quinta-feira, 21 de março de 2024

O fim do mundo




Imagem:Google

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste – mas que importância tem a tristeza das crianças?
Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos — além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus — dono de todos os mundos — que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos — segundo leio — que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos – insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.
Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês.


Cecília Meireles


Imagem: Google


Nasceu em 1901 no Rio de Janeiro e viveu até os 63 anos. Ela disse em sua última entrevista — ao jornalista Pedro Bloch, publicada em maio de 1964 na revista Manchete — que seu vício terrível era gostar de gente.

Teve sua infância marcada por perdas profundas. Seu pai e sua mãe morreram quando ela ainda era criança. Morte prematura também tiveram seus irmãos Carlos, Vítor e Carmen. Cecília Meireles foi criada por sua avó Maria Jacinta Benevides, açoriana, personagem recorrente em sua obra.

A maior tragédia de Cecília Meireles ainda estaria por vir: o suicídio de seu marido, o ilustrador português Fernando Correia Dias, fato que transformaria a visão de mundo da poeta. Correia Dias suicidou-se em casa, em 1935, enquanto as filhas se preparavam para os festejos do Dia da Bandeira.

“Há muitas mortes por detrás dessa morte. E não foi apenas um suicídio: foi também um assassinato. Posso eu viver muito tempo; pode minha existência tomar os mais inesperados rumos — mas essa noção da inutilidade humana; esta indiferença pela esperança, este desapego da lógica farão de mim cada vez mais uma criatura sem raízes na terra, prescindindo de tudo e à mercê dos casos que a queiram transportar”, escreveu a poeta a Diogo de Macedo, amigo português. (Carta publicada pela revista Terceira Margem, Porto, Portugal, 1998).

Cecília Meireles foi poeta, jornalista, cronista, escreveu para crianças, foi professora. Também esteve engajada na defesa de uma educação pública, laica e de alto nível como caminho para diminuir as desigualdades sociais do país.


14 comentários:

  1. Céus que turbulência, uma Parafernalha de fatos, ocorrências e acontecimentos... Etc., no curso da vida de um(a) poeta! Quero viver a Cecília Meireles um pouco mais...
    Grato Estanislau, que leitura agradável!

    ResponderExcluir
  2. Que crônica maravilhosa! Só podia ser Cecília

    ResponderExcluir
  3. Maravilhosa e saborosa crônica! Obrigado, meu amigo! A poeta nunca deixou a desejar! Seus finos traços nos encantam a todos a vida toda!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grato pela presença, meu amigo Basílio

      Excluir
  4. Muito bom, conhecer fatos desconhecidos da vida de nossos escritores prediletos. Gratidão

    ResponderExcluir
  5. 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽

    ResponderExcluir
  6. essa história é muito linda prescisa ter tempo pra ler e entender ela toda , mais me desculpe eu não acredito no fim do mundo, só sei que que o povo é esta tendo fim todos os dias.

    ResponderExcluir
  7. Gostei da sua postagem! Sua perspectiva acrescenta profundidade ao tópico. Mal posso esperar por mais notícias suas. Aprenda sobre a criação e desenvolvimento do Aviador em nosso blog informativo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Irei visitar o seu blog. Grato 🙏

      Excluir