quarta-feira, 29 de abril de 2020

Terra






Terra
Planeta clemente
Ponto no espaço cósmico
Frágil ante a ira humana.

Como proteger seu manto mãe gentil
Estancar seu sangue
Ao ataque ignóbil.

Buracos abertos em sua pele
Sangram planaltos
Sangram planícies
Seus cabelos suas matas
Aparados por insensatos
Faz surgir calvície.

Terra Terra
Como protegê-la
De tamanha gula?

Quantos barris de petróleo
Barris de pólvoras serão necessários
Para por fim a desatinados gestos?

Terra Terra
Onde se enterram os filhos
Que renascerão nos rios
[Veias que percorrem seu corpo].

E quando chora
Lágrimas de chuva
O relâmpago saúda
A chegada do trovão.

A Terra toda grita
Folhas balançam
O mar agita
Deslizam montes
Aves migram
A cabeleira verde renasce
Para dizer que a vida continua.

Terra
Até quando?


J Estanislau Filho


Este poema está em meu livro Estrelas - páginas 70/71




segunda-feira, 27 de abril de 2020

Minina dos zoios verdes











Minina dos zoios verdes
Bunita que nem fror do campo
Gastô um poco do seu tempo
Pra mode ler meus versos
E mi comparô cum Patativa do Assaré.
Intindi ser um agrado,
Mais confesso num sabê quem é.

Tomem num sô um abestado,
Curri pur todo lado
Mode discubri que é o tal,
Foi um poeta arretado!
Ele tinha uma vaca estrela
E tomem um boi fubá,
Eu cantano aqui
Ele cantou pur lá
A alegria e a tristeza
A bondade e a marvadeza
Que tem em todo lugar...

Minina dos zoios verdes
De boas palavras e mió ideias,
O véio aqui não morde
Mas papa andréias.
Tem arguns rompantes
Só nos acordes
De seu violão tonante!

Minina dos zoios verdes
Cujo nome não se perde,
Feminina de um ressuscitado,
Pur Jesus Cristo abençoado...

É bíblico minina Lázara
De subrinome Papandrea,
Mas pur aqui o véio para
Pra modi num magoá a véia,
Pois Dona Zica é uma fera
E vai ter briga feia
no ato!
E a minina dos zoios verdes
É quem vai pagar o pato!


J Estanislau Filho


Em 2012 eu criei um personagem chamado Zé Mineiro, no Recanto das Letras, que escrevia em linguagem caipira. Assim como surgiu Catarse com Cumpádi Bastião,  Zé Mineiro escreveu Minina dos Zoios Verdes, em homenagem à talentosa poetisa Lázara Papandréia. Achei que ficou bacana, por isso publico aqui. 

domingo, 26 de abril de 2020

Catarse com cumpadi Bastião


Imagem: Google




Isturdia (*) tava eu aqui na barbearia, ispantano musquito. Os fregueis sumiru, lá fora aquele movimento parado. Nem um fi de deus prum dedim de prosa, pelo menu, pois o dia tava memo ino pro brejo. Num ia trocar nem memo seis pur meia dúz. Fregueis é assim memo, tem dia que chega tudo duma veis, dispois some. A gente não percisa de dinheiro, percisa memo é de felicidade. Mas esse dia foi duído. Num deu pra sarvá nem a paia do meu pito de fumo de rolo. Inté as foia da manguera num mexia. Disacorçoado, fui arriar a porta, quando vi cumpadi Bastião vindo com aquele jeito mole de andar, pernas bambas. Eu gritei:
- Eh cumpadi, cê num morre tão cedo, tava pensano nocê! Ele me arrespondeu:
- Boa tarde, cumpadi, discurpa eu, tô cum pressa. Fiquei pensano cá comigo “cumpadi Bastião com pressa? Nem que a vaca tussa, esse home tá com treta”.
- Só uma paradinha prum dedim de prosa, cumpadi, pressa pra quê? O mundo não vai acabar”.
- Pensano mió, cumpadi tá certo. Nem me alembro o que ia fazer... E foi logo se acomodano justo na cadeira de trabaio: - “Eita cadeira macia...Tem nuvidade na praça?”, perguntou.
- Nuvidade nesse fim de mundo cumpadi? De que jeito? Os tempos de Seu Álvaro, Geraldo Paraíba e Garoa acabô-se, ó, faiz um tempão. Jampruca é esta paradera, parada inté demais da conta...” Cumpadi balangou a cabeça consentino. Gosto de conversar com ele, que mais iscuita que fala. Abri o verbo:
- Sabe duma coisa, cumpadi Bastião, sua presença hoje é especiá, perciso fazer uma catarse. Pru meu ispanto, cumpadi levantô duma veiz da cadeira e disse aperreado:
- Trem nojento, cumpadi, vamo mudá o rumo dessa prosa! Troço disgramado (**) é esse?”
- Peraí cumpadi, não é o que ocê tá pensano não! Catarse é fazer uma limpeza na alma, botar as podreras pra fora...
Num teve jeito. Cumpadi Bastião saiu resmungano, ouvi ele dizeno “eita mundo veio sem porteira, dispois que cumpadi começou a mexê com essa tal internet, malucô de veiz, começou a dá pa traiz, mijano fora do pinico...”
“Peraí cumpadi – ainda tentei mais uma vez – catarse é...” E ele ainda arespondeu “vai comê bosta, home, na sua idade...”
O dia foi mesmo perdido, melhor ir dormir. Amanhã, quem sabe... Cumpadi Bastião vorta, ele sempre vorta.


J Estanislau Filho



(*) Outro dia; um dia destes.
(**) Coisa ruim, esquisita.


Imagem: Google


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Os Sonhos não Morrem




Dias meses anos
e aqui estamos
vendo o tempo passar
homens mulheres crianças
alguns perderam a esperança...
guerras greves gritos
são tantos os conflitos
medo opressão fome
párias sem nome
zanzando sem rumo
e aqui estamos
vendo o tempo passar...

Homens sérios sisudos fazendo poses
estufam o peito esnobando importância
ocultando suas ignorâncias
debaixo de rótulos títulos
imbecis...
O ministro na televisão
quer acabar com a inflação
fala em indexação
LFT BTN IPI ICMS OPEN OVER TRD
que é preciso combater o ágio
lançam o selo pedágio
e nós aqui
vendo o tempo passar
nesta cidade nesta rua neste quarteirão
crianças dão as mãos
e cantam seus sonhos
levantam pipas ao céu
jogam bolas biroscas petecas
crianças sapecas
sorriem sem medo
correm e pulam ao léu
"crianças são dias nascendo"
diz o poema de Antonieta
a fome não existe
papai e mamãe alimentam
aguentam (se é que aguentam)
a escola
o dentista
o medicamento
papai e mamãe tão atentos...

O secretário de abastecimento e preços
diz à imprensa
este é um país de riquezas imensas
cínico? visionário? debochado?
qualé a do secretário?
dono de uma rede de supermercados!
nas vilas favelas becos morros bairros operários
ninguém escuta as palavras do secretário...
o que estamos esperando?
o juízo final
e uma legião de anjos com trombetas
e um senhor para julgar os bons e os maus?

você
que viveu na promiscuidade
contraiu sífilis cancro mole
crista de galo e gonorreia
usou drogas
maconha cocaína heroína
haxixe ou lsd
o inferno espera você
e você agitador profissional
disseminou o mal
insuflou as massas contra as sagradas instituições
fez maquinações
destruiu valores
fez horrores
ah comunista
vê se agita
a sua bandeira no inferno
eu sou a UDR a TFP
e ninguém irá me vencer!

Dias meses anos séculos
houve descobertas fantásticas
Galileu descobriu que a Terra não era o centro do Universo
um bando de inquisidores perversos
quase o mandou para a fogueira
Galileu não deu bandeira
- senhores inquisidores
sejam feitas vossas vontades
a terra é o centro!
máquinas equipamentos
ergueram-se monumentos
e o homem se convencendo que é o maior
Deus talvez
navios carros aviões vacinas
a medicina debelando doenças
surgindo novas crenças
avança a tecnologia
descobre-se a vasectomia
e outros métodos anticonceptivos
e por outros motivos
o homem vai à lua...
enquanto isso permanecem nas ruas
crianças abandonadas
por quem?
pelos pais por Deus pela sociedade?
bombas laser energia nuclear
aí começa a se complicar
surgem os ecologistas
nudistas
xiitas
marxistas leninistas
istas istas istas
radiação chernobyl
lixo atômico
alguns atônitos
com uma pequena capsula de césio 137
Goiânia vira manchete
e tudo pode ir pelos ares
bombas gases poluição
são tantas as causas de destruição
monóxido de carbono
fogo nas matas
rios montanhas cataratas
nada escapa à violação
e a fome continua sem solução!

O mundo está preocupado com a floresta amazônica
Ministros governadores presidentes
Todos descontentes
Com a devastação do pulmão do mundo
Sting Raoini
Até os americanos querem saber
O que está acontecendo ali
Ah os americanos!
Nos dizem com "autoridade":
"A amazônia é patrimônio da humanidade"
Arre! não venham com lição de moral
quem já nos causou tanto mal
devastou nossas florestas
roubou-nos o melhor da festa
levou nossos minérios
ferro chumbo estanho
e ainda nos apresenta um dívida desse tamanho!
explora nossa mão de obra
IBM TEXACO ESSO CITY BANK XEROX ITT BAYER PIRELLI FORD
MC DONALD COCA-COLA
nos deixando como esmola
míseros trocados
e vem nos dizer para termos cuidados
com a nossa reserva ecológica
tem lógica?

Chico Mendes apontou o caminho
com simplicidade e carinho
cheio de esperança
e amor à natureza
mostrou-nos a beleza
dos pássaros flores rios matas montanhas índios
seringais e seringueiros
e na luta contra os grileiros
nos deu o exemplo da resistência!
Chico Mendes trabalhou a terra
com cuidado e encanto
e sem espanto
derramou seu sangue em solo fértil
que brotará e dará bons frutos
agora veja você:
um homem ama luta
mas alguém se irrita se agita
e com um ódio descomunal
desfere-lhe um tiro mortal...
porque assassinar alguém
que em vida só fazia o bem?
é de causar repugnância
mas a morte de Chico Mendes
esconde-se na ganância...

Um enorme navio corta as águas do oceano
não leva seres humanos
leva outro carregamento
não se trata de diamantes
sedas fragrâncias obras de arte
Renoir Picasso
leva algo importante
que o rádio a televisão
narra todo o seu roteiro
mostrando ao mundo inteiro
que assiste com o coração na mão a travessia
vencendo ondas bravias
temporais vendavais...
o navio não leva mísseis
não leva ministros
não leva reis e rainhas
mesmo porque reis e rainhas já não dão ibope...
não leva o Papa
nem mesmo o líder negro Mandela
libertado do regime racista da África do Sul...
a carga que o navio leva
vale mais que mil tesouros
nem mesmo todo ouro
é mais precioso que ela
thatcher bush gorbachev miterrand
até o carrasco pinochet dão entrevistas
passando em revistas
suas tropas em estado de alerta
para proteger o navio
que rompe as águas do mar como uma centelha
com a bandeira da Cruz Vermelha
em direção à Mãe África
levando alimento aos famintos...

Aqui estamos vendo o tempo passar
assistindo pela televisão
esta onda de "informação"
sobre a China
e toda aquela chacina
Cuba Afeganistão Solidariedade...
é bom que as autoridades
ao falarem de violência
tenham a decência
de sentar em seus próprios rabos
pois nesta matéria somos os primeiros
só no Rio de Janeiro
morrem em média 14/15 por dia
sem falar no trânsito
acidentes de trabalho...
nem mesmo o Vietname
que foi um vexame
caíram tantos por terra
e olha que lá havia uma guerra...
vemos no mundo a geriatria
usando sua sabedoria
para se manter no poder
aqui como lá velhos burocratas
tecnocratas
comandam tanques artilharias
para matar a alegria...

Saco!
estou farto e só não parto pra outra
porque não sou de fugir da raia
mas juro juro juro
que não aguento
este racionalismo frio
este cinismo nojento
que se articula
manipula
destruindo nossos sonhos
matando a emoção
talvez Bakunin e Berzé tenham razão:
vendo tanta cagada
o melhor remédio é
uma sonora gargalhada
ou como diz o Joe:
os caras são fudidos pra caralho!
cometem tantas besteiras
dizem um monte de asneiras
agarrados ao poder com unhas e dentes...
e a gente
sonhando com uma revolução:
Vico Michelet Bakunin Prudhon Marx...
luzes indicando caminhos
a tomada da Bastilha
"proletários de todos os países, uni-vos"
os que tombaram talvez foram mais felizes
morreram sonhando lutando
se estivessem vivos talvez não acreditassem
rússia china polônia
viva a guerra civil espanhola
Hemingway Sartre Reed
viva os dons quixotes
abaixo o nazismo
abaixo os fascistas
os neos
sem os grilhões da intolerância
sem opressão medo e fome
ou liberdade vigiada
LIBERDADE LIBERDADE!!!

Dias meses anos séculos...
e nós aqui pensando
olhando esperando dias melhores
alguns lutando
dando a vida por um ideal
plantando trigo
colhendo sal
manhãs de sol
uma vida plena
pois só assim vale a pena
só assim a vida faz sentido
não deixar os nossos sonhos reprimidos...
muitos estão lutando
individual ou coletivamente
sempre tendo em mente
a História ou a Utopia
não importa!
uns fazem caricaturas
reproduzindo as criaturas:
políticos artistas jogadores de futebol
viva os chargistas cartunistas
escrachando vigaristas
viva os sindicalistas combativos
ativos atentos...
alguns tomam sol nas praias
outros nos estádios assistem jogos de futebol
frenéticos
patéticos agitam bandeiras
hippies beatiniks panks
roqueiros metaleiros bregas
e o que mais para fazer?
ir à sauna ver televisão
domingo tem silvio santos faustão
enlatados a semana inteira
e as novelas ultrapassaram nossa fronteira
frequentar boites
fazer acampamentos
desfrutar um pouco o tempo
ir ao analista
"Só há um problema filosófico verdadeiramente sério:
é o suicídio, julgar se a vida vale a pena ser vivida..."
não entendo como Camus não deu um tiro nos miolos.
arre!
já não aguento mais esta vida
arranjar outra saída
talvez pela porta dos fundos
fugir do mundo
corda no pescoço
atirar-me no fundo do poço...

Estamos com os corações quebrados
momentos de incertezas
angustiados...
temos os pés descalços
mãos vazias
viajantes noturnos
sem lua e sem estrelas
a dor d'alma nua
corações partidos
nos conduzirá às ruas
praças avenidas
estradas empoeiradas
asfaltos canaviais cafezais
e campos de trigo
para resgatarmos a emoção
o sonho
pois a vida que nos foi concedida
foi para ser vivida
não!
morte não...

Não deixaremos que matem nossos sonhos
que nos roubem a esperança
vida vida vida
VIDA PLENA!...

J Estanislau Filho


Setembro de 1989
Do meu livro semiartesanal O Comedor de Livros - 1991




imagens: jef

quinta-feira, 23 de abril de 2020

O Encontro






Imagem: jef








Acordei ao som do telefone, que tocava insistentemente. Esfreguei os olhos e fui, sonolento, atender. A voz feminina do outro lado disse que eu era o pai de um certo Valmir. Olha, creio que você está enganada, respondi. Não há engano algum, você é o pai. Tum-tum-tum ...
Uma semana depois meu sono é novamente interrompido pelo toque do telefone. A mesma voz, um filho lindo, uma criança doce e não demonstra nenhum interesse por ele, que tristeza! Eu não queria, mas sabe como é, o garoto cresceu, exige que eu lhe apresente o pai. Tum-tum-tum...
   Pensei em instalar um identificador de chamadas. Alguém estava decidido a me perturbar.
   Acordo. De um salto atendo ao telefone, você não virá mesmo? Fingindo inocência, é isso? Aqui é Juciléia, seu canalha. Lembra agora? Gutembergue, tudo bem, esqueci de passar o endereço, anota aí... vou esperá-lo na rodoviária dia três às quatorze horas. Só existe um horário de ônibus aqui nesse fim de mundo. O garoto quer lhe conhecer, venha!
     Ela sabe o meu nome! Anotei o endereço em um pedacinho de papel e voltei a dormir.
    Dia três, quatorze horas, o telefone toca, acordo cambaleando, olha aqui seu canalha, se não vier na próxima quarta-feira, a gente se vê nas barras do Tri-bu-nal, entendeu? Exames de DNA, pensão retroativa. Está bem, eu vou. Tum-tum-tum... Anotei o endereço noutro pedacinho de papel e voltei pra cama.
    Selei o cavalo para dar um passeio nos páramos. A brisa alvoroçava meus cabelos. O sol batia em meu rosto. Um flautim-rufo empoleirado em uma árvore... Um casal de sabiá constroi o ninho. O cavalo troteia. Apeio à beira do córrego e sento sobre o tronco de uma árvore, que não resistiu ao tempo.
    Gutembergue é o meu nome. Homenagem ao Gutenberg, o inventor da imprensa. Coisa do meu pai. Mas o escrivão certamente nunca tinha ouvido um nome esquisito e ficou assim. Cidade pequena, interior, meu pai disse mais tarde, que teve de explicar ao moço do cartório como se escrevia Gutembergue... Não, filho, ele não teve culpa. Mas, pai, isso não importa, podia ser Alexandre, Heráclito, Pedro, tanto faz.
    Acabei esquecendo de ir ao encontro de Juciléia, conhecer Valmir. Mas Juciléia e o pirralho estavam dispostos a me colocar contra a parede. Vou dar-lhe a última chance, Gutembergue, se não vier a jiripoca vai piar. Não estou brincando! Está bem, irei, esqueci por causa do meu cavalo, o flautim-rufo... O quê? Tá me achando com cara de otária? Desta vez irei sem falta, passa o endereço. Já passei. Perdi. Anota aí, imprestável!
     Ônibus lotado. Saída à meia-noite. Calor. O motorista se dirige aos passageiros. Explica a duração da viagem, as paradas e pede para colocarmos o cinto de segurança. Vejo que só eu me afivelo. Algumas pessoas conversam entre si. Ao meu lado um sujeito forte ocupa parte da minha poltrona, atirando-me para o corredor. Face de magarefe. O ônibus ganha as ruas com destino a ... Ao entrar na rodovia o magarefe começa a roncar. Cutuco sua costela gelatinosa. Ele se mexe. Fico mais espremido. Volta a roncar.
      Oito da manhã desembarco na rodoviária. Uma pequena cobertura de telha de amianto, para um ônibus, na rua principal. Uma mulher de olhos puxados aguarda, segurando um garoto pela mão. Você é a Juciléia? Pergunto. E esse é o Valmir, dá um abraço em seu pai, filho! Ei, diz alguma coisa ao seu filho. Mas não sei o que dizer, digo oi Valmir. Trouxe algum presente?, inquire Juciléia. Não tive tempo, o flautim-rufo... Como assim, você ia dar um flautim, que é isso, uma flauta? Tenha paciência! Ah, o cavalo, o sol, também por causa do casal de sabiá construindo o ninho... Não vou discutir com você na frente do garoto, seu filho, Gu-tem-bergue! Tiro do bolso algumas moedas, dou ao menino, que sai correndo. Entra no bar, aos pulos. Olho. Um filho. Meus pensamentos voltam para o flautim-rufo. Juciléia faz um gesto qualquer, diz algo, mas não ouço. O sol está quente. Queima minha pele.
     Que horas o ônibus retorna? Como assim? Não me diga que veio ver seu filho e... Não vai passear com ele? Dar-lhe carinhos, conversar... Mas já conversei, olha lá, ele comendo chocolate.
   Juciléia dirige-se ao pequeno público, que se encontra na rua, de frente aos botequins. Pessoal, prestem atenção nesse homem. Vocês sempre me perguntaram pelo pai do meu filho. É ele o pai de Valmir, esse garoto que vocês veem aqui na praça quase todos os dias. De hoje em diante não precisarão perguntar mais. Todos sabem da minha luta, para sustentar esse menino lindo. E o pai dele? Só fala em flautim-rufo... Por acaso algum de vocês trata um filho assim? Sei que não, pois conheço cada um aqui, mas quem é Gutembergue? Nem beijou o filho e disse meu querido, papai está aqui e te ama...
    A rua começa a ficar pequena para a turbamulta, que me rodeia. Olham-me de modo estranho. Não entendo. Juciléia não para de falar. Tapo os ouvidos com as palmas das mãos. É assim que trata seu filho? Digo que a viagem foi longa e cansativa, não dormi, um sujeito roncava e o flautim-rufo... À merda o flautim, à merda seu cansaço, trata-se de um filho!
     Não me lembro de nada. A enfermeira mede minha pressão e sorri. Pergunto sobre o flautim-rufo. Ela sorri de novo e diz que ele está bem.
       Em seguida durmo.


 J Estanislau Filho


Integra o livro Crônica do Amor Virtual e Outros Encontros - Editora Protexto 2012 - primeira edição esgotada.




Bondade

Imagem: Manoel - Artesão de Araçuaí - MG





"Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra"


A bondade praticada sinceramente, espalha-se
e não se queima como palha, evolui naturalmente.
Uma pessoa bondosa não necessita de vanglória,
pois a bondade em si, fica na memória
e nos corações agradecidos.
Abarca num amplexo a humanidade.
Dessa forma a bondade cumpre o seu sentido.
Se a bondade se cala diante da maldade,
não a busque na poltrona da sala,
pois sua morada é o coração,
nem tente enclausurá-la numa cela,
pois que a bondade romperá as grades
ou será libertada por sementes de bondades
brotadas, sem vingar-se das maldades,
para que se tornem bondades.
Porém a maldade também espalha sementes,
que brotam nervosas nos corações e mentes
desumanas, mas não com a mesma intensidade,
embora ela tenha mais visibilidade.
Há que se ter perseverança,
manter acesa chama da esperança
de que mais dias menos dias viveremos tão somente
sob o signo da bondade.





Imagens: jef

quarta-feira, 22 de abril de 2020

teus pelos


teus pelos arrepiam
quando sussuro em teus ouvidos
palavras mágicas de desejos
e ao tocar teus lábios perco os sentidos

liberta dos grilhões do medo
mulher com a libido agitada
monta sobre meu dorso
sedenta de prazer

J Estanislau Filho

Os Metalúrgicos

                                                            Imagem: Google


Em memória do líder sindical negro Joaquim José de Oliveira


“O Velho” – assim era chamado um antigo militante do Sindicato dos Metalúrgicos – estava segurando o microfone enquanto percorria a plenária com um olhar cinematográfico. Suas mãos tremiam e o coração batia descompassado. O Sindicato estava lotado e os aplausos soaram fortes como há muitos anos não acontecia. Um grito isolado ecoou no plenário:
     - Vai firme, companheiro!
     Antes de começar a falar com sua voz de trovão, os pensamentos povoaram a cabeça do Velho, cabeça de onde surgiam fios brancos de cabelo. Milhares de lembranças, em questão de segundos, como relâmpagos, tomaram conta de seus pensamentos. Lembrou dos anos ferozes de repressão; sindicatos sob intervenção; dos companheiros mortos, mutilados, exilados; um tempo de agonia e medo. Um tempo de silêncio; de grito reprimido. O Sindicato dos Metalúrgicos, palco de muitas lutas e conquistas; de debates, depois esvaziado por bombas e traidores. Ele indo para casa desolado. Depois, vendendo tempero de porta em porta e na igreja evangélica, pregando a libertação da classe trabalhadora.
     O Sindicato estava novamente lotado. Começava a voltar para as mãos de seus legítimos construtores. Difícil esconder a emoção. Mas, uma nova geração de metalúrgicos desconhecia o longo período de silêncio e medo que se abateu sobre os trabalhadores e que todos os dias “O Velho” percorria os caminhos solitários que levavam ao sindicato, certo de que “não há derrota definitiva para a classe operária”. Sob o silêncio da repressão ele continuava o seu trabalho de levar consciência e organização aos humilhados e ofendidos, na certeza de que um dia veria novamente a casa cheia. Sofrera humilhações, muitos riram em sua cara, fizeram deboches diante do sindicato vazio e do silêncio da classe operária. Contudo, como a aranha, que pacientemente tece a sua rede, para apanhar a sua presa, “O Velho” tecia a rede da organização sindical.
     Ele permaneceu por mais alguns segundos em silêncio, observando os companheiros ocupando todos os espaços do salão e da quadra do sindicato. Estava feliz. Mas, precisava falar. A voz estava embargada pela emoção e algumas lágrimas caíram sobre o microfone em sinal de cumplicidade.
   - O que está acontecendo com o “Velho”? - Perguntou um companheiro no ouvido de outro.
        - Estranho, parece que perdeu a voz.
       - Companheiros – vencendo o nó na garganta, “O Velho” iniciou seu discurso – devo confessar que estou emocionado. Depois de muitos anos que o nosso sindicato só não criou teias de aranha porque os faxineiros não permitiram, estou feliz vendo a casa cheia, vendo os companheiros assumindo os seus lugares, pois estas paredes e os alicerces desta casa foram erguidos com o suor e sangue dos trabalhadores. Só não digo que os metalúrgicos são como o filho pródigo que retornou à casa do pai, porque o filho pródigo saiu por vontade própria, enquanto muitos brasileiros foram expulsos. A casa que nos pertence voltou às nossas mãos e vamos cuidar dela com zelo, com organização e muita união, para que nunca mais nenhum aventureiro se aposse dela. Em todos estes anos fomos humilhados por generais traidores, que tiraram a vida de muitos companheiros; que nos expulsaram da nossa casa com seus tanques de guerra, com seus cães mestrados, para garantir os monopólios. Generais que nos impuseram o arrocho salarial, enquanto o custo de vida disparava.
     Parou um instante, observando a multidão que ouvia em silêncio. Suas mãos tremiam. Mas, as palavras saíam lúcidas e como balas iam diretas no coração do capitalismo. A multidão aplaudiu aos gritos de “trabalhador unido, jamais será vencido”.
    - Companheiros e companheiras – continuou, limpando o suor da testa com a mão - , assim como o boi tem os chifres e o burro tem os cascos, para se defenderem, os trabalhadores têm a greve.
    Fez um breve intervalo, para sentir o efeito das palavras. O sindicato quase veio abaixo. E continuou:
    “Nós somos o pivô da riqueza, mas, também somos o para-raio, pois tudo arrebenta nas costas dos trabalhadores. Nós produzimos a riqueza, mas o lucro fica com os patrões. Nós produzimos a fartura, mas vivemos na carência. Um trabalhador só come carne quando morde a língua. O poder é como uma árvore, quando nós sacudimos o seu tronco, a copa balança. Vamos sacudir as bases que sustentam a exploração, para derrubar o topo da pirâmide e distribuir a riqueza concentrada no topo. No momento estamos conquistando a liberdade de organização e de expressão, ainda não conquistamos a justiça. Ainda temos um longo caminho pela frente. Só alcançaremos a verdadeira vitória, que é a igualdade social, se acreditarmos em nossa força e em nossa união. Precisamos nos organizar diante da nova conjuntura que estamos construindo. Nós sacudimos a árvore da ditadura e seus galhos estão caindo, mas não se iludam, outras árvores virão, com novos métodos, para manter a mentira e a exploração. Demos um passo importante. Estamos vencendo uma batalha, mas a guerra pela liberdade e por justiça continua. Estou feliz. Vamos compartilhar este momento, contem comigo, sempre.”
     Aos gritos de “trabalhador unido, jamais será vencido”, os peões carregaram O Velho pelas dependências do Sindicato dos Metalúrgicos.


J Estanislau Filho


Do livro Crônicas do Cotidiano Popular - edição de bolso 2006

                                                                      Imagem: jef 

        




                                                                 Imagem: Google

terça-feira, 21 de abril de 2020

Mulheres Mulheres






Quisera dizer palavras definitivas às mulheres,
que as fizessem felizes hoje e para sempre.
Mulheres aos milhares, milhões, todas no mesmo barco do amor.
Às que se foram, que derramaram pranto e sangue pudessem retornar
e usufruir as conquistas do século vinte um, o século da igualdade de gênero.
Quisera dizer que "de todo amor não terminado
fomos pagos
em inumeráveis noites de estrelas". *
Ah, como eu queria dizer nesse dia internacional das mulheres, que este dia tornou-se desnecessário, pois "que o amor não é mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários". *
As que derramaram sangue pelas conquistas, retornaram e compartilham os dias sem preconceitos e discriminações,
que finalmente, homens e mulheres convivem em perfeita harmonia.
Que os grilhões se romperam e a liberdade bateu suas asas sobre a humanidade.
Quisera escrever uma poesia de encantamento, bela como a mãe que amamenta a filha, o filho.
Mas o poema não veio, a realidade não permitiu, "a família ser
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra". *

A poesia ainda sangra.

J Estanislau Filho

* Fragmentos do poema O Amor de Maicoviski. Em itálico e em negrito, numa adaptação livre




Imagens: jef

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Mãos que afaguei










A primeira mão que afaguei foi a de minha mãe.
Esta primeira carícia foi uma delícia, um êxtase.
Mamãe sorriu, enquanto acariciava-lhe a mão e sugava o leite

As mãos do meu pai, ríspidas e insípidas causaram-me estranheza.
Ao afagá-las tive a primeira experiência de rudeza.
Aprendi que nas mãos de calos podem ter enfeites

Afaguei mãos amigas que me conduziram nos caminhos da vida.
Minha professora e primeira mão que afaguei com paixão,
Mãos que de tão macias pareciam polidas.

O nome dela era Iracema, para mim a virgem dos lábios de mel,
Não tinha os cabelos negros como as asas da graúna, nem índia era,
Foi meu amor juvenil, um sonho, uma quimera

Amei Terezinha, colega de escola, cujas mãos sequer peguei,
Por ela andei perdido em doces devaneios,
Tinha as coxas mais lindas e pequeninos seios

Paguei para afagar as mãos de muitas putas,
Que me lançavam olhares de comércio ligeiro,
Que não me satisfaziam, nem me deixavam inteiro

Mãos clandestinas estenderam-me livros proibidos,
Escritos por mãos libertárias e que li com voracidade,
Que me ensinaram o amor pela humanidade

Depois afaguei com o amor mais puro e sincero,
As mãos da mulher companheira, amor sereno,
Que deixaram os meus dias plenos

Assim aprendi que o amor dos pais
São feitos de palavras e sinais
Que entendemos quando temos filhos

Quando afagamos suas mãozinhas,
Vemos em suas palmas tênues linhas,
Que são seus caminhos, seus trilhos



J Estanislau Filho








sábado, 18 de abril de 2020

Música





















Onde foi que o artista se inspirou
para compor este som?

Foi no vento
Foi nas águas
Foi no tempo
Foi nas mágoas

Foi nas esquinas da vida
na menina dos olhos
na esperança perdida

Onde foi?

Foi nos becos vazios
Na velocidade da bala
Na correnteza dos rios
Foi na magia da fala

Onde foi?

Foi no silêncio da noite
No brilho da lua
No claro do sol
Na zoeira do dia

Onde foi?

Na construção de cavernas
Tirando fogo das pedras
Na trajetória da flecha

Foi na Grécia
Foi em Roma
Foi na Bretanha
Na montanha dos macacos

Onde foi?

Foi nos desejos ardentes
Nos sonhos mais dementes
No sorriso inocente

Foi em Pasárgada
Na mansarda do rei

Onde foi que o artista se inspirou
para compor este som?


J Estanislau Filho





Imagens: Google


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Ex-presidente marca atual líder como ‘troglodita’ e diz que ele deve ser destituído do cargo






Jair Bolsonaro está liderando os brasileiros “para o matadouro” com seu tratamento criminalmente irresponsável no combate ao coronavírus, diz o ex-presidente do país Luiz Inácio Lula da Silva.

Em uma entrevista apaixonada ao ‘Guardian’ – que aconteceu quando o número de mortos no Brasil no Covid-19 chegou a 1.924 – Lula disse que, ao minar o distanciamento social e demitir o próprio ministro da Saúde, o líder “troglodita” do Brasil arrisca repetir as cenas devastadoras que acontecem no Equador, onde famílias tiveram que despejar cadáveres de seus entes queridos nas ruas.

“Infelizmente, temo que o Brasil sofra muito por causa da imprudência de Bolsonaro. Receio que, se isso crescer, o Brasil poderá ver alguns casos como aquelas imagens horríveis e monstruosas que vimos em Guayaquil”, diz o esquerdista de 74 anos.

“Não podemos apenas querer derrubar um presidente porque não gostamos dele”, admitiu Lula. “[Mas] se Bolsonaro continuar cometendo crimes de responsabilidade … [e] tentando levar a sociedade ao matadouro – que é o que ele está fazendo – acho que as instituições precisarão encontrar uma maneira de classificar Bolsonaro. E isso significa que você precisará ter um impeachment”.

Bolsonaro – um ex-capitão do exército orgulhosamente homofóbico já desprezado por brasileiros progressistas por sua hostilidade ao meio ambiente, direitos indígenas e às artes, bem como seus supostos vínculos com a máfia do Rio – alienou milhões a mais com sua postura de desprezo ao coronavírus, que ele menospreza como “histeria” da mídia e “um resfriadinho”.

Desde que a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia em 11 de março, o presidente do Brasil repetidamente afasta o nariz para o distanciamento social, primeiro incentivando e participando de protestos pró-Bolsonaro e depois com uma série de visitas provocativas a padarias, supermercados e farmácias. Durante um passeio desnecessário, Bolsonaro declarou: “Ninguém impedirá meu direito de ir e vir”.

Em março, o populista de direita chegou a sugerir que os brasileiros não precisassem se preocupar com o Covid-19, pois costumam banhar-se nos esgotos “e nada acontece”.

Tais medidas colocaram Bolsonaro em desacordo com seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, médico que virou político e foi demitido na quinta-feira depois de contestar o comportamento do presidente.

Enquanto isso, o filho político de Bolsonaro, Eduardo, levou a bola de demolição para os laços com o parceiro comercial mais importante do Brasil, a China, acusando os líderes do partido comunista de serem culpados pela crise do coronavírus.

As ações de Bolsonaro provocaram protestos noturnos de panelaços nas cidades de todo o país e desprezaram todo o espectro político.

“O coronavírus deve estar rindo demais”, escreveu Eliane Cantanhêde, colunista do jornal conservador Estado de São Paulo, sobre as travessuras de Bolsonaro nesta semana.

O governador de direita do estado mais populoso do Brasil, São Paulo, declarou o país em guerra contra o coronavírus e o “Bolsonarovirus”.

Lula, que governou de 2003 a 2010, disse que as ações “grotescas” de Bolsonaro estão colocando em risco vidas, “induzindo um pedaço da sociedade a contrair coronavírus”, ignorando as diretrizes de distanciamento adotadas pelo próprio Ministério da Saúde do Brasil.

“É natural que uma parte da sociedade não entenda a necessidade de ficar em casa ou o quão sério isso é – especialmente quando o presidente da República é um troglodita que diz que é apenas uma gripezinha”, diz Lula por videochamada da cidade brasileira de São Bernardo do Campo, onde está isolado após retornar de uma turnê pela Europa.

“A verdade é que Bolsonaro não tem equilíbrio psicológico para liderar um país. Ele não pensa no impacto que seus atos destrutivos têm na sociedade. Ele é imprudente”, insiste.

Bolsonaro diz que sua oposição ao distanciamento decorre de seu desejo de proteger os cidadãos mais vulneráveis ​​do Brasil e seus empregos.

Depois de demitir seu ministro da Saúde, Bolsonaro afirmou estar lutando pelo “povo brasileiro sofredor” e alertou que o coronavírus ameaçava se tornar “um verdadeiro moedor de carne”.

“Em nenhum momento o governo abandonou os mais necessitados… As massas empobrecidas não podem ficar presas em casa”, disse Bolsonaro. “Eu sei… a vida não tem preço. Mas a economia e o emprego devem voltar ao normal”.

Lula, que nasceu na pobreza rural e ganhou aplausos internacionais por sua luta contra a fome, zomba da ideia de Bolsonaro ser um defensor dos pobres.

“Bolsonaro só está interessado em si mesmo, em seus filhos, em alguns generais bastante conservadores e em seus amigos paramilitares”, afirmou, referindo-se a alegações de longa data sobre os laços familiares do presidente brasileiro com a máfia do Rio de Janeiro.

“Ele não fala com a sociedade. Bolsonaro não tem ouvidos para ouvir. Ele só tem boca para falar bobagem”, diz Lula.

Embora o ex-presidente do Brasil aponte que o impeachment era uma opção, ele admite que atualmente não há apoio para isso no congresso do país, como ocorreu quando sua sucessora, Dilma Rousseff, de esquerda, afastada em 2016.

Ele disse que muitos políticos de direita acham mais prudente permitir que Bolsonaro continue sabotando suas chances de reeleição em 2022 por sua própria incompetência – antes de eleger outro presidente da direita.

Lula, que foi afastado da eleição de 2018 após ser preso por acusações de corrupção disputadas, sinalizou que ele não seria o candidato de esquerda nessa disputa.

“Perdi meus direitos políticos, então não estou falando de mim mesmo”, disse Lula, que foi libertado em novembro de 2019 após 580 dias de prisão, em decisão da suprema corte.

“Mas vou lhe dizer uma coisa, você pode ter certeza de que a esquerda estará governando o Brasil novamente depois de 2022. Não precisamos conversar sobre quem é o candidato agora. Mas votaremos em alguém comprometido com os direitos humanos e que os respeite, que respeite a proteção ambiental, que respeite a Amazônia… que respeite os negros e os indígenas. Vamos eleger alguém comprometido com os pobres deste país”.

Observadores da política brasileira têm menos certeza de que Bolsonaro está totalmente baqueado – ou que a esquerda está bem posicionada para substituí-lo.

Alguns acreditam que Bolsonaro – um dos quatro líderes mundiais ainda menosprezando o coronavírus ao lado dos presidentes autoritários da Nicarágua, Bielorrússia e Turquemenistão – eliminou suas chances de um segundo mandato com sua resposta à crise.

Mas Thomas Traumann, comentarista político e ministro das Comunicações de Dilma, disse que essa certeza era prematura: “Faltam dois séculos até 2022”.

Traumann disse que ficou claro que Bolsonaro havia se enfraquecido severamente – mas até agora políticos de direita, como os governadores do Rio de Janeiro e São Paulo, pareciam capitalizar mais com os erros de Bolsonaro.

E, finalmente, o Brasil está entrando em semanas tão imprevisíveis e potencialmente tumultuadas que é impossível saber quais serão as consequências políticas.

“Sabemos que Bolsonaro sairá mais fraco. Sabemos que seus erros não serão perdoados”, diz Traumann.

Como as fichas políticas cairiam depois disso é uma incógnita, acrescenta Traumman, comparando a situação do Brasil ao início de uma montanha-russa.

“Tudo o que sabemos é que muitos loops estão por vir. Estamos nos mudando para um mundo desconhecido. Estamos navegando na escuridão.”

Lula disse ter certeza de uma coisa: que em um momento de crise nacional, o Brasil precisava de um líder capaz de unir seus 211 milhões de cidadãos.

“Um presidente deve ser como o maestro de uma orquestra”, disse ele. “O problema é que nosso maestro não sabe nada sobre música, não consegue ler uma partitura e nem sabe como as batutas funcionam”.

“Ele está tentando tocar música clássica com os instrumentos que você usa para tocar samba. Ele transformou sua orquestra em loucura – uma torre de Babel”, diz Lula. “Ele não sabe o que está fazendo no palácio presidencial… nem mesmo Trump o leva a sério”.





quinta-feira, 16 de abril de 2020

Prova de vida





De tempos em tempos aposentados e pensionistas precisam provar que estão vivos. Sem isso, seus salários, majoriitariamente uma merreca, são suspensos.
     João Batista está aposentado há mais de vinte anos e desde que a lei foi sancionada, vai todo ano a agência bancária realizar a sua prova de vida. Afirma que a lei é justa, porque protege o erário, evitando que oportunistas recebam indevidamente. A questão é ontológica, meu amigo, me diz Batista, batendo o nó dos dedos sobre a mesa. Na realidade eu preciso provar todos os dias que estou vivo, pois o penso, logo existo não me basta, completa. Respondo que não tinha pensado sob este ângulo, pois não tenho espírito filosófico e emendo ser muito desgastante enfrentar a burocracia. Não basta o atestado de óbito? Morreu, interrompe-se o benefício!
     Entender o sentido da vida não é tão complicado quanto dizem alguns, digo ao amigo, que balança a cabeça num gesto de dúvida. Nós é que complicamos, especialmente os políticos e os que só pensam em custo-benefício; acumular patrimônio. E sabe porque complicam? Para que só eles entendam como funciona o sistema. João Batista me escuta com atenção. E responde: este sistema não mexe com os meus sentidos. A vida é o centro de minhas reflexões.  Existe algo maior, muito além das mesquinharias humana, por exemplo: a ciência, meu caro, não derrotará o virus. Ele é mutante. É até possível ao sistema humano acabar com a fome, reduzir ou até eliminar a desigualdade, mas e a vida? De onde viemos, para onde vamos? Vale a pena viver? Ora, João!, respondo com um gesto inútil, apesar dos desatinos, dos nossos desatinos, a vida é uma dádiva, não importa se Deus existe ou não, aqui estamos e há beleza ao redor. João refuta, com seu espírito filosófico: - o que me mantém vivo são as dúvidas, para elas estou sempre à procura de respostas, como esta de Sartre: a existência precede a essência? Para Sartre, sim. Não tenho esta certeza. Estou vivo, não certo disso, mas a minha essência pode me anteceder, porque não? Ah, meu caro João, respondo com um sorriso irônico, acho isso uma perda de tempo! Estamos vivos sim, amigo, mas agora preciso ir a agência bancária para provar, senão, você já sabe o que pode me acontecer. Concordo, responde João com um misto de dúvida e certeza, vamos lá, dura lex sed lex...
   
J Estanislau Filho

Imagens: jef

terça-feira, 14 de abril de 2020

Tamanho não é documento






Para o meu neto Raul



Quando o Raul nasceu ele era pequeno.
Imaginem um grão de mostarda. Raul era maior, bem maior.
Comparado ao grão de mostarda Raul era grande, enorme. Um gigante!
Agora imaginem a mãe de Raul, o pai, os avós, tios e tias...
Comparando assim Raul era pequeno. Nesse tempo Raul não falava.
Sempre que queria comunicar alguma coisa, como está com fome ou sede, ele gritava, esperneava e até chorava.
Até que um dia Raul cresceu e foi pra escola...
Aprendeu a ler e escrever.
Ah, e desenhar. E principalmente brincar!
Até que um dia chegou o coronavírus. Menor, mas muito menor que um grão de mostarda. O coronavírus é tão pequeno, mas tão pequeno que a gente nem consegue enxergar a olho nu. Só com microscópio!
Como pode um bichinho assim, pequenino assim, trazer tanto medo às pessoas a ponto de obrigá-las a ficarem em casa? Das escolas fecharem?







 Imagens: jef




J Estanislau Filho