Nos anos 70, após o Golpe, já preso político, os militares decidiram que meu pai deveria morrer. Escolheram a data, que seria o dia das mães. Assim o presenteariam, com a generosidade de quem dá as duas faces; uma última visita à sua mãe e também sua própria morte; cujo objetivo era eliminar da terra, tipos como ele.
Viu minha Nona pela última vez neste dia, que por conta de seus problemas de saúde, e já sem nenhuma memória, não sabia que era ali à sua frente, seu quinto filho, Léle.
Ao retirarem suas algemas e o soltarem no bairro da Lapa, previam que ele fugiria, com toda certeza, pois estava em seu lugar, conhecia tudo; e aí teriam a justificativa para atirar, deixando assim, um mundo muito "melhor" para a humanidade.
Minha Nona não mais o conhecia. Não mais... Estava em seu mundo de segredos, em sua rede de pequenas distâncias... Ele insistiu, tentou, brincou... Nada a fazia voltar desse jardim de mães, que já se foram, muito antes de se ir.
Na última tentativa cantou: ""Quel mazzolin di fiori... " Uma "cançoneta" do campo.
E para sua surpresa, ela o olhou, fez contato... Cantou!
Cantaram juntos.
Não sei se isso se chama de doce ou de cruel lembrança... Nunca sei onde se colocam essas histórias em mim. Mas sempre que lembro disso, sou tomada por uma inquietude de fazer gritar a alma.
A música, era a preferida de minha Nona, e, até hoje, sempre que a família está junto, é cantada por todos. É sempre um momento onde não temos nomes, idade, ideologias... Nada temos, nada somos, além de ser gente cujo sangue sabe de que rota é feita. Nisso consiste a mágica sonora; o sabor desse lugar em nós.
Meu pai nunca aceitou ser exilado. Não quis ser trocado pelo embaixador, quando teve a oportunidade e seu nome configurou na lista. Escreveu de próprio punho sua recusa em sair, alegando nada ter feito que envergonhasse seus filhos e seu Brasil. Carta que minha mãe teve que endossar, pois para os milicos, ele não podia estar bem da cabeça... Quem é que prefere ficar preso, tendo a oportunidade de ir?
Quando perguntado por mim sobre esse assunto, justifica dizendo: Tica, para ser banido, a gente tinha que assinar uma carta onde dizíamos ter feito muito mal ao país, que a gente não gostava do país... Esse tipo de coisa, sabe? - Oras, qual foi o mal que fiz, se justamente por querer o bem é que estava ali.. ?
Portanto, quem pensa assim, pensa em fugir?
Depois da visita, se entregou. Apresentou-se ao camburão. O cano da metralhadora dentro de sua boca, e a ira dos policiais ao vê-lo de volta, não puderam com os rumos da história.
Uma história de muitas mortes, de grandes renascimentos.
Por isso, hoje, especialmente, há que se comemorar a VIDA! Todas as vidas que ganhou e que fizeram das nossas ainda mais bonita
A foto do menino empoeirado, com semblante bravo e olhar sonhador é prá contrapor e despir uma de suas histórias que contei aqui... É prá afirmar e reafirmar a sempre criança bonita e valente que vive no meu herói, que hoje faz seus 90.
Salve a vida pai! Grandiosa vida!
Rosa Maria Martinelli
Um texto vivo e emocionante abordando vidas que se desmilinguiram na frase negra do país. Num país de instituições tão frágeis e inoperantes, numa democracia de faz de conta, é bom ler e refletir para evitar novos e similares capítulos.
ResponderExcluirGrato pela leitura atenta, Arnaldo.
ExcluirSimplesmente lindo, não apenas pelo texto, mas por seu significado, e tão atual, embora em outros dias e outros contextos,porém onde muitos pagaram e pagam com prisão e outros com a própria vida!
ResponderExcluirBom dia nobre poeta. Uma grande história que nos sensibiliza e comove, acima de tudo celebrar a vida isso é divino, aplausos para ambos, felicidades.
ResponderExcluirMARIA MENDES / RJ
Obrigado, Rosa,por me permitir contar esta história aos meus poucos leitores.
ResponderExcluirObrigado Maria José, amiga, parceira de letras e de lutaas.
ResponderExcluirQual era o valor da vida, em tempos de ditadura?! Tantos sonhos abortados, famílias desfaceladas! Parabéns pelo texto, traz a dor e graça de um renascimento. Obrigada, querido Estanislau, pela leitura. Abraços.
ResponderExcluirObrigado, Eneida, em nome de Rosa e de Seu Raphael. Abraço
ExcluirUma lição de vida,isso é só para os fortes!
ResponderExcluirÉ isso aí, uma lição de vida. Grato
ExcluirObrigada, amigo Estanis, por esta beleza de obra!!! Angela Lara
ResponderExcluirTexto simplesmente lindo e repleto de emoção
ResponderExcluirGratidão.
ExcluirJ. Querido! Sou muito grata por compartilhar um pedacinho desse pai com todos por aqui, nesse espaço bonito das letras. Honrada com esse carinho. Meu pai é uma criança adorável, que nos faz a existência valer a pena.
ResponderExcluirAgradeço muito muito querido! E a todos que por aqui nos aconchegaram com tanta delicadeza.
Abraços!
Rosa, eu quem agradece a sua presença e do companheiro de lutas pela democracia, Raphael, por me permitir compartilhar com meus poucos leitores, a história deste bravo militante, com seu exemplo de dignidade. Abraço.
ExcluirQuerido J. quanta gratidão! Estar aqui no teu espaço bonito das letras só pode me honrar.
ResponderExcluirMais ainda, observar o carinho de teus leitores, que aproveito para agradecer a delicadeza e acolhimento com um dos pedacinhos da história do meu pai, que é uma criança de noventa e dois hoje.
Abraço apertado!
Grata por isso.
Obrigado, mais uma vez, Rosa, por me permitir fazer parte, ainda que, virtualmente, de sua vida e da vida desta família incrível, a sua (nossa) família. Abraço, desse tamanho, ó...
ExcluirCoisa para gente grande e lutadora, adorei, Stan, abraço!
ResponderExcluirVerdade, Luiza, abraço dos fortes.
ExcluirBelíssima história,escrita com arte. Parabéns
ResponderExcluirOlá Ema, boa noite. Obrigado pela amável presença. Abraço, sempre bem-vinda
ExcluirMe emocionei, texto lindo!
ResponderExcluirObrigado, nora. Seja sempre bem-vinda.
ExcluirÉ o resgate dos acontecimentos que ficam escondidos no amago das pessoas que sofrem e sofrem com os atos tresloucados de pessoas que a título de salvar a pátria, liquidaram com famílias que tinham na mente o melhor para a nação.Estanislau sabe muito bem apresentar sucintamente um pequeno detalhe da vida. Lindo texto mas muito pesado nos sentimentos que provoca em quem lê.
ResponderExcluirObrigado pela generosa leitura, Carlos Wagner. Sempre bem-vindo!
ResponderExcluir