terça-feira, 8 de outubro de 2024

Chaves da vaguidão

Fernando Sabino





Era um bar da moda naquele tempo em Copacabana e eu tomava meu uísque em companhia de uma amiga. O garçom que nos servia, meu velho conhecido, a horas tantas, se aproximou:


— Não leve a mal eu sair agora, que está na minha hora, mas o meu colega ali continuará atendendo o senhor.


Ele se afastou, e eu voltei ao meu estado de vaguidão habitual. Alguns minutos mais tarde, vejo diante de mim alguém que me cumprimentava cerimoniosamente, com um movimento de cabeça:


— Boa noite, Dr. Sabino.


Era um senhor careca, de óculos, num terno preto de corte meio antigo. Sua fisionomia me era familiar, e embora não o identificasse assim à primeira vista, vi logo que devia se tratar de algum advogado ou mesmo desembargador de minhas relações, do meu tempo de escrivão. Naturalmente disfarcei como pude o fato de não estar me lembrando de seu nome, e me ergui, estendendo-lhe a mão:


— Boa noite, como vai o senhor? Há quanto tempo! Não quer sentar-se um pouco?


Ele vacilou um instante, mas impelido pelo calor de minha acolhida, acabou aceitando: sentou-se meio constrangido na ponta da cadeira e ali ficou, ereto, como se fosse erguer-se de um momento para outro. Ao observá-lo assim de perto, de repente deixei cair o queixo: sai dessa agora, Dr. Sabino! Minha amiga ali ao lado, também boquiaberta, devia estar achando que eu ficara maluco.


Pois o meu desembargador não era outro senão o próprio garçom — e meu velho conhecido! — que nos servira durante toda a noite e que havia apenas trocado de roupa para sair.


Encontro com João Leite num bar em São Paulo. Sou apresentado à sua roda habitual de uísque ao entardecer. São seis ou oito, cada um atrás de seu copo. São alegres, parecem bons sujeitos — mas, como de hábito, não chego a guardar o nome, nem sequer a fisionomia de cada um. Quando, mais tarde, me ergo para sair, João Leite me acompanha até a porta, e só então me dou conta de que não me despedi de ninguém.


— Espere um instante.


Volto até a mesa e me despeço, apertando a mão de um por um:


— Até logo. Muito prazer, hein? Até logo. Muito prazer.


João Leite me aguarda junto à porta:


— Que é que você foi fazer?


— Me despedir de seus amigos.


Ele solta uma gargalhada:


— Aqueles não são os meus amigos. Meus amigos estão na mesa ao lado. Aqueles eu nem conheço.


Esses e outros casos são assunto de conversa, ilustrando a minha desastrosa vaguidão, enquanto almoço com Caio Mourão e sua mulher, num restaurante de Iguaba Grande. Eles têm uma casa a cavaleiro do lago, a alguns quilômetros daqui, e vieram em seu carro encontrar-se comigo, que estou apenas de passagem por estes lados.


— Olha que eu sou bem distraída — comenta ela, rindo. — Mas você ganha de mim.


Agradeço, sorrindo modestamente. Não chego a ser um Antônio Houaiss, por exemplo, que já foi atropelado cinco vezes e já entrou pelo espelho adentro na sala de espera de um cinema. Mas tenho feito das minhas por este mundo de Deus e reconheço que sou dos bons.


Ao fim do almoço, me despeço e tomo o meu carro, deixando o casal amigo ainda no restaurante.


Restaurante onde os dois devem estar até agora, vinte e quatro horas mais tarde: isso foi ontem, e somente há poucos instantes descobri que distraidamente havia metido no bolso e trazido comigo para o Rio o molho de chaves de Caio Mourão, largado por ele sobre a mesa. Chaves do carro, da casa, da gaveta, do cofre, da mala, de tudo — são umas oito, de todos os tamanhos. E o chaveiro, de prata, dos mais belos, acredito que tenha sido feito por ele próprio, grande joalheiro que é.


 


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“Fernando Sabino nasceu em 12 de outubro de 1923, em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. Decidiu ser escritor com 10 anos, e, dois anos depois, publicou seu primeiro conto. Mais tarde, formou-se em Direito, escreveu para alguns periódicos, foi cineasta e morou em cidades como Nova Iorque e Londres.


O romancista e cronista, que faleceu em 11 de outubro de 2004, no Rio de Janeiro, fez parte da terceira fase do modernismo brasileiro (ou pós-modernismo), e ficou famoso por suas crônicas irônicas e bem-humoradas, bem como pela publicação dos romances ‘O encontro marcado’ e ‘O grande mentecapto'”. (Fonte: Brasil Escola)


Um comentário:

  1. Parabéns, Estanislau, amigo querido, pela sua reflexiva crônica! Beijos ternos

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