Nacional por meio da frente parlamentar da agropecuária e têm como aliados, inclusive, as bancadas da Bíblia e da bala. Então, o Brasil está numa situação muito clara: ou nós reagimos a isso, com uma ruptura muito vigorosa em relação a esse processo ou nós não temos nenhuma chance de sobrevivência como sociedade”.
Isso pode parecer uma missão impossível. Mas quem, vendo o Brasil no ano de 1928, imaginaria que, cinco anos depois, a oligarquia cafeeira teria sido derrubada do poder no estado central? Como lembra Chico de Oliveira no seu Ornitorrinco, a possibilidade de mudanças estruturais nas sociedades da periferia está diretamente ligada a cenários de crise geral do sistema internacional, que possam ser aproveitadas por atores políticos internos bem posicionados. Deixamos para trás a globalização vigorosa e entramos em uma fase de disputas interimperialistas que estão fragmentando o mercado mundial e produzindo uma certa desglobalização, que só tende a se aprofundar. O mundo vai ficar um ambiente cada vez mais hostil em todos os sentidos possíveis nos próximos anos.
O projeto do agronegócio brasileiro é vulnerável, de uma parte, por ser ambientalmente suicida em um mundo onde as condições de sustentabilidade se tornarão condições de sobrevivência de uma sociedade. Mas também é vulnerável porque reitera a velha dependência livrecambista dos ciclos de commodities da economia mundial, que retiram todas as condições do Brasil resistir às flutuações da economia mundial em um mundo cada vez mais instável. O que faz Lula senão aprofundar estas vulnerabilidades? Como afirma Liszt Vieira, “de pouco adianta um Ministério do Meio Ambiente que não pode impedir a degradação ambiental provocada, por exemplo, pelo Ministério da Agricultura bancando o agronegócio que desmata florestas, pelo Ministério do Transporte bancando a pavimentação da BR-319 que vai devastar a Amazônia e pelo Ministério da Energia, bancando a exploração de petróleo na bacia da Foz do Amazonas”.
Na medida em que se torna cada vez mais parasitário e destroi suas próprias condições de existência, o agro também se revela cada vez mais destrutivo para a vida da maioria da população brasileira. Podemos resumir a dinâmica dizendo que ou o Brasil acaba com o ruralismo ou o ruralismo acaba com o Brasil. Quem poderá fazer frente a essa tarefa? Uma esquerda distinta da que existe hoje, paralisada frente ao agro. Como lembra E.P.Thompson, as classes se formam na luta de classes.
Um forte movimento pelo clima no Brasil será um movimento por uma transição ecossocial no país, organizada desde os atores populares, capaz de enfrentar os responsáveis nacionais pela predação da natureza e lutar pela restauração dos biomas florestais. A alternativa para o Brasil será criada na luta política por outra economia, por outra sociedade, por outro metabolismo com a natureza.
JOSÉ CORREA LEITE
Ativista ambiental, professor universitário e membro da Assembleia Mundial pela Amazônia.
Fonte: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/salvar-clima-para-construir-outro-brasil/
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AGRONEGÓCIO, AMAZÔNIA, CAPA, CRISE CLIMÁTICA, ECOLOGIA, LEI DE TERRAS, MUDANÇAS CLIMÁTICAS