sábado, 24 de agosto de 2024

A triste (im)potência dos super-ricos

 



Súbito e bruto, o iate invadiu as águas e investiu contra os golfinhos. Intuí o gozo do piloto; a compulsão por velocidade, ruído e ego. É preciso suprimir os muito ricos e seu vazio medonho, por um mundo de frugalidade privada e luxos públicos




Por George Monbiot, no The Guardian | Tradução: Glauco Faria


Em uma manhã calma e bonita na costa do sul de Devon, na semana passada, eu estava observando um pequeno grupo de golfinhos do meu caiaque. Eu os havia avistado a 800 metros de distância, alimentando-se e brincando na superfície. Estavam vindo em minha direção; me sentei na água e esperei.

Mas, ao contornar o promontório, surgiu em velocidade máxima um gigantesco wankpanzer marítimo bimotor. Embora os golfinhos estivessem bem visíveis e houvesse muito tempo para parar ou evitá-los, ele avançou em direção a eles a toda velocidade. Ao passar, evitando-os por alguns metros, o piloto virou-se e olhou para eles, mas não controlou a velocidade. Os golfinhos mergulharam. Reapareceram brevemente, bem mais longe da costa, e depois disso não mais os vi. Pude ouvir o barco muito depois de ele ter desaparecido: parecia um avião a jato. Só Deus sabe o sofrimento que ele pode ter causado aos golfinhos, altamente sensíveis ao som.

Fui dominado por duas sensações. Uma, obviamente, foi de repulsa. A outra foi de perplexidade: onde está a alegria? Se há uma coisa que quase todo mundo ama e – se tiver sorte – gosta de ver, são os golfinhos. Não conheço ninguém que não queira parar e observar. Embora eu já tenha tido essa sorte dezenas de vezes, por estar sempre no mar, nunca deixo de achar emocionante. A euforia permanece comigo por semanas.

Mas para o piloto daquele barco, ao que parecia, o mar era apenas uma estrada para correr em direção ao horizonte. Isso me fez lembrar de algo que já vi muitas vezes: o efeito amortecedor da riqueza.

Para possuir e operar um barco de 35 pés desse tipo, é preciso ser extremamente rico. Ele é vendido por cerca de £ 300 mil [R$ 2,1 milhão], além dos custos extraordinários de atracação, garagem no inverno, manutenção e combustível. Tanto dinheiro não seria para comprar prazer? Se não, qual é o objetivo?

A riqueza extrema pode prejudicar seriamente o prazer. Como Michael Mechanic documenta em seu livro, Jackpot, há dois grupos de pessoas que precisam pensar em dinheiro o tempo todo: os muito pobres e os muito ricos. Uma riqueza imensa o possui tanto quanto você a possui: administrá-la torna-se um trabalho de tempo integral. Você não sabe em quem confiar; pode começar a imaginar que seus amigos não são amigos de fato; isso pode dominar e envenenar seus relacionamentos familiares. Isso pode esvaziá-lo social, intelectual e moralmente.

Mas acho que pode haver um outro aspecto corrosivo da riqueza que não foi amplamente discutido. A grande riqueza nivela o mundo. Se você pode ir a qualquer lugar e fazer qualquer coisa, tudo está aquém do horizonte. Você ultrapassa rapidamente o local e o particular, em direção a um ideal de luxo que aumenta infinitamente: a melhor marina, o iate maior, o jato particular, a supercasa. O horizonte da satisfação pode recuar diante de você. O lugar não tem significado, a não ser como um cenário que pode impressionar os amigos em quem você não confia mais. Mas quem se impressiona com dinheiro não merece ser impressionado.

Também parece haver uma conexão entre velocidade, ruído e ego. Deve haver algo não resolvido em uma pessoa que sente a necessidade de encher o céu de barulho e chamar a atenção de todos por quem passa, seja na estrada ou na água. E sim, quase sempre é um “ele”. Estudos mostram uma associação entre conceitos tradicionais de masculinidade, velocidade e direção perigosa. Não é de surpreender que as tentativas de restringir o comportamento ao volante, como radares de velocidade e bairros com pouco tráfego, tenham se tornado temas tão potentes nas guerras culturais, animadas por supostas ameaças aos papéis tradicionais de gênero e às relações de poder.

Ao viajar de caiaque, percorro menos mar e preciso ficar mais perto da costa do que as pessoas que passam correndo em barcos a motor. Mas tenho uma intimidade de conexão com os lugares e os sistemas vivos que me cercam, com os sons da natureza, com sinais sutis demais para serem vistos em alta velocidade – enguias salpicando a superfície, as barbatanas dorsais do robalo perseguindo-as, groselhas-do-mar holográficas suspensas na coluna d’água, búzios comendo ascídias-estrela nas rochas expostas em águas baixas – da qual eles provavelmente serão privados. Não consigo imaginar que o dispersor de golfinhos estivesse se divertindo mais em seu megafone de R$ 2,1 milhões do que eu em meu caiaque, comprado de segunda mão por 300 libras [R$ 2,1 mil]. Por quê? Porque não consigo imaginar uma alegria maior do que a que sinto no mar.

Já conheci algumas pessoas muito ricas. Algumas são animadas, curiosas e engajadas, mas entre as outras tenho notado repetidamente a mesma coisa: um embotamento de espírito. Há uma sensação de que nada é suficientemente estimulante para prender sua atenção; que elas perderam a capacidade de se maravilhar. Aquele barco barulhento proclamou que seu proprietário estava entre os vencedores. Mas como se pode chamar alguém que não consegue apreciar a visão dos golfinhos, se não um perdedor?

Em nome da fantasia da transcendência, da fuga da conexão com outras vidas, estamos queimando nossos sistemas de suporte à vida. Consentimos com o sistema devorador da Terra e sugador de almas, a que chamamos capitalismo, porque acreditamos erroneamente que somos todos milionários, temporariamente restringidos. Um dia, nós também poderemos viver a vida sem aborrecimentos dos ultrarricos.

É surpreendente o quanto os sobrevalorizamos. No litoral, em Salcombe, um amigo pintor-decorador dedica grande parte de seu tempo à reforma interminável de segundas residências. Elas ficam vazias durante a maior parte do ano. Mas, segundo ele, seus clientes deixam o aquecimento ligado e, muitas vezes, também as luzes, para criar a impressão de que alguém está em casa. Há três anos, este distrito declarou uma crise de moradia, mas ainda assim permitimos que os muito ricos abocanhem as casas locais e as deixem vazias, enquanto queimam combustível como se não houvesse amanhã. Assim como o dono do barco dispersou os golfinhos, os muito ricos destroem comunidades, privam as pessoas de moradia e ameaçam, em última instância, nos expulsar do nicho climático humano, ou seja, a faixa de temperatura que nos permite viver.

Devemos buscar uma riqueza de comunidade, de conhecimento, de admiração, de vida, de amor: uma riqueza que não empobreça os outros. Não devemos buscar o luxo privado, mas a suficiência privada e o luxo público.

No entanto, à medida que bilionários vazios e raivosos financiam Donald Trump, podemos estar prestes a descobrir o quanto eles podem nos prejudicar. A democracia, a distribuição justa de recursos, a paz de espírito e um planeta habitável dependem da contenção do poder dos muito ricos: seu barulho, sua ocupação de nosso espaço comum e sua intrusão em tudo o que nos é caro.


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BILIONÁRIOS, CAPA, CAPITALISMO, CAPITALISMO E ALIENAÇÃO, CAPITALISMO E DEVASTAÇÃO, COMUM, DESIGUALDADE, DESIGUALDADES, DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA, FRUGALIDADE, LIMITAÇÃO DA RIQUEZA, LUXOS PÚBLICOS, PODER DOS SUPER-RICOS, SUPER-RICOS, SUPRESSÃO DOS SUPER-RICOS, ULTRALIBERALISMO, ULTRARRICOS



Fonte: https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/triste-impotencia-dos-ultrarricos/

domingo, 18 de agosto de 2024

Aforismos


Imagem: Jefil




De volta às raízes


Foram muitas vezes,
que ouvi vozes
sussurrando em meus ouvidos, 
para retornar às minhas raizes.


Hoje mais sereno ,
hoje mais sábio,
depois de refletir meses,
retorno ao terreno 
alegre e sóbrio


Imagem: Jefil


Canção de silêncio


A poesia me sugeriu 
compor uma canção 
de amor pleno 
com as notas do coração.

Uma canção de silêncio 
sem ofensas e opressão

Imagem: Jefil



Mel amigo

Cuide bem de seu quintal,
sítio, fazenda, chácara,
coisa e tal …
a natureza não falha:
flores 🌷 vão desabrochar 
              e as abelhas,
agradecidas irão te visitar,
para o mel amigo oferecer

Imagem: Jefil



faz de conta

faz de conta que és feliz
faz de conta que não mentes para outrem
nem pra ti
que não te enganas com álibis
que de teus lábios
brota sorriso
que em tua pele
a brisa acaricia
que de tua boca
só palavras sinceras
são proferidas
faz de conta que só belezas esperas


J Estanislau Filho

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Meus Agradecimentos aos Mecenas da Cultura Popular





     O apoio dos mecenas da cultura popular foi fundamental na publicação de meus onze livros. Seja na compra de um exemplar ou em pacotes de cinco ou mais livros, com pagamento antecipado. Antecipação que viabilizou o pagamento de serviços gráficos.

      Os espaços de lançamento, que geram outros custos, como coquetel, convites, entre outros, não constituíram ônus, pois sempre procurei as instalações de órgãos de governo, nos municípios e no estado. Contei, também, com o apoio de mecenas, na preparação dos coquetéis, recepção e venda de livros.  Músicos amigos colocaram seus talentos nesses eventos, gratuitamente. 


     MEUS  AGRADECIMENTOS  AOS MECENAS DA CULTURA POPULAR


J Estanislau Filho


PUBLICAÇÕES: 


1984

1987
1991
2006
2009
2009
2011
2012
2015
2015
2021


sexta-feira, 9 de agosto de 2024

GRAFITAGEM

 



GRAFITAGEM


     Escolheu os tubos de tinta como quem ia grafitar o mundo. Olhos profundos, cabelos em desalinho, mãos bonitas de longos dedos, olhar perdido nos tantos tubos, como se eles fossem macios e inexpressivos novelinhos de lãs coloridas. Vestia um blusão de lã marrom, quente para aquele verão de meio dia. Carregou tudo na mochila de brim e andarilhou pela noite à procura de um muro. Entrou, numa rua deserta, um "murin branquin". Começou a grafitar um fuzil, de enorme boca negra, que cuspia pacíficas flores. 

     O carro negro, que passou veloz, cuspiu balas mais velozes que desfiguraram o fuzil, despetalaram as flores, vararam o estômago vazio e explodiram o coração assustado. Morreu fazendo poemas e receitas de bolo em um sanatório para doentes especiais. 



O Desassossego dos Anjos é composto por minicontos, que segundo o autor, são para ‘acabar com a hipocrisia‘. São textos impactantes e atemporais, que contam trajetórias de personagens, sem necessariamente detalhar cenas e épocas, afirma.


Sobre Hermes Peixoto





Agrônomo aposentado e escritor dono da cadeira 32 da Academia Literária do Recôncavo e também imortalizado na recém instituída Academia Cruzalmense de Letras, Hermes Peixoto já lançou outros quatro livros: Viagens de Primavera Segundo o Senho Agá (contos e crônicas), Contos Íntimos em Tempos Díspares (poesias), Vultos e Imagens do Cruzeiro das Almas e A História Política do Cruzeiro das Almas (cordel). Também é editor das respectivas revistas: Reflexos de Universos e da Aler (Academia Literária do Recôncavo).


Quem desejar adquirir o novo trabalho de Agá Pê, pode mandar mensagem no direct (clique no link) da Casa da Cultura Galeno d’Avelírio.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Baú de lembranças

 


Imagem: Jefil


PRÓLOGO



Perguntas de um trabalhador que lê


Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?
Nos livros estão nomes de reis; os reis carregaram pedras?
E Babilônia, tantas vezes destruída, quem a reconstruía sempre?
Em que casas da dourada Lima viviam aqueles que a
edificaram?
No dia em que a Muralha da China ficou pronta,
para onde foram os pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo:
quem os erigiu? Quem eram
aqueles que foram vencidos pelos césares? Bizâncio, tão
famosa, tinha somente palácios para seus moradores? Na
legendária Atlântida, quando o mar a engoliu, os afogados
continuaram a dar ordens a seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César ocupou a Gália.
Não estava com ele nem mesmo um cozinheiro? Felipe da
Espanha chorou quando sua frota
naufragou. Foi o único a chorar?
Frederico Segundo venceu a guerra dos sete anos. Quem
partilhou da vitória?
A cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes comemorativos? A cada dez anos
um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas informações.
Tantas questões.

Bertolt Brecht




1

“A cultura é todo o resultado da atividade humana, do esforço criador e recriador do homem, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com os outros homens” Paulo Freire


Em 1974 dei os meus primeiros passos, que culminariam no meu engajamento nos movimentos sociais e na política. Três situações foram decisivas: a literatura; a fábrica e o cinema.

A literatura, que praticava desde que fora alfabetizado descortinou um horizonte na minha capacidade de refletir sobre fatos históricos, além de me levar aos primeiros rabiscos.

A fábrica, na formação de minha consciência de classe, que me levaria à militância sindical e política.

O cinema,  me propiciou o contato com o movimento estudantil e a necessidade de me organizar em coletivos.

À partir dos oito anos de idade comecei a "devorar" livros. Lia tudo que tinha em mãos: história em quadrinhos, livros de bolso, fotonovelas, clássicos... Adulto, fui trabalhar numa fábrica, daí ao sindicato foi um pulo. Foi no Sindicato dos Metalúrgicos de BH e Contagem, em 1976, que dei início à minha participação, ao lado de muitos companheiros e companheiras, na organização da oposição sindical à diretoria da época, exercida por interventores nomeados pela ditadura. Em 1979 aconteceu a grande greve dos metalúrgicos, que não ocorria desde 1968. Foi o resultado de mais de dois anos de um trabalho clandestino de formiguinhas, pois a repressão não permitia uma militância transparente. De repente, diante da multidão de operários, com o microfone na mão, tive a consciência de que não poderia recuar. A diretoria nomeada pela ditadura ficou refém da presença de milhares de trabalhadores, em assembleia, para deliberar as reivindicações da categoria, que gritavam palavras de ordem.  E para a nossa surpresa, o presidente do sindicato e interventor participou ativamente da luta e se revelou um importante aliado. A diretoria pelega ficou dividida, abrindo caminho para a vitória da oposição.

O gosto pelo cinema me levou ao Cine Clube da Face da UFMG, onde os estudantes exibiam filmes alternativos, como Encouraçado Potemkin, Quando Voam as Cegonhas, A Balada do Soldado, entre outros. Depois da exibição das películas aconteciam os debates, verdadeiras aulas de formação política.

É nesse final da década de setenta (século 20), que a ideia da construção de um partido dos trabalhadores é idealizada. Entrei no movimento para a criação do partido, que tem o seu registro oficializado em 10 de fevereiro de 1980. Em 1982, com a ditadura dando sinais de esgotamento, o PT teve o seu batismo nas urnas.



2


No curto tempo em que militei no movimento sindical metalúrgico, conheci companheiras e companheiros que  se entregavam à causa com tamanha intensidade, que não era fácil acompanhar. Berzé e Maria Antonieta me arrastavam, mas de vez em quando eu escapulia para ver um filme ou para escrever A Construção da Estrada de Ferro.

Tinha um outro companheiro que não me sai da memória: Joaquim José de Oliveira, o Seu Joaquim. Tivesse vivo, completaria 100 anos nesse 2021 de pandemia e genocídio. Lembro dele com uma "capanga" preta pendurada no ombro, onde carregava boletins e panfletos. Ou ainda vendendo temperos de casa em casa, momento propício, para ele fazer a sua "pregação". Digo pregação por ele ser evangélico. Um evangélico, diria, diferente. Ele não se curvava diante dos adoradores do Deus Dinheiro. Contrapunha, e se os membros continuassem adorando o bezerro de ouro, ele rompia e ia à procura de outra igreja, arrastando consigo alguns fiéis.

Certa vez eu fora designado, para ser um espécie de assessor dele. Ajudá-lo a compreender a dialética; a luta de classes, enfim, dar-lhe um suporte teórico. Mas Seu Joaquim tinha convicção ideológica. Se algum rótulo lhe cabe, creio o de socialista cristão.

Me lembro bem dele, com sua voz de trovão ecoando nas assembleias do sindicato: "O trabalhador só come carne quando morde a língua". Uma frase que retrata bem o governo neoliberal de extrema direita (2019-2022), de desemprego, fome, corrupção e milícias.

Seu Joaquim foi o primeiro candidato negro e pobre a Senador por Minas Gerais. Ele merece um registro a altura de sua biografia: um livro, um documentário.


                                                   Seu Joaquim: Imagem cedida por Eugênio Lobo


3


Éramos sobreviventes da ditadura de 1964 e queríamos derrubá-la. Energia não nos faltava. Atuávamos em várias frentes, sendo o movimento sindical de oposição à diretoria pelega e a construção de um partido político dos trabalhadores as principais.

A greve de 1979 dos metalúrgicos de BH e Contagem foi o batismo de fogo para muitos de nós, inclusive eu. Num piquete da portaria da Mannesmann, um policial se colocou ao meu lado. Discretamente ele me deu um choque nas coxas com um cassetete. Foi como se levasse um coice de mula. A vontade que tive foi de dar-lhe um murro. Segurei a raiva. Tinha consciência que era provocação. O que não aconteceu com um companheiro na portaria da Belgo, que revidou com um soco. Ele foi colocado num camburão. Berzé e mais dois companheiros desciam a Avenida Babita Camargos, quando foram revistados. Na portaria 1 eles se encontrariam com Sálvio Pena.

O que mais me preocupava era as possíveis demissões que viriam depois da greve. Dois em especial: Seu Raimundo, morador de uma favela na região do Barreiro e Rui. Eles abriam suas casas para as reuniões de organização. Seu Raimundo, uma pessoa simples, com filhos, como tantos outros. "E se Seu Raimundo perdesse o emprego".  Para os parâmetros da época, o salário da Belgo era razoável.

Outro personagem enigmático foi o Zé Raimundo, o Vermelho. Ele fazia discursos inflamados nas assembleias, mas na hora de a onça beber água, o Vermelho amarelou: furou a greve! Para não passar pela portaria em que os piquetes estavam, ele arrebentou a tela que dava acesso à fábrica. 

Seis meses depois, já em 1980, às vésperas de maio, de duas datas significativas para mim, fui demitido. Dia primeiro, dia dos trabalhadores. Dia 12, data de nascimento de meu filho, Fernando


Berzé


4


Toda ação gera consequências. Para a oposição sindical metalúrgica de BH e Contagem conquistar o sindicato, precisamos ter um olhar sobre o que aconteceu lá atrás. Desde 1976 muitos companheiros se organizavam dentro das fábricas. Eu me lembro bem da primeira reunião que participei. Estavam presentes alguns militantes  dos anos 60: Seu Joaquim Oliveira, Milton Freitas, Efigênia, além de Ignácio Hernandez, Ademir, Berzé, Maria Antonieta e eu. o iniciante. Depois nos transferimos para outro logradouro na Vila São Paulo.  

A mobilização da campanha salarial de 1979 foi por fábrica. O dissídio era em outubro, porém, entre março ou abril, creio, houve a mobilização antecipada. A Belgo-Mineira foi a primeira. Em seguida a Mannesman e assim por diante. A ideia era começar pelas fábricas maiores. Na Belgo a gente já tinha construído, na prática, a comissão de fábrica. Estávamos relativamente organizados. A diretoria pelega, tendo à frente o presidente João Silveira, topou, apostando no fracasso. Como não confiávamos nos dirigentes interventores, imprimimos nosso boletim. Rui Barbosa e Seu Raimundo, que representavam o chão da fábrica, encarregaram de fazer o contato com os demais companheiros. Assim os  panfletos foram colocados no interior da fábrica, pendurados nos banheiros e em outros pontos, inclusive no relógio de ponto. Bingo.  Pela primeira vez, desde as greves de 1968, o sindicato lotou. Revezamos no microfone, com palavras de ordem. A que proferi:  "os patrões só entendem uma linguagem, máquinas paradas" foi reproduzida no jornal Companheiro. A pauta de reivindicações era: 20% de aumento; prêmio de retorno de férias equivalente ao da filial de João Monlevade e folga aos sábados para o pessoal da manutenção. Foram três assembleias, para  que os trabalhadores dos três turnos participassem. Zé Raimundo, o Vermelho, Ildeu, secretário do sindicato discursaram denunciando o nosso boletim apócrifo. O Sindicato também imprimiu e distribuiu a convocação, com muitos de nós ali, juntos, na cola. Eliana  Belo colocou um véu na cabeça e participou da distribuição do material do Sindicato. 

Não houve greve, pois a patronal atendeu as nossas reivindicações e um pouco mais. Em vez de 20%, um índice, que ultrapassou os 20%, para os de salário mais baixo e em torno de 10% para os de salários mais alto. 

E quais seriam as consequências da vitória dos trabalhadores da Belgo? A greve da Mannesman, que se negava atender as reivindicações e que duraria oito dias, projetando o Albênzio, mais conhecido por Boné. A principal palavra de ordem nas assembleias da Mannesman era: "Se a Belgo deu, a Mannesman tem que dá!". Depois viriam as fábricas menores.

 

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Na medida em que reviro o baú da memória, vêm à tona lembranças que o tempo esmaeceu e que se fazem mais nítidas ao me situar no contexto da época. E por mais que me esforce, não consigo lembrar o nome destes heróis, que ousaram lutar contra a ordem opressora.

Em 1979 a greve dos metalúrgicos de BH e Contagem mexeu com os corações e mentes de muitos companheiros e companheiras. Houve a costura de um acordo em que os trabalhadores da Belgo iriam fazer piquetes nas portarias da Mannesman e os da Mannesman nas portarias da Belgo. Era uma forma de evitar que olheiros identificassem os grevistas, para nos protegermos de perseguições e demissões futuras. Mas os companheiros da Mannesman não se apresentaram em número suficiente nas portarias da Belgo-Mineira.

Certa noite, por volta das vinte e uma horas eu estava num piquete, na portaria da Mannesman que dá acesso ao Bairro das Industrias,  com a mochila de lanche e uma garrafa de café pendurada no ombro. Acho que era a portaria 4.  A polícia estava lá, para nos dispersar. Comecei o trabalho de convencer os companheiros a aderirem à greve. Policiais montados em cavalos e outros à pé,  com porretes, interditavam a passagem. De repente eu tive de correr para não ser pego. Corri em direção aos vagões de trem estacionados na via. Uma viatura me seguia. Estavam mesmo dispostos a me pegar. Não sei como atravessei os vagões e fui parar à beira de um córrego. Escapei das garras da polícia e quase caio nas garras de um cão. A lua estava uma beleza. Contemplei-a por alguns segundos. Tomei um gole de café, pensando como sairia daquela situação. Na correria nos dispersamos. Não sabia onde estava o Gonçalves. Depois ele me diria que seguiu pelo córrego até o sindicato, lá chegando, molhado até a cintura. Eu andava sob a luz do luar, quando cheguei próximo de um barraco à beira do córrego. Ao dar a volta, levei um susto: um cachorro dormia tranquilamente no pequeno terreiro. E agora? Tratei de sair de fininho.  O que tinha de ser feito, fora feito. Não me lembro de como retornei para casa. Foi uma noite complicada e mal dormida. No dia seguinte conversei com o companheiro Rui Barbosa e ele me contou que um operário do especial, que levava os companheiros para o turno das 15h fez o motorista do ônibus parar na Praça da Cemig e convidou a todos para descerem, no que foi obedecido. Outro especial, passando pelo Bairro Industrial teve o seu itinerário interrompido por pneus furados por pregos colocados na via.  Assim como o companheiro que obrigou o motorista a parar na Praça da Cemig, outros personagens anônimos, formavam as lideranças  de seções da fábrica, que garantiram a paralisação. Novas emoções aconteceriam na noite que se aproximava.


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“As tantas rosas que os poderosos matem nunca conseguirão deter a primavera.“ Che Guevara

A Rádio Peão* era a nossa forma de comunicar sobre o andamento da greve e os passos seguintes. Mantínhamos também contato permanente com o comando de greve, no sindicato. Recebemos orientações via Rádio Peão de aumentarmos a presença na Mannesman. Os ônibus especiais, que levavam os trabalhadores eram escoltados por viaturas policiais e seguiam diretos ao pátio interno das duas maiores fábricas, dificultando a abordagem.  Decidimos intervir à partir dos itinerários e dos pontos iniciais, porque depois da entrada na fábrica, a gente tinha dificuldades de saber o que o estava acontecendo. O nosso grupo se dividiu em dois: um se dirigiu ao Vale do Jatobá, de onde sairiam alguns ônibus e outro grupo ao Bairro Tirol.  Passamos correndo pela via férrea e o barulho que fazíamos assustou um outro grupo, que se escondeu debaixo de uma ponte. Anos depois eu viria saber, pelo Zé Geraldo, que ele integrava o grupo que se assustou conosco. Imaginaram ser a polícia em seus encalços. E como tinha policiais a serviço dos patrões! Foi uma noite tensa. A lua não apareceu.

A repressão violenta da polícia nos levou a uma ação radical: quebrar os ônibus. Numa rua mal iluminada do Tirol eu me coloquei no centro dela e deixei o ônibus se aproximar: arremessei uma pedra e acertei o para-brisa, com o cuidado de atirá-la fora da área do motorista, que seguiu viagem.  Depois dessa ação nos dispersamos e retornamos cautelosamente  para nossas casas. Chegou-nos a notícia de vários ônibus com vidros quebrados, no pátio da Mannesman.

Enquanto isso, na Belgo-Mineira, os que entraram não conseguiram colocar as máquinas em funcionamento. Numa seção do ATC (alto teor de carbono), um operário ligou a máquina, mas foi desautorizado por outro.

* Rádio Peão era a comunicação que fazíamos face a face.


Imagem: Belgo - Google

7


O que facilitava a minha atuação era o fato de ter exercido por cerca de três anos, duas funções que me permitiam circular pela fábrica e construir uma relação positiva com muitos companheiros. Depois que fui trabalhar no escritório, precisava arranjar um "motivo", pra retornar ao interior da fábrica. Motivos não faltavam.

O fato de trabalhar no escritório me levou uma questão: teria a confiança dos companheiros?

Para conquistar esta confiança, eu não podia vacilar. O mesmo, imagino, acontecia com Berzé. A convicção ideológica foi decisiva para superar minhas dúvidas, inclusive a de perder o emprego. A Belgo tinha cerca de quatro mil empregados e a confiança que estes trabalhadores depositavam em nós, exigia responsabilidades. Seu Joaquim costumava dizer: "a gente entra numa greve, mas muitas vezes não sabemos a hora de parar" e em outro momento, num discurso inflamado, Sálvio Pena encerrou: "Demos a primeira porretada na víbora e ela está zonza, vamos dar a segunda, rumo a vitória".

Tempos depois, fora da categoria, recebi a boa notícia: a oposição vencera a eleição, e o Sindicato dos Metalúrgicos de BH,  Contagem e Região retornou às mãos de seus verdadeiros representantes.

Por um erro de avaliação, companheiras e companheiros combativos, como Zé Vieira e Mariza Lopes ficaram de fora da nova diretoria. Acreditavam que compondo com João Silveira e Ildeu, ganhariam o sindicato "por dentro".


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“É preciso fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo” Delfin Netto


Estamos em 1972, em pleno período do chamado "milagre econômico brasileiro". Enquanto isso, nos porões da ditadura, pessoas são torturadas, mas a imprensa, sob censura ou em conluio, silencia. A primeira função que exerci na Belgo foi a de estoquista, embora na carteira constasse balanceiro de expedição. Chegara recentemente a Contagem, vindo do interior, e só pensava numa colocação. Trabalhar na Belgo era como ganhar na loteria, me diziam. O emprego me permitiu deixar a casa do meu irmão, Altair, que viera para Belo Horizonte próximo ao início dos anos sessenta. Com o meu primeiro salário comprei na Moto Bomba, uma bomba de tirar água de cisterna e mandei instalar na casa do mano Lalá,  para facilitar a vida dele e de Helena, que retiravam a água duma cisterna de cerca de vinte e oito metros , manuseando um sari.  O Altair e sua companheira Said me acolheram em sua casa, no bairro JK, em Contagem. 

Fui apresentado ao meu chefe imediato, Garrido e em seguida tive contatos com os colegas Gerson, Zezinho, Garapa, Expedito, João Reis, Edi, entre outros. Alguns meses depois chegariam o Rui Barbosa e o Nélio. Trabalhávamos no Ponto 1, sendo o chefe do setor, Claudio Penna, uma boa pessoa.  O encarregado do outro turno era o Magela, com quem tive um desentendimento tempos depois. Muitas vezes o balanceiro de um turno precisava fazer hora extra, aí ficava sob as ordens de outro encarregado. Meu expediente começara às sete da manhã e já era cerca de 21h quando o Magela se dirigiu a mim aos gritos. As plataformas de carregamento estavam lotadas de carretas, com dois motoristas de empilhadeiras chegando para a pesagem. Abandonei o posto, dizendo a ele que se virasse. Bati meu cartão de ponto e fui embora, deixando-o na "rolha", como dizíamos, ou seja, cheio de trabalho. Cheguei ao trabalho no dia seguinte, com receios de ser demitido, ou de receber alguma advertência.  Mas nada disso aconteceu. O Magela, um encarregado casca grossa, não me dedurou. O Garrido, ao contrário, advertia e levava o assunto para o Seu Claudio Herculano, chefe da seção.  


9

Em 1987 retornei à categoria metalúrgica. Mas não à militância sindical. Até o dia em que os companheiros Juvenil Francisco e o Edmilson, o Cachorrão, distribuindo boletim na portaria da fábrica, me abordaram. Eu não pretendia voltar à militância sindical. Trabalhava no escritório, o sindicato estava em boas mãos. Mas a consciência me cutucava. Em outra ocasião, numa campanha salarial, Juvenil e Cachorrão me convidaram a escrever algo para o Suggata, boletim especial dirigido às trabalhadoras e e aos trabalhadores da Suggar, empresa que me possibilitou retornar à categoria. A diretoria do Sindicato decidira criar um material específico para cada fábrica. Escrevi o poema abaixo, sob o pseudônimo de Bigode, que foi publicado no Suggata:


mulheres na linha de montagem


tão belo tão bom
tão sexy vê-las de mãos ágeis
mãos hábeis

mulheres na linha de montagem...


lábios e bocas
levezas
plumas 
belezas entre alicates
parafusos e parafinas

mulheres na linha de montagem...


fazendo riquezas
construindo lucros
que sonham um dia ser dividido
repartido


tecendo as mudanças
balançando as tranças
na linha de montagem


sonhos e manhas nas manhãs
nas tardes que não tardam
e nas noites do País

mulheres na linha de montagem


com sorriso doce
com pisar leve
com amor
preparam um amanhã
de luz e cor

Ao contrário da Belgo Mineira em que trabalhavam poucas mulheres, todas no escritório, na Suggar eram várias na linha de montagem. O poema acima foi escrito em homenagem a estas trabalhadoras. 


10


Parecia uma disputa de egos e Pedro não era afeito a reuniões de cúpula. Queria ação e as reuniões de estudo e planejamento eram demoradas, cansativas.

Quando foi se encontrar pela primeira vez com o Grande, ainda não era Pedro. Sentiu então, que fazia parte de um movimento revolucionário e o Grande era o nosso comandante. A Ó, como chamávamos, era uma rede de revolucionários de várias partes do país, principalmente nas capitais. O verdadeiro nome da organizão (Ó) era o MEP-Movimento de Emancipação do Proletariado.

Os encontros com o Grande eram preparados com a máxima segurança, afim de despistar os agentes da repressão. Foi à partir desse primeiro contato, que recebi o codinome Pedro. Tínhamos também a Baixinha como chefe, pessoa muito querida Numa ocasião, fui informado de que um grupo de sindicalistas de São Bernardo do Campo e região iniciara um debate sobre a criação de um partido dos trabalhadores e que a Ó se engajaria nessa luta.  Iniciávamos um debate interno se o partido seria de massa ou de quadros. Estávamos em 1978 e a ditadura dava sinais de esgotamento.

Pedro compreendeu a necessidade de reuniões preparatórias. Não era disputa de egos, o debate era de ideias.


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Ao chegar em casa, pouco antes do anoitecer, vindo do trabalho, aguava uns pés de quiabo que plantara recentemente. Morávamos no Bairro Lindéia, uma região conurbada,   tendo como bons vizinhos à direita, o Seu Zé Pereira e Dona Iolanda; à esquerda, Sebastião Benevides e Dona Maria. Pagávamos aluguel. A divisa de minha morada com a do Tião era separada por uma cerca de arame farpado, pela qual passávamos para as nossas conversas. Seu Tião dedilhava um violão e a gente costumava entoar umas canções sertanejas de raiz. Era o ano de 1979 e eu estava empenhado na construção do núcleo do que viria a ser, em 1980, o Partido dos Trabalhadores. Seu Tião foi fundamental na construção do núcleo, pois participava ativamente da Igreja Católica e fez a ponte com o pároco, Padre Miguel, que cedeu o espaço para as nossas reuniões de organização. Fizemos alguns debates sobre o partido que queríamos, com boa participação. Alguns nomes eu me lembro bem: Rui Barbosa; Simeão; Roberto Lélis; João, o Alemão, o seria o Gaúcho?, diácono da paróquia; Seu Tião Benevides; Eliana Belo; Divino; Zito; Joana Darc. A cartilha PT:  Nossa Vez, Nossa Voz, dava o suporte em nossos debates.  Deste núcleo eu, Eliana e Rui fomos escolhidos delegados ao primeiro congresso estadual  do Partido dos Trabalhadores, que se realizou no Colégio Pitágoras em Belo Horizonte.

Fui convidado a contribuir na construção do núcleo do Bairro Industrial (Contagem), que faz divisa com o Lindéia, por José Maria Lopes, o Guinho. Outros companheiros,  Geraldo Bernardes;  Carneiro (José do Carmo); Geraldo Lopes; Zailtom, faziam parte do núcleo.

Os acontecimentos do congresso estadual de fundação do PT, contarei na próxima lembrança.  Teve momentos hilários.


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O Colégio Pitágoras, no bairro Cidade Jardim, em Belo Horizonte, estava lotado de companheiras e companheiros vindos de vários municípios de Minas Gerais, para o primeiro congresso estadual de fundação do Partido dos Trabalhadores. Um momento que entraria  para a História. Era o ano de 1979. 

Maria Antonieta se movimentava constantemente pelo salão do colégio, conversando com as pessoas de diversas correntes, sintetizando propostas. Ela era uma referência do nosso grupo. Num certo momento ela nos alertou que um membro da mesa estaria manobrando. 

 O congresso aconteceu num sábado e domingo.  No domingo, indignado com o encaminhamento da direção dos trabalhos, pedi a palavra, peguei o microfone e soltei o verbo sobre um dos pontos da pauta. Muitos me olharam com um misto de deboche e espanto. Nesse momento, ao olhar a plateia, visualizei a Eliana se afundando na cadeira, como se escondesse de vergonha alheia. O ponto da pauta da qual me insurgira era assunto encerrado, pois acontecera no sábado. Percebendo a gafe, saí de fininho. Mas lá pelas tantas, quando todas de todos pareciam terem se esquecidos de minha gafe,  alguém gritou de um ponto do salão: cadê o pessoal do Lindéia? Era o Virgílio Guimarães, ironizado.


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O trabalho de formiguinha, que fazíamos me levou, em 1979 ao encontro do professor Euler Vidigal, hoje uma estrela ao lado de Geraldo Bernardes, Guinho, Seu Joaquim Oliveira, entre outros e outras.  Euler tinha um sorriso largo. Lecionava na FUNEC do bairro Amazonas, em Contagem. A noite em que o encontrei pela primeira vez foi numa festa da escola. Foi um papo agradável e Euler aceitou se engajar conosco.  Contribuiu muito na construção do núcleo do PT do bairro Industrial. Foi ideia dele levar o teatro do oprimido de Augusto Boal ao núcleo.  Foi um momento político divertido, pois Euler tinha a leveza, que às vezes faltava em muito de nós. Eu me lembro bem dele e de sua companheira Bia, no apartamento popular do Bairro Flamengo. 


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A Praça da Cemig, em Contagem era (ainda é) o palco de manifestações populares. O primeiro de maio, que antes acontecia na Praça dos Trabalhadores, migrou para lá, creio, à partir de 1980.

Na Av. Babita Camargos, quase no coração da Praça da Cemig, um grupo de militantes se reunia na sede da Pastoral Operária da Igreja Católica, para fazer a ponte entre a fé e a política. Nesse local, outro grupo, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) também atuava. Dos membros da CPT eu me lembro de Berzé e Durval Ângelo. Berzé, chargista agnóstico, que ilustrava as publicações da pastoral. Durval, tempos depois se elegeria Vereador de Contagem e em seguida Deputado Estadual pelo PT.

O outro grupo, menor, mas muito atuante, também criou seu veículo de comunicação, o boletim Ponte. Assim como o movimento sindical, o movimento popular também contribui muito na criação e sustentação do Partido dos Trabalhadores.

O Padre Carlos Pinto era um dos coordenadores da Pastoral e apoiava fortemente os movimentos populares do campo e da cidade.  Vivíamos um momento de participação popular muito criativo e diversificado.

Do Ponte eu me lembro de Eliana Belo, José Prado, Márcio Nicolau e Maria Lúcia, a Milu. Em homenagem aos lutadores das causas sociais e este que foi e continua sendo palco de resistência contra a ordem opressora, a Praça da Cemig, escrevi, lá pelos idos de 1986, o poema:


A Praça


Há uma praça,
cujo nome é de um empresário bem sucedido.
Praças, avenidas e ruas
recebem nomes de pessoas bem sucedidas
(Bem sucedidas com as implicações decorrentes).
Os vencedores batizam suas conquistas
com o nome de seus heróis, naturalmente.


Há um praça:
A da Cemig
Que o povo teima em não chamá-la por seu nome de oficial:
Dr. Fulano de Tal.


O prefeito mandou modificá-la, colocou placas com letreiros,
mas o povo continua ignorando.
Fala-se em editar um decreto municipal,
ordenando prisão
a quem não chamá-la por seu nome principal...


Apesar do visual
tudo continua como antes:
Crianças pedindo esmolas
vendedores ambulantes
e o povo, para irritação das autoridades
continua a chamá-la de Praça da Cemig.


Apesar do sanitário público
todos cagam e andam com júbilo,
inclusive os cães,
principalmente uma cadela manca,
que sem nenhum pudor ergue a pata traseira
e faz xixi na paineira.


A Praça da Cemig poderíamos chamá-la:
Praça dos bancos
ou dos desvalidos
Praça da EBCT
ou dos esquecidos
Praça do INAMPS
ou dos doentes
Praça do DNER
ou dos acidentes
Praça da Escola SESI
ou dos analfabetos
Praça da CI
da CBA
ou dos desempregados
dos desesperados
Praça das Batidas das RP's procurando armas
nas sacolas dos que vão para o trabalho
e encontrando marmitas...


Tantas siglas,
poucas soluções!
Sabiamente o povo decidiu:
Praça da CEMIG,
LUZ que buscamos para nós e nossos irmãos,
para os meninos que vagueiam batendo nos vidros dos carros
implorando trocados,
recebendo impropérios.
LUZ às missas do primeiro de maio
aos comícios da oposição
aos motoristas de taxi's
travestis
trailer's...


LUZ à Banca Wilma
para que traga notícias boas
LUZ à Praça da CEMIG,
que no futuro receberá outro nome,
dos heróis do povo,
da CPT ali pertinho,
plantando sementes que germinarão no negro asfalto da praça,
arrebentando e fazendo brotar a
LIBERDADE.


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“Contra as ideias da força, a força das ideias “ Florestan Fernandes

Tento lembrar os locais e as datas de alguns eventos, mas a memória nem sempre ajuda. Uma noite no pátio de uma escola na região do Barreiro, em Belo Horizonte, lá pelos idos de 1977/78 aconteceu um evento político onde  vários militantes de esquerda se encontravam com o propósito de refletir e fortalecer a luta pela redemocratização do Brasil.  O ambiente era mais de confraternização. De repente começou a circular ao pé dos ouvidos dos presentes, a presença de um infiltrado. O ambiente ficou tenso. Alguém me disse para ficar atento a um cidadão suspeito, trajando uma jaqueta jeans, munido de máquina fotográfica. Alguém denunciou no microfone e o suposto agente desapareceu. Até hoje não sei se o tal infiltrado existiu ou se foi fruto da alguma paranoia. De qualquer forma, precisávamos ficar prevenidos, pois era muito comum os agentes da ditadura mapear os passos da militância de esquerda.

Não devemos nos esquecer da chamada "direita explosiva", que em 8 de julho de 1979 praticou um atentado ao jornal Em Tempo. Os atentados ocorriam nas madrugadas e os alvos eram as redações e os pontos de venda dos jornais de esquerda e democráticos: Movimento, Tribuna da Luta Operária, Companheiro, Pasquim e outros. Estes atos terroristas da direita explosiva atingiram profundamente as nossas publicações, pois intimidaram os donos de bancas de revistas e livrarias, que se recusavam a expor e vender os nossos veículos de comunicação.


16


O registro de minhas lembranças são quase tão somente o que a memória dita. Digo quase, porque às vezes recorro à minha carteira profissional, para me situar no tempo.

Nos anos de 1981 a 1985 há uma lacuna em relação a minha participação nos movimentos sociais e na política. Sei que foram anos complicados, do ponto de vista financeiro. Ao examinar a carteira profissional, foram anos em que a mais-valia me pegou pra valer. Para sobreviver, requeri uma autorização da prefeitura de Belo Horizonte, para instalar uma banca de revista, na Av. Afonso Vaz de Melo, no bairro Tirol, região do Barreiro. Fui a alguns comícios, apoiei precariamente a candidatura no Guinho (José Maria Lopes), marquei presença nas manifestações pelas diretas-já. E no processo de eleições diretas (PED), que escolhe os dirigentes do PT, jamais deixei de votar. 

Na pindaíba, a solução foi buscar a solidariedade de parentes e de alguns companheiros de luta. Decepção com uns, alegria com vários. Ainda hoje, ao lembrar de uma noite em que chorei pitangas com o meu amigo e parceiro de lutas, o Berzé, me emociono com a atitude dele, que também enfrentava dificuldades. Ele enfiou a mão no bolso e retirou uma nota, em torno de uns cem reais de hoje e dividiu comigo, dizendo: "já que não podemos dividir a riqueza, vamos dividir a miséria". 


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"O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato". Barão de Itararé

Em 1987 o recém eleito Deputado Estadual por Minas Gerais, Nilmário Miranda convida a militância para a plenária do mandato.

À época, afastado da luta política, considerei que o deputado era um polo de atração, assim decidi voltar à participação política. À partir dessa plenária dois grupos de trabalho foram organizados: o que se engajaria na organização dos movimentos populares e o da criação de um jornal. Do movimento popular nasceu o projeto da Casa do Movimento Popular e da comunicação a criação de um jornal impresso, nos moldes do Jornal dos Bairros, com outro nome, o Folha Popular, não me recordo bem se era esse o nome.  Eu me engajei no projeto da casa. Na medida em que o projeto avançava e a disputa política se acirrava, uns desistiam, outros e outras se incorporavam. Do projeto inicial eu me lembro do Peixe, Jorge (Segrac), Durval Ângelo, Antonia Puertes, Çãozinha, Lúcia Helena Hilário, Joaquim Jerônimo, Hamilton Reis...

A disputa política mais acirrada foi entre o futuro vereador por Contagem, Durval Ângelo e o deputado Nilmário Miranda. Mantive distante desse embate, sem deixar de ser um observador atento. O fato é que a Casa foi erguida e está lá, na Av. David Sarnoff, próxima do início da Av. João César de Oliveira. O jornal não vingou.

Sobre as divergências ocorridas nesse processo, falarei no capítulo 18. 


18


Assumi a coordenação da Casa do Movimento Popular quando o Seu Joaquim Jerônimo, então coordenador geral, rompeu com o projeto, que fora aprovado pela entidade financiadora, tão logo a construção do prédio iniciara. A parte administrativa se instalara, provisoriamente numa sala do COPRE, uma escola de ensino profissionalizante. Silvia, era a secretária.

Assim que a captação de recursos foi aprovada, novos personagens incorporavam ao projeto, técnicos e gestores. Quando deixei a direção, Pacheco, funcionário da Magnesita e pastor evangélico, assumiu.

Durval Ângelo, da diretoria da APC (Associação dos Professores de Contagem), convidou alguns membros da Casa, para fazer a denúncia de uma suposta irregularidade. A reunião aconteceu na sede da APC. A tal irregularidade me pareceu mais uma queda de braço entre Durval e Nilmário. Nessa conversa registrei a minha posição: se há alguma irregularidade, que se instale uma auditoria e os responsáveis punidos, mas se a tal irregularidade não se confirmar, que o denunciante arque com as consequências.

Dias depois a direção da Casa me convidou para uma reunião nas dependências do COPRE. Presentes, entre outros e outras: Pacheco, Hamilton Reis, Sebastião Milanez, Stael, Antonia Puertes.  Deixaram o último ponto da pauta, para me inquirir. Fui surpreendido pelo dedo em riste de Pacheco, me acusando de difamar a Casa, violando um artigo do estatuto. Expliquei o que ocorrera. Hamilton ainda argumentou se eu estava pedido desculpas. Retruquei, que se alguém tinha que se desculpar, era a diretoria, pela acusação infundada. E demos o assunto por encerrado. Dias depois fiquei sabendo que Donizete foi quem reclamou de minha ida à reunião convocada por Durval.


19


Busco na memória os acontecimentos de 1988. Uma busca no Google certamente me situaria nesse tempo, mas prefiro navegar pelo meu cérebro. É um exercício saudável. Então recordo, que deputados e deputadas constituintes estão elaborando a nova Constituição. Lembro de ter assinado alguns projetos de iniciativa popular. E desse amarrotado de lembranças, as eleições municipais brotam com mais nitidez. Em Contagem o nosso candidato a prefeito é Nilmário Miranda, tendo como vice, o José Antônio. O meu compromisso na construção da Casa do Movimento Popular me levou a apoiar Hamilton Reis para vereador. Dei a minha contribuição, também, à campanha do companheiro Geraldo Bernardes, pela qual me penitencio por não ter me dedicado mais. Mais que companheiro, Geraldo era um amigo, hoje uma estrela. Lembro de Geraldo vendendo churrasquinho nos comícios, para arrecadar uma grana pra sua campanha. Ademir Lucas (PSDB), não precisava disso. Com a promessa de IPTU e FUNEC de graça, foi eleito. O PT fez a maior bancada de vereadores, cinco: Durval Ângelo, Eustáquio Roberto, Lúcia Helena, Paulo Moura e Rubens Campos, esse último, não me lembro se já era filiado ao PT. 

Contagem faz divisa com Belo Horizonte, o que resultava numa dupla atuação. Em BH fiz campanha pela eleição do  vereador Rogério Correia e de Virgílio Guimarães, prefeito derrotado.

A campanha que mexeria profundamente com a militância aconteceria em 1989, da qual me engajei  de corpo e alma.  Assunto para o próximo capitulo.



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Era como se fôssemos outdoor ambulantes, rostos e vestes cobertos por adesivos e bottons criativos, anunciando os candidatos de nossas preferências. Esse material, incluindo camisetas, bolsas, boinas, bonés, bandeiras, em sua maioria de cor vermelha eram adquiridos nas sedes do partido ou nas barraquinha instaladas nas praças e nos locais dos comícios. Circulávamos pelas ruas sem medo de sermos felizes, com estas vestes e com o sonho de democracia com participação popular e inclusão social, ao som de Lula lá, de Hilton Acioli:


Passa o tempo e tanta gente a trabalhar
De repente essa clareza pra votar
Sempre foi sincero de se confiar


Sem medo de ser feliz
Quero ver você chegar
Lula lá, brilha uma estrela
Lula lá, cresce a esperança
Lula lá, o Brasil criança
Na alegria de se abraçar
Lula lá, com sinceridade
Lula lá, com toda a certeza pra você
Seu primeiro voto
Pra fazer brilhar nossa estrela


Lula lá, é a gente junto
Lula lá, valeu a espera
Lula lá, meu primeiro voto
Pra fazer brilhar nossa estrela


A praça da estação ferroviária de BH estava lotada, cem mil pessoas, para ouvir Lula, Brizola e outras lideranças. Lula passara para o segundo turno, na primeira eleição presidencial, depois de mais vinte anos de ditadura militar. Finalmente tínhamos o direito de escolher quem iria nos governar. 1989 consolidava o retorno da democracia no Brasil. Com Brizola não tinha treta, não era de fugir por não ter ido para o segundo turno. Seu discurso foi emocionante. Ao subir no palanque e discursar, erguer o braço de Lula, indicava que tinha lado.

Ao escrever estas lembranças, não é apenas Lula, Brizola, Bisol, e outras tantas celebridades da política e da cultura que surgem em minhas lembranças. É dos trabalhadores da Belgo que me vem à mente. Surgem, com imagem esmaecida, Seu Raimundo, Faísca, Rui Barbosa, Gonçalves, Berzé, que fizeram acontecer a greve de 1979, acuando os militares. Os trabalhadores da Mannesmann, da Eluma, Delpi, enfim toda a categoria metalúrgica e tantas outras, bancários, construção civil, educação, saúde. Ao lado desses aguerridos companheiros e companheiras, fizemos história. Seu Joaquim Oliveira, Sálvio Penna, Efigênia, Antonieta, Suzana, Mauro, Mariza, Márcio Nicolau, Letícia da Penha, Euler Vidigal, José Lopes (Guinho), Geraldo Bernardes, Zé do Carmo (Carneiro), Zailtom, José Prado, Basílio, Eliana, Ignácio, Ademir, Marcelo Brito, Eliane, Albênzio, Zé Vieira, Paulo Moura, Paulo Funhgi, Zé Maria... e outras e outros. 

Collor, o candidato dos endinheirados, da direita e do mercado, foi eleito, com o apoio da elite do atraso e da mídia empresarial. A campanha de Lula terminou numa sexta-feira, mas a do Collor se manteve no sábado, com a reapresentação do debate, manipulado pelo Jornal Nacional.

No próximo capítulo falo de como se deu a minha candidatura a vereador.


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A participação política nos leva a refletir sobre o que acontece na sociedade.  E se for visando o bem comum, melhor. Mas nem sempre é assim. Ao se filiar a um partido político, decidimos pelo que melhor representa os nossos princípios. Quando contribuímos na construção de um, formulamos programas de governo. Não é tarefa simples, pois, para se chegar a um programa de governo popular, que atenda aos princípios de seus fundadores é necessário muita conversa, debates, para se chegar a um consenso.  Depois de cumprir uma série de exigências da legislação eleitoral, vem o registro junto ao TSE.
O Partido dos Trabalhadores foi criado com o objetivo de representar os interesses da classe trabalhadora. Por isso, lá no início existiam os núcleos de base, para que filiados e simpatizantes pudessem fazer propostas. Isso, infelizmente, não se pratica mais.
Em 1992 uns poucos núcleos ainda resistiam. Foi o ano em que decidi me candidatar a vereador em Contagem, tendo, pela segunda vez, Nilmário Miranda como candidato a prefeito. Para a formação da chapa de vereadores, um dos critérios era de que os filiados mais antigos tinham preferência, que era o meu caso. Embora eu soubesse não ter chances de me eleger, meu primeiro desejo foi o de sentir na pele o que é ser candidato. Queria passar por essa experiência. Ser xingado ou admirado.  Foi uma experiência e tanto. 
Outro motivo que me levou a candidatar, foi quando o José Lopes (Guinho) e Geraldo Bernardes me procuraram para informar que Nilmário articulava a candidatura de Idelson, que se filiara naquele ano, "caindo de para quedas", como se dizia dos candidatos "arranjados". Nilmário, que não me convidou para a reunião  na casa de Geraldo, parece ter ficado constrangido com a minha presença. A minha candidatura se consolidou naquele dia. Era uma forma de contrapor à candidatura do recém filiado Idelson. 
Quando alguns companheiros e companheiras souberam da minha candidatura, me procuraram para apoiar: Além de Geraldo e Guinho, que já estavam engajados, Berzé me procurou e me ajudou na confecção de três boletins; em seguida chegaram Raquel Monteiro, Luis, Vando, Donato Milanêz, Aluízio Ângelo, Sebastião Maria, que fez uma ponte com Imiramis, candidata em Belo Horizonte, com quem subi no palanque, ao lado de Patrus Ananias, candidato a prefeito de BH. O comício aconteceu no bairro Itatiaia (BH), fui de carona,  com Nilmário e Tilden Santiago.
Assim, sem grana e com pouco tempo,  pois trabalhava numa empresa privada, sem direito aos noventa dias de licença, como os funcionários públicos, minha campanha foi ganhando forma, agregando apoios. Lico, irmão de Geraldo Bernardes revelou-se um ótimo boca de urna e contribuiu  com  a minha melhor votação, na Escola Maria do Amparo. Carlos Azevedo, o Carlinhos, que morava bem em frente da escola, autorizou-me colocar uma faixa. Sem a participação gratuita desses companheiros e companheiras, eu não teria alcançado meus 175 votos, que contribuíram pela primeira eleição de Letícia da Penha, professora, com atuação no bairro Riacho das Pedras.


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Reunião com apoiadores na casa de Donato Milanêz


A  disputa por uma vaga na Câmara de Vereadores de Contagem, em 1992,  foi  acirrada. Foram mais de mil candidatos. A falta de grana, tempo e pernas me levaram a concentrar a campanha no Bairro Industrial, onde morava desde 1980. Enquanto eu fazia a minha campanha à pé, ou de ônibus, outros e outras candidaturas dispunham de carros, inclusive de som, alguns com frotas e comitês com telefones, espalhados pela cidade, distribuindo brindes, como camisetas, bonés, chaveiros, fora os que doavam tijolos, cimento, colchões, dentaduras, entre outras coisas.  Gueber Ferreira mantinha um palco, onde, além de levar a sua mensagem, levava também músicos. Era uma disputa desigual.  O Professor Carlinhos, pela mesma forma,  assim como, principalmente, os que disputavam a reeleição. 
Meus três únicos boletins, fora os "santinhos" doados pelo partido, somavam pouco mais de 10 mil.  Ainda assim, fazê-los chegar aos eleitores e eleitoras não era fácil.
Num certo domingo fui à feira do Bairro Amazonas, para uma panfletagem. Não me lembro quem me acompanhou, provavelmente a Raquel Monteiro.  Como  tinha de material de candidatos jogados no chão! Muito, mas muito mesmo.  Com pouco material, modéstia à parte, de qualidade,  eu não podia distribuir de qualquer maneira. Entregava nas mãos das pessoas, mas antes inquiria se aceitavam ou se já tinham decididos em quem votariam. 
Além de priorizar o bairro em que morava, a ordem de visitas começava,  primeiro, pelas casas das pessoas conhecidas.  Quanto aos parentes, tinha um problema: Carlos José, meu irmão, também era candidato. 
 Uma vez, percorrendo uma rua do bairro, próximo a Vila da Paz, abordei um cidadão. Ao entregar-lhe meu panfleto, ele sorriu educadamente e se apresentou. Era o Toninho de Ibirité, também candidato em Contagem, pelo PDT.  Brincando, eu disse: - vamos fazer o seguinte, você vota em mim, eu voto em você.  Nasceu ali uma amizade que renderia, tempos depois, um convite para eu lançar Crônicas do Cotidiano Popular, em Ibirité, onde ele tinha relações políticas na prefeitura. 
Em outra ocasião, em visita à casa de uns amigos e amigas desde os tempos da  adolescência e  que eu tinha certeza que votariam em mim, fui informado da candidatura de um parente deles.  Mas dividiriam os votos da família comigo.  Por falar em dividir votos, só saberia algum tempo depois da eleição, que meus passos eram mapeados por um apoiador do Carlim (PCdoB).  As casas que eu visitava, ele visitava em seguida.  Não me difamava, ao contrário.  E pedia pra família dividir o voto com o candidato dele. Carlim se elegeria vereador e anos depois, prefeito de Contagem. 
Fui ao turno da noite, acompanhado por Divino  e Derly, à portaria da Belgo Mineira, distribuir um boletim especialmente dirigido aos metalúrgicos, afinal eu participara ativamente das lutas sindicais vitoriosas da segunda metade da década de setenta. Lá chegando, encontrei outro candidato metalúrgico, que também aguardava a saída e entrada dos peões. Ele também era candidato, pelo PT.  Ele tentou me convencer a voltar outro dia.  Eu também tentei.  Acabamos fazendo a panfletagem, conjuntamente, democraticamente. 
No conjunto, a campanha foi, apesar das dificuldades, agradável e de aprendizagem. Houve momentos de muita confraternização e solidariedade, como a ocorrida na casa do amigo Donato Milanêz,  que além de me autorizar a colocar uma faixa, acolheu um grupo de apoiadores,  para debater os rumos de minha candidatura e de Nilmário Miranda. 
 

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Após o impeachment de Fernando Collor, ao final de 1992, a classe dominante se reorganiza em torno do vice-presidente, Itamar Franco. Cria-se o Plano Real, que elege Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Lula é derrotado pela segunda vez. 
Em 1996 acontecem as eleições municipais. Newton Cardoso é o novo prefeito de Contagem, pelo PMDB. Letícia da Penha se reelege vereadora e eu passo a fazer parte, oficialmente, do mandato democrático e popular,  sendo o responsável pela comunicação.  O mandato me dá o suporte necessário à militância no movimento popular, cultural e ambiental. 
Em 1998, Fernando Henrique Cardoso se reelege Presidente da República, com a aprovação da emenda da reeleição, em que é acusado de comprar votos de Deputados e Senadores.  Lula é derrotado pela terceira vez. 
O Deputado Estadual Durval Ângelo é o candidato do PT a prefeito, em 2000, sendo derrotado pelo tucano Ademir Lucas.  Letícia se reelege, com uma votação expressiva.  O chute inicial da campanha foi precedido por um encontro de petistas e apoiadores, na sede do PT, com o lançamento do Almanaque Político 2000.  Uma ideia que me perseguia a um bom tempo, que pude realizar, com o apoio da vereadora e do mandato.  Um almanaque político leve e bem humorado, diferente do material de campanha até então praticado. Nesse almanaque publiquei minha crônica Olhar, que faria parte do meu livro Crônicas do Cotidiano Popular de 2006.  Juntamente com Ivanir Gorgozinho,  criamos  um boletim, no formato criado por Ignácio Hernandez, que fazia muito sucesso entre os usuários do metrô, o Integração. O nosso, Expresso Popular, de conteúdo diferente, vinha com os títulos, em sua maioria, de filmes, tais como: A Hora do Espanto, O Homem que Queria Ser Rei, Mudança de Hábito, Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, assim por diante. Assim como o Integração Metrô, do PT, o nosso expresso fez muito sucesso, pelo bom humor, sem perder conteúdo.



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A participação da militância, nas campanhas ao governo do estado, assim como ao governo federal,  sempre foi conectada às campanhas de deputados estaduais e federais,  principalmente estaduais. Como o mandato da Vereadora Letícia da Penha tinha relação política mais próxima com mandato do Deputado Estadual Rogério Correia, era para ele que fazíamos campanha, prioritariamente,  com as respectivas "dobradinhas",  com os candidatos a federais, apoiados por nós.  Em 2002 contribuímos na reeleição de Rogério e, finalmente, Lula presidente, com panfletagens nas ruas, em comícios,  feiras, portas de fábricas, pontos de ônibus, caixas de correio.  Onde tivesse um evento, uma aglomeração, lá estávamos, divulgando os nossos candidatos. 
Com Lula na presidência, viria uma intensa atividade do mandato, com a nossa participação nas conferências temáticas: saúde, educação, cidades, meio ambiente...  Ampliar a participação popular era o nosso norte, o que exigia mobilização permanente na cidade, para escolher os nossos representantes nas conferências.  Mobilização que ultrapassava as fronteiras de Contagem, que nos levava a Belo Horizonte, Betim, Ibirité, enfim, a região metropolitana.  Através de entidades da sociedade civil, como associações de moradores, centrais sindicais, Central de Movimentos Populares, ong's.  Algumas poucas vezes nos deslocávamos para  cidades do interior do estado. 
Democracia não é apenas ir às urnas de quatro em quatro anos e escolher quem vai nos governar.  Sem a participação nas decisões de governos,  corremos o risco de ver nossas reivindicações desatendidas. Muitos de nós, antes da chegada do PT aos governos, não sabíamos sequer o que era orçamento público.  A participação popular também não é somente para dar sustentação aos governos populares. Além de garantir que os projetos de interesse popular sejam atendidos,  é uma forma de fiscalizar o dinheiro público, para que não seja desviado para outros fins, da corrupção, inclusive.
Com erros e acertos, afinal a participação direta nas decisões do governo federal fosse novidade (tínhamos experiência de participação nas prefeituras conquistadas pelo partido),  nos engajamos no projeto  de inclusão social do governo Lula.   A institucionalidade impunha (e impõe) limites burocráticos,  mas dentro desses limites buscamos garantir e ampliar direitos. 
No próximo episódio contarei,  como foi a eleição de Marilia Campos à prefeitura de Contagem

 
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Ainda sob os efeitos das comemorações da posse de Lula à presidência, em,  2003, as eleições municipais se aproximavam.  Derrotar Ademir Lucas/PSDB, candidato à reeleição, era uma questão,  que ia além da disputa política, em 2004.  A perda de amigos e amigas num deslizamento de terra na Vila Julia Kubitschek (Bairro Industrial), devido ao descaso da prefeitura, deixou sequelas em mim e em minha família.  Uma tragédia que poderia ter sido evitada se a prefeitura tivesse tomado medidas preventivas.  Não foi por falta de avisos da diretoria da ACBI (Associação Comunitária do Bairro Industrial), da qual fui presidente e coordenador. 
Assim, alegre com a chegada do PT à presidência, triste pela perda  recente de dez amigos e amigas, soterrados, entrei de corpo e alma na campanha, que elegeu Marília Campos/PT, prefeita de Contagem, em 2004.  Uma vitória que não pude comemorar, pois minha saúde física e mental fora abalada. 
Terminada as apurações, num domingo, fui para casa, caí na cama e dormi. Até então não tinha consciência do meu estado de saúde. Posteriormente eu me lembraria de um momento,  lá no comitê eleitoral, à Rua Tiradentes, de que sentira uma vertigem. Fui acordado por Eliana, depois de ter dormido das 19h de domingo, até por volta das 18h da segunda-feira.  Acordei "grogue". Comi algo meio que à força.  Não sentia o sabor.  Atendendo ao chamado de Eliana, Gildete Martins e Nelsinho chegaram em minha casa e me levaram a uma emergência, em Betim. Na ocasião eu morava em Esmeraldas. Lá chegando, o Gil me deixou deitado sobre um banco de concreto, para ir ao guichê de atendimento.  Dormi. 
Levei um tempo para entender o que estava acontecendo. Eu me encontrava numa cadeira, diante de um médico, que me fez algumas perguntas.  Os exames tinham sido feitos enquanto eu dormia. Isso já era por volta da meia-noite.  E veio o diagnóstico: você é saudável, não tem nada. Não é possível, pensei, tem que ter algo. 
Depois de uns dias de repouso, retornei às atividades.  Respondia, com irritação, que sim, quando algum companheiro me perguntava se estava bem.  Eu estava envolvido na transição de governo. A posse de Marília estava próxima. Havia disputa política de quem iria fazer parte do novo governo.  
Nessa altura eu tinha certeza de que algo não ia bem com a minha saúde.  Fui a um neurologista em Betim, que confirmou o diagnóstico do médico da emergência: do ponto de vista neurológico, você não tem nada.  Não era possível. Ele não quis me encaminhar para exames. Por minha conta, fiz um eletroencefalograma e uma tomografia cerebral. De novo, nada.  Como assim?, eu andava sentindo umas nuvens escuras sobre minha cabeça, como disse um dia, em tom  de brincadeira, ao Zé Geraldo e ao Gil.  Meu sono continuava desorganizado.  Dormia onde não podia, como em plena  seção da câmara de vereadores.  Esse transtorno só passou no dia em que Letícia marcou uma consulta com um médico do hospital municipal, que me receitou clonazepan.  Eu estava num estresse profundo.  O médico me sugeriu repouso. 

Um Minuto de Silêncio

1 – S onhavam seus sonhos e não
2 – O uviram quando a
3 – T erra tremeu
4 – E não acordaram a tempo de
5 – R ealizarem seus projetos de vida
6 – R achaduras no solo
7 – A nunciavam um possível
8 – D eslizamento como de fato
9 – O correu
10  S oterrando muitos e vitimando 10 vidas em 16 de janeiro de 2003.

Este poema era para ser colocado numa placa em memória das vítimas do soterramento, na praça que seria construída.  

Apesar do estresse, continuei a militância, participando de reuniões e assembleias para eleger os representantes da sociedade civil na conferência das cidades.  Eleito representante por Contagem, no dia em que seria votado o delegado, que iria representar Minas Gerais, não dei conta.  O companheiro José Carlos de Oliveira, então suplente, assumiu a tarefa.  Participei na organização do  movimento de transporte de passageiros, que resultou em licitação, e na legalização do transporte alternativo (perueiros) e das linhas de ônibus.  Contribui na implantação do orçamento participativo.  Marquei presença, também, na conferência municipal de saúde. 
2006 se aproximava, com novas eleições aos executivos e legislativos, estaduais e federais.  Denúncias do mensalão abalavam o governo Lula e muitos petistas estavam desnorteados.  Debilitado eu iria fazer parte do diretório municipal do PT/ Contagem.
No próximo capítulo, conto o que se passou.


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Em 2006 a mídia corporativa batia impiedosamente no Partido dos Trabalhadores e em suas principais lideranças, por conta das denúncias do mensalão, iniciadas em 2005.  Joaquim Barbosa fora alçado à condição de Herói Nacional. Todo dia, uma denúncia  envolvendo Delúbio Soares, o Deputado José Genuíno, Silvinho Pereira,  José Dirceu, o Deputado João Paulo Cunha, o marqueteiro Duda Mendonça, o empresário Marcos Valério, suposto operador do mensalão, também chamado de caixa 2.  
É nesse contexto que vou fazer parte da Executiva Municipal. Como disse anteriormente,  com a saúde abalada e  nuvens obscuras sobre minha cabeça.  A reeleição de Lula corria sérios riscos.  
Ainda está vivo em minha memória, o debate ocorrido numa reunião do diretório municipal.  Estávamos perplexos com as denuncias de corrupção martelada cotidianamente.   Ninguém se conformava com o recebimento de propinas por parte de lideranças e membros do governo Lula.  A indignação era tanta, que o companheiro José Geraldo propôs desfiliação em massa.  Apesar das tais nuvens sobre a minha cabeça, um raio de lucidez me levou a pedir calma, devagar com o andor, que o santo é de barro, disse na ocasião.  E disse mais: que deveríamos pensar num golpe contra o governo, às vésperas da eleição presidencial. Eu tinha sérias dúvidas da veracidade das denúncias, que precisávamos esperar os desdobramentos.  A proposta de desfiliação foi abortada.  Enquanto isso, Joaquim Barbosa bombava nas manchetes: O menino pobre que veio salvar o Brasil.  Eu dialogava com os meus botões, que havia uma conspiração em curso.  Todo dia o Jornal Nacional exibia tubos de esgoto jorrando dinheiro.  Foi um momento difícil, que deixou sequelas.  Muitos e muitas, decepcionados, saíram do partido. Assim como outros tantos e tantas, decidi que não poderia abandonar o barco naquela altura.  Travamos o bom combate.  E Lula se reelegeu e continuou implementando políticas de inclusão social, assim como Marília Campos, que se reelegeria em 2008. 
Em 2010, apresentei minha carta de desfiliação. Sobre a minha saída do partido, contarei no próximo capítulo.



 

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Como disse anteriormente, em 2006 me afastei da militância político-partidária e fui cuidar de minha saúde. Em 2007 retornei ao  Ponto Cósmico, refúgio em Esmeraldas. Foi um período de reflexões sob as sombras dos pés de pequis, na companhia de miquinhos e de uma diversidade de pássaros e árvores do cerrado. 
A ideia de me desfiliar,  adiada por conta da conjuntura difícil que  o PT passava, foi ganhando forma.  Só em 2009 redigi o primeiro rascunho da carta de desfiliação.  Apesar da crise de 2008, o governo Lula e o país iam bem, com altas taxas de aprovação popular e credibilidade internacional. 
No dia 13 de janeiro de 2010 a carta ficou pronta, no momento em que as pesquisas indicavam Lula com mais de 80% de aprovação popular.   O dia 13, evidentemente, não foi por acaso. Toda ruptura traz sofrimento e pode deixar sequelas. Não era apenas sair do partido, que ajudara a construir, era sair de um projeto de governo em benefício de todas e todos.  Também  pelo sentimento de ver tal projeto ético ruindo. Havia outros planos, como por exemplo de voltar aos meus rabiscos literários.  E tempo livre para a saúde e o lazer.  
Mesmo limitado, fiz uma campanha tímida, do meu modo, para a eleição de Dilma Rousseff .  A mídia corporativa continuava batendo sem complacência  no PT, sedimentando na consciência da população o sentimento antipetista. 
O sonho de morar em uma cidade pequena, sossegada  realizou-se em 2014. Decidi por Coronel Xavier Chaves, também conhecida por Coroas, com a ajuda de Berzé, que me apresentou o município, localizado no Vale das Vertentes, próximo de Tiradentes e São João del Rei. Antes porém, tive a companhia do meu irmão, Lalá, num tur por alguns municípios da região. 
Aí aconteceu de eu ser abordado pelo Suerlei, um dos três vereadores do PT de Coroas, para informar, que a minha ficha de filiação fora transferida. Uai, como assim?, eu não sou mais filiado, respondi.  É sim, confirmou o vereador.  A minha carta de desfiliação não fora aceita pela direção do partido.  Continuo filiado e assim permanece, mas fora das lutas e disputas internas.  
E foi nesse ano de 2014, que a bandeira de Dilma Rousseff, candidata a reeleição, tremulou no muro de minha nova morada.
Aí veio 2015 , com o Aécio Neves não reconhecendo a derrota, Eduardo Cunha, Lava Jato e a mídia corporativa.  Tudo junto e misturado num projeto golpista, que culminou na queda de Dilma em 2016. 


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"A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa" Karl Marx


Com a eleição de Dilma em 2010, fiquei tranquilo.  Agora sim, pensei, o projeto de um governo popular, de inclusão social se consolidara. Não teria mais volta.  A vitória apertada em 2014 contra Aécio Neves, e com as ruas tomadas pela classe média, insufladas pela mídia, com o apoio explicito da FIESP e outros setores empresariais e do sistema financeiro,  sinalizavam dias difíceis, como de fato, foram.  Nem bem Dilma toma posse, em 2015, o golpe ganha forma. Aécio não reconhece a derrota.  Da área vip do estádio, Aécio, Luciano Huck e outras celebridades,  gritam palavrões contra a presidenta. Galvão Bueno, abre o microfone e o grito ecoa: Fora Dilma, Dilma, vai tomar no C.  2014, ano da copa  e o Brasil leva o famoso 7x1 da Alemanha. Em seu primeiro discurso após a derrota, Aécio, em tom de fúria golpista , diz: "Vamos obstruir todos os trabalhos até o país quebrar e a presidente Dilma ficar incapacitada  de governar, sem apoio parlamentar, aí reergueremos o país que nós queremos..." Assim, "com o SUPREMO, com tudo",  como disse Romero Jucá (MDB), Eduardo Cunha coloca o impeachment em votação. É o ano de 2016. Como previra Aécio, Dilma não conseguiu governar em 2015. 
Acompanhei tudo pela TV e pela internet.   A consciência política me tirou das redes sociais e voltei às ruas de São João del Rei e de  Belo Horizonte. Houve resistência.  As ruas foram tomadas pelos vermelhos, em contraposição aos verde-amarelos. Em São João, participei de duas manifestações, com passeata. Fui a uma em Belo Horizonte, com mais de cem mil. Mas o golpe, planejado em detalhes,  se consumou, com os deputados federais comemorando de forma grosseira.  Bolsonaro, em seu voto, homenageia a memória do torturador Brilhante Ustra.
Temer-MDB- vice de Dilma toma posse e dá início ao desmonte das conquistas sociais, ambientais e trabalhistas dos governos Lula e Dilma, com o programa Ponte Para o Futuro, que dá título ao meu poema:

ponte para o futuro
bom para quem fatura
nas costas dos trabalhadores...

não quero esta ponte
pois ela vem da fonte
de ladrões e traidores...

na ponta desta ponte
só há quem apronte
efeitos devastadores...

esta ponte de armadilhas
atravessam as quadrilhas
e a turba de impostores...

nesta ponte não atravesso
pois sempre fui avesso
a corruptos e corruptores...

Enquanto isso, dois personagens entrariam para História: O Juiz Sérgio Moro e Deltan Dallagnol.  O que eles queriam, com o discurso anticorrupção e Lava Jato, irei relembrar no próximo capítulo. 


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Com a internet e as redes sociais, os fatos parecem caminhar mais rápido.  Já não levamos cinquenta anos ou mais, para apuração da verdade, embora as notícias falsas também criem asas. 
O impeachment de Dilma, sem crime de responsabilidade, por exemplo, provavelmente só seria desmascarado muitos anos depois,  assim como a farsa jurídica-midiática contra Lula. Essa é a parte boa das novas tecnologias. 
O que me vem a  memória, nesse caso, mais recente,  é que o golpe contra uma presidenta honesta tinha outro alvo, tirar o Lula da disputa de 2018.  Para essa tarefa, os golpistas neoliberais tinham a famigerada Força Tarefa da Lava Jato, da República de Curitiba, sob as orientações do então Juiz Sérgio Moro, com a velha e surrada mentira dos golpistas de sempre: o combate a corrupção, o mesmo argumento, para golpear nossa frágil democracia em 1964, pelos militares.  E a farsa tarefa fez estragos país afora. O PT sofreu um duro golpe. Foi mal, muito mal nas eleições municipais de 2016. 
O desmonte das políticas de proteção social e trabalhistas dá lugar às políticas neoliberais, com a tal ponte para o futuro de Michel Temer,  que assumira o lugar de Dilma na presidência. Mas o estrago maior estaria por vir. 2018 se aproxima.  E Lula seria uma pedra no caminho dos neoliberais. A mídia corporativa, sob o comando da Globo dá amplo espaço aos dois personagens, que se revelariam posteriormente, nocivos ao Brasil: Sérgio Moro e o chefe da força tarefa da lava jato, Deltan Dallagnol. Não havia espaço para a defesa de Lula. Um massacre diário, que toda imprensa, escrita,  falada e televisada repercutia. Até mesmo em "inocentes" programas de auditório havia espaço para destruir a reputação de Lula e dos petistas, como símbolos da corrupção.  O caminho para tornar Lula inelegível e preso fora pavimentado, com a anuência do SUPREMO.  As redes sociais foram bombardeadas por robôs, com  fake news,  patrocinadas pelos mesmos setores, que foram às ruas pra derrubar Dilma. A classe média era a principal força cooptada na mobilização. Acrescido pelo que parte da esquerda, também nas redes sociais rotulou de pobres de direita. 
O Jornal Nacional abre um longo espaço para Dallagnol apresentar o seu powerpoint em que Lula aparece como o chefe de uma organização criminosa.  A direção do Partido dos Trabalhadores parece desnorteada.  Os advogados de defesa de Lula, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira são constrangidos, com dificuldades de acesso aos autos do processo kafkiano . A mídia golpista deita e rola. Chove denúncias: OAS, Odebrecht Pallocci, Zé Dirceu e o famoso triplex do Guarujá, sítio de Atibaia, com pedalinhos, assim por diante.  O massacre parece não ter fim. Lula se entrega,   saindo de sua trincheira, na sede do  Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. E segue para Curitiba, sem algemas, conforme negociação com a Polícia Federal. 
São trezentos e oitenta dias preso na superintendência da polícia federal. Organiza-se a resistência do acampamento #LulaLivre em que militantes não arredam o pé do local.  Assim como fora Joaquim Barbosa, agora o herói nacional era o Juiz Sergio Moro.  Máscaras dele são vendidas em bancas de revistas. E Dallagnol faturando  em palestras. 
Em 2018 acontece o que talvez os golpistas neoliberais não contassem: a eleição de Jair Bolsonaro.  As peças vão se encaixando,  com Sérgio Moro sendo premiado com o cargo de Ministro da Justiça do novo governo. 
Lula diz o tempo todo que é inocente, que Moro e Dallagnol são mentirosos.  Quando ainda resistia a prisão, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, fora-lhe sugerido o exílio, Lula recusou.  E finalmente foi solto. E Moro considerado um juiz parcial. Um juiz ladrão, disse  em plenário  o Deputado Glauber Braga, numa audiência. 
Outras lembranças surgem, mas como são fatos recentes, deixo por conta das leitoras e leitores. Dallagnol e Moro estão sendo processados pelos estragos causados ao Lula, ao país e a democracia, assim como outros procuradores. 
As eleições presidenciais de 2022 se aproxima. Lula é o líder das pesquisas, com chances de vitória no primeiro turno.  O que os golpistas de sempre farão, para impedir? 
O governo Bolsonaro se revelou uma tragédia, levando consigo, parte das Forças Armadas.  Desemprego, fome, fila pra comprar osso, milícias, orçamento secreto, violência policial, desmatamento, destruição da saúde, da educação, corrupção e outras mazelas. 
Com esse episódio encerro as minhas lembranças de militante petista, iniciada antes mesmo da legalização do partido. O que vai acontecer até outubro de 2022 fica para lembranças futuras. 
À partir do próximo capítulo de minhas lembranças, contarei com foram minhas participações no movimento cultural, popular e ambiental. 


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"A natureza pode suprir todas as necessidades do homem, menos a sua ganância"
Gandhi

Creio que foram dois evento ocorridos na infância, que despertaram a minha consciência ambiental. O primeiro foi ao ver meu pai surrando um boi, que não aceitava a canga. O frágil animal apanhou tanto, que vi lágrimas escorrerem de seus olhos e dos meus. Pouco tempo depois ganhei do Edson, filho de "Seu" Tatão,  uma gaiola com alçapão e um canário chapinha,  Tinha lá os meus nove anos. O Edson me instrui o que fazer: colocar a gaiola no galho de uma árvore, que o canarinho iria cantar e atrair uma fêmea ao alçapão. Assim fiz, num local distante da casa, próximo de um córrego. Criança distraída, esqueci da gaiola no mato.  Depois de uns dias, lembrei-me do pobre pássaro e da gaiola pendurada. Corri com o coração pulando, na esperança de salvar o canário. Em vão. Estava lá na gaiola, caído de barriguinha para cima, morto de sede e fome. Jurei nunca mais prender pássaros.  Bem antes desses dois eventos, tive outra decepção com um papagaio. O louro espalhava alegria pela casa. Me lembro bem de sua algazarra. Chamava-nos pelo nome, inclusive o cachorro Peri.  Uma de suas farras, era dar um pouco de sua comida às galinhas. Ele as chamava, imitando minha mãe, quando dava milho às galinhas: prutiti, prutititi, pruttiti.  Elas chegavam debaixo do poleiro, em seguida o louro ciscava, jogando a comida no chão. Ato contínuo, chamava o Peri e gritava: pega nego, pega nego. O cachorro assustava as galinhas, com latidos ininterruptos. O Louro caía na gargalhada.  Na primeira vez que ele saíra de casa, a gente o encontrou na estrada, voltando para casa, à pé.  Na segunda vez não retornou mais.  Todos ficamos tristes. 
Carlos, meu irmão caçula armara umas vinte arapucas e as espalhava no cafezal, para pegar Fogo Pagô (Rolinhas), com a finalidade de fazer umas paneladas.  Algumas inocentes juritis, também ficavam presas.  O mano dava uma pequena paulada nas cabecinhas das aves, depenava e as fritava.  Achava aquilo uma monstruosidade, a ponto de eu ir à lavoura e desmontar as arapucas. 
Dando um salto no tempo, chego a Contagem em 1972, em busca de emprego, quando vou morar na casa de meu irmão, Altair, que acolhia a todos da família em fuga da dura lida no campo. Ele morava próximo da fábrica de cimento Itaú, que despejava na atmosfera, toneladas de pó de cimento.  O mesmo acontecia com a Mannesman, no Barreiro, em Belo Horizonte, na divisa de  Contagem.  O Altair tirava do forro da casa, litros de pó de cimento.  Todo esse pó causava sérios danos à saúde dos moradores próximos dessas fábricas. Não cheguei a participar, mas havia um movimento de moradores contra a poluição, que levaria, tempos depois ao fechamento da fábrica de cimento e a Mannesman colocar filtros antipoluentes. 
Esses eventos contribuíram muito para, anos depois,  me engajar no movimento popular e ambiental, quando me tornaria um dos fundadores da Casa do Movimento Popular de Contagem, presidente da Associação dos Moradores do Bairro Industrial - ACBI,  conselheiro do meio ambiente de Contagem - COMAC e militante da Central de Movimentos Populares - CMP
Sobre a minha participação nesses movimentos, narrarei nos capítulos seguintes.
 


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O movimento popular é diverso. Nas lutas por melhorias dos bairros, por exemplo, a gente lutava pelas melhorias, também dos transportes coletivo, da saúde, educação,  coleta de lixo, saneamento básico, do lazer, por segurança, entre outros.  E a diversidade do movimento popular tem também a defesa da causa animal, o meio ambiente saudável, a luta antirracista, por moradias, a defesa das minorias. E por aí vai. Como juntar todos esses movimentos e organizá-los?  A quem recorrer, para não ficarmos reféns de políticos oportunistas ou de empresários manipuladores?  Quando fui presidente da Associação Comunitária do Bairro Industrial, em Contagem, lá pelos idos de 1998/99, tinha consciência que a mobilização popular seria o nosso suporte.   
A ACBI, quando a presidi, tinha uma experiência de quase duas décadas. Sua criação foi estimulada pelo Padre Carlos Pinto. A nossa pequena sede própria funcionava e ainda funciona,  onde fora a primeira igreja católica do bairro e foi doada pela Paróquia São José Operário. Em 1998/99, encabecei a chapa vitoriosa, com: Adilson Dutra, Aparecida Novelo, Ciro Araújo, Dona Geralda, Dona Iris Moreira Rodrigues, Dona Terezinha, Geraldo Bernardes, Marlene Vilaça, Neuza, Rubens Pinheiro, José João e mais um, cujo nome me foge da memória. 
No próximo capítulo vou contar sobre algumas bandeiras de luta, que travamos: a melhoria no transporte coletivo; o aniversário de vinte anos da associação, com celebração ecumênica e rua de lazer; o forró, cujo objetivo era o de proporcionar lazer e arrecadar uma grana, para a manutenção da sede; a criação do Informativo ACBI; o programa de rádio na rádio comunitária,  a parceria com AA Mãos amigas e com a Associação dos moradores do Bairro Lindeia, na luta pelo alargamento da passagem da via férrea, entre a região do  Bairro Industrial e  Bairro Tirol, na região do Barreiro.


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À noite, quando me deito, muitas vezes perco o sono,  por conta do que pretendo escrever.  É quando as ideias surgem.  Tenho sempre um papel e uma caneta ao lado.  Anoto o eixo da narrativa, para desenvolver depois. Acontece também de me levantar e escrever tudo que povoa o meu pensamento. Numa destas noites me pus a pensar nos dois nomes que deixei de citar no capítulo anterior.  Rolava de um lado ao outro, tentei esquecer e cochilei.  Como num sonho os nomes de Elizabete e Jader surgiram.  O Jader, continuo inseguro sobre o nome.  A Elizabete, não.  Tivemos de nos esforçar, para trazê-la para chapa vitoriosa.  Após muitas conversas, ela aceitou, mas sob a condição de ocupar um cargo, que não exigisse muito. Ela ficara viúva recente e se encontrava fragilizada. O Jader é filho de Dona Madalena, poeta analfabeta, que frequentava as reuniões e assembleias da ACBI. Jader, juntamente com a Dona Geralda e Dona Terezinha, eram os responsáveis pelo funcionamento do forró da associação nas noites de sábados.  Pela venda de ingressos e colocar as músicas, extraídas de vinis. 
Dona Madalena merece uma atenção especial. Como não sabia escrever, ela declamava os versos e os decorava.  O gravador era a sua memória. Tive a lucidez de escrever um poema dela e publicar no Informativo ACBI. Enquanto ela declamava eu ia passando para o papel.  Ela teve de repetir a declamação várias vezes.  Se bem me lembro, pois não tenho mais os registros do informativo, eram do tipo cordel.  Acho que é para isso que serve um boletim popular: divulgar o trabalho de pessoas como Dona Madalena, esses heróis praticamente invisíveis.  No Informativo ACBI tinha também uma coluna Opinião, para que as lideranças local pudessem se manifestar.
No próximo capitulo conto como foi a nossa luta vitoriosa pelas melhorias do transporte coletivo. As assembleias foram de muita participação popular, com momentos de tensão.


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Acredito que nenhum integrante da ACBI tinha ideia das consequências da mobilização pelas mudanças de itinerário das linhas 1117-A/B e 1112A, de propriedade da  empresa Transamazonas.  A nossa proposta de luta era de transferir o final das linhas para outro local, que beneficiasse o maior número de usuários, com os ônibus circulando por mais ruas do bairro.
Na primeira audiência no DER-MG, órgão que gerenciava o transporte de passageiros da região metropolitana de Belo Horizonte, percebi que não seria fácil, como imaginava.  Também nos reunimos com os representantes da concessionária, para sondarmos se haveria resistência.  Falaram de custos, aumento da quilometragem, mas que cumpririam a determinação do órgão gerenciador. Aproveitamos o momento, para reivindicar um ônibus "especial", que conduzisse parentes e amigos de moradores do bairro a enterros.  Fomos prontamente atendidos,  mediante um pedido por carta, com o carimbo da associação, assinada pelo presidente.  Quando Seu Antenor (quem, do bairro, não se lembra desse evento trágico?),  assassinou a família, pedimos e fomos e atendidos com dois ônibus. 
Voltando à mudança de itinerário, não podíamos levar a luta, sem antes consultar a população.  Imprimimos um boletim específico e distribuímos no final das linhas, em horário de pico, convocando os usuários, para uma assembleia geral em nossa sede.  Foi um momento de muita participação, que provocou um impasse: mobilizados por uma senhora, cujo nome me foge, ela não concordava com a mudança.  Por outro lado, os favoráveis às mudanças, também se manifestaram.  Foi então que propus a cada grupo, fazer um abaixo-assinado, quem trouxesse o maior número de assinaturas, seria vencedor.  Era uma forma de ganhar tempo e manter a mobilização.  Estabelecemos um tempo e marcamos nova assembleia. 
E chegou o dia D.  Os favoráveis a manutenção do local de saída dos ônibus trouxeram o abaixo-assinado com cerca de mil e duzentas assinaturas. Os favoráveis às mudanças, com cerca de oitocentos nomes.  Fizemos a contagem e a líder da manutenção comemorou o resultado.  Não haveria mudança de itinerário.  A sede  fora tomada de alegria de um lado, de tristeza do outro, mas enfim, a vontade da maioria precisava ser acatada. Foi então que apresentei uma proposta alternativa.  Disse que seria injusto com uma parcela significativa de moradores.  Porque três linhas saindo do mesmo local? Sugeri, com a anuência dos demais companheiros da diretoria, que uma dessas linhas fosse transferida para o outro ponto.  Todos concordamos e o ambiente foi de confraternização. 
Na semana seguinte, acompanhado pelo representante do DER, percorremos e assinalamos os pontos do novo itinerário da linha 1117-B. 


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A travessia da via férrea, que liga o bairro Industrial-Contagem, ao bairro Tirol na região do Barreiro-BH era muito estreita, provocando congestionamento de trânsito, principalmente em horário de pico, além de acidentes,  pois é também uma passagem de pedestres.
A ACBI e a ACBL (Associação do Comunitária do Bairro Lindéia) uniram na luta pelo alargamento dessa travessia, à Rua Fabiano Taylor.  Uma reivindicação, que diga-se de passagem, seria desnecessária. Bastava que técnicos das duas prefeituras acionassem a MRS Logística, concessionária da via, para que a obra fosse feita. 
O companheiro José Ferreira Marques, presidente da ACBL me procurou, para pressionarmos as autoridades públicas e privadas para romper com a burocracia, uma vez que a obra dependia da prefeitura de Contagem e de BH, além da MRS. 
Depois de idas e vindas aos tais órgãos competentes, as duas associações redigiram um documento e encaminhamos aos responsáveis e a passagem da via férrea foi finalmente executada. 


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Celebração ecumênica pelos vinte anos da ACBI


Nos reunimos para deliberar sobre as comemorações dos vinte anos da ACBI.  Formamos grupos e cada um ficaria responsável por uma ou mais tarefa. Eu e Dona Iris ficamos de captar recursos junto aos vereadores. Outro grupo ficou responsável pela cozinha, outro pra fazer contato com entidades que pudessem participar e contribuir com o evento, etc.  Dona Iris Rodrigues tinha bom trânsito com o vereador Gueber Ferreira-PFL. Com o livro de ouro debaixo do braço fomos à Câmara.  Alguns vereadores contribuíram com uma merreca.  O Gueber, além de uma pequena contribuição em espécie, cedeu o palco, com som e um operador à nossa disposição,  o Vander Rodrigues. O forró, que fechou a noite de festa foi um sucesso, com dois grupos sertanejo se revezando no palco.  Dona Terezinha me convidou pra uma dança, respondi que não sabia dançar, ela não se importou. Mas mal começamos, ela desistiu.  Não consegui acompanhá-la.
Durante o dia teve rua de lazer, patrocinada pelo SESC-MG. Lá pelas dez horas teve uma celebração ecumênica, com a participação dos padres Osvaldo, Carlos Pinto e dos pastores Paulo César e outro da Igreja Presbiteriana. Contamos ainda com a contribuição do coral espírita Elevar, sob a regência do maestro Cléber, sob um sol de rachar moleira. Do coral eu me lembro de Eliana Belo, Mariza Lopes, José Prado, Maria Lúcia Freitas.  A celebração ecumênica foi articulada por  Eva Torres, atendendo a solicitação de Rubens Pinheiro. 
Não fossem as ações de Aparecida Novelo, Dona Geralda, Dona Iris e Dona Terezinha, não teríamos os deliciosos salgados, acompanhados pelas bebidas vendidas pelo Jáder,  durante o forró.  
Foi como representante da Associação Comunitária do Bairro Industrial, que disputei uma vaga no COMAC - Conselho de do Meio Ambiente de Contagem, para representar a sociedade civil. É o que narrarei a seguir. 


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7 de agosto de 2022.  Depois de tomar o café da manhã, decidi fazer uma faxina básica na casa. Enquanto passava o pano de chão,  refletia sobre quem poderia se interessar pelas minhas lembranças.  Não vou cair na armadilha do utilitarismo.  E os pensamentos tomaram outro rumo.  Como desenvolver a narrativa de como fui eleito ao Conselho Municipal do Meio Ambiente de Contagem, o COMAC?  Continuei a faxina, enquanto Antonia lavava umas peças de roupa e eu buscava na memória o que acontecera naquela manhã. Sei que foi numa manhã. Quanto ao dia, mês e ano, não sei exatamente. Provavelmente em 1998. Ou seria 1999. Bastava ir à secretaria e pesquisar as atas, mas como disse lá atrás, optei somente pelo que a memória traz à tona.  Sei que no dia da escolha houve uma tentativa de impedir a minha participação, por parte da assessoria do Secretário Juca Camargos,  sob a alegação de que a denominação da entidade que me indicara, a Associação Comunitária do Bairro Industrial, deveria ser 'associação de moradores'.  Que coisa!  Célia Cristina Zatti, funcionária da prefeitura, lotada na Secretaria do Meio Ambiente, intercedeu a nosso favor e o impasse foi superado.  A vereadora Letícia da Penha foi conselheira, representando o legislativo municipal. 
No processo de escolha do representante da sociedade civil eu me lembro de que havia um outro candidato à vaga ao conselho.  Nos reunimos com as lideranças, para a definição.  Não sei como chegamos ao consenso, se houve votação ou se o concorrente retirou a candidatura.  Enfim, fui eleito, com o apoio de cerca de quinze entidades.  E logo após tomarmos posse, houve um café e confraternização. À partir desse dia, iria enfrentar os interesses dos chamados empreendedores, em outras palavras, especuladores  imobiliários  em pautas que pretendiam avançar sobre áreas protegidas pela legislação ambiental, em especial sobre a represa de Vargem das Flores, responsável pelo abastecimento de água de cerca de 70%  da população de Contagem.  Um curso rápido sobre a legislação ambiental foi ministrado aos novos conselheiros por Célia Cristina e Sirlene.  Siglas como LP (licença prévia), LI (licença de instalação),  EIA-RIMA (Estudo de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto do Meio Ambiente),  passaram a fazer parte do meu vocabulário. A represa de Várzea das Flores passou a ser prioridade em nossa luta, que se desdobrou na coleta seletiva do lixo.  As reuniões do conselho aconteciam no Parque Gentil Diniz, aconchegante, preservado, com árvores e pássaros, além de miquinhos.  E você, que me lê, moradora e moradora de Contagem, faça uma visita. É legal!


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Ser um conselheiro do meio ambiente me deu a chance de aprender e levar  conhecimento à várias pessoas.  Educação ambiental era uma das atividades, sempre com o suporte do mandato da Vereadora Letícia da Penha-PT.  Fiz palestras em escolas, igrejas. Por onde passava, falava de protegermos as águas e de implantarmos a coleta seletiva.  A bacia hidrográfica de Várzea das Flores ( Contagem e Betim) era a menina de nossos olhos, com desdobramentos na bacia da Pampulha, em BH, uma vez que muitos córregos de Contagem desaguam na Lagoa da Pampulha.
Nas organizações de bairros eu sempre repetia, como um mantra, sobre a coleta seletiva. Nas escolas, sobre Vargem das Flores. Tínhamos pressa. E para que isso se tornasse realidade, não bastava convencer a população. Precisávamos convencer as autoridades. Entre as ações, por meio do Deputado Estadual Rogério Correia, conseguimos, depois de idas e vindas, reuniões, debates, criar a APA Vargem das Flores.  Outra iniciativa foi a criação da ASMAC, Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis de Contagem.  Além do trabalho de convencer as autoridades, precisávamos catar catadores, os principais protagonistas da criação da entidade. Para juntar os catadores e criar a ASMAC, a participação do Padre Ferreira foi fundamental.  As conquistas não caem do céu. Até chegarmos a esse estágio, tivemos de superar obstáculos.  Necessário a participação popular. Foi isso que fizemos nas palestras nas escolas Ovídio Guerra, no bairro Eldorado, numa escola em Nova Contagem e em vários debates com organizações da sociedade civil. Produzimos e distribuímos boletins, vídeos.  Na escola Ovídio Guerra, com um projetor eu mostrava e palestrava para alunas e alunos sobre Vargem das Flores e os córregos  que formavam o lago. Muito lixo no curso dos córregos: garrafas pet, brinquedos e sacolas de plástico, pneus, sombrinhas, tecidos. Eu e a cinegrafista Marli Côrrea (estávamos produzindo um vídeo) seguimos o curso de um desses córregos, à partir do Bairro Retiro até ele desaguar no lago.  Que tristeza!  No percurso, esbarramos com um varal de roupas e outras tralhas, onde o ribeirão fazia uma curva acentuada.  Era uma cerca de arame farpado. Quando o córrego enchia, as peças de tecido carreadas se prendiam na cerca. Assim que as águas baixavam surgia aquela imagem surreal, parecida com uma tela de Salvador Dali.  Mais triste ainda foi ao chegarmos no lago: milhares de garrafas pet, uma montanha. Um funcionário da prefeitura me revelou que caminhões saíam dali, lotados.  Nesse dia, o recolhimento das garrafas não aconteceram. 
Para não alongar, deixarei para o próximo capítulo o que aconteceu numa escola de Nova Contagem. 


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“A democracia é a atividade criadora dos cidadãos e aparece em sua essência quando existe igualdade, liberdade e participação” Marilena Chauí


Fui fazer uma palestra sobre educação ambiental em uma escola do bairro Nova Contagem.  Mas antes conto um pouco do surgimento do bairro, próximo ao bairro Retiro. 
Newton Cardoso fora eleito prefeito de Contagem em 1972, ainda  sob a ditadura militar (lembrando que o regime permitia eleições municipais, disputada por apenas dois partidos, o MDB, oposição de fachada e ARENA, da situação),  ano em que cheguei ao município,  vindo do interior,  cheio de sonhos. Newton governou  de 1973 a 1977 e de 1983 a 1986,  sempre pelo MDB.  A carreira política de Newton teve início nesse período até chegar ao Governo do Estado e se elegendo várias vezes deputado federal.  Uma de suas promessas de campanha era doar lotes e casas. Nesta época não existia o plano diretor e os bairros surgiam sem planejamento algum. Os empreendimentos imobiliários vendiam lotes e apenas abriam as ruas com tratores, tudo sem infraestrutura.  Depois os moradores se viravam para conquistar,  junto aos órgãos governamentais as melhorias, como água, luz, coleta do lixo e transportes. Calçamento, escolas, postos de saúde e outras melhorias,  seriam em outro momento, quando o novo bairro passara pelo adensamento desorganizado.  Enquanto a água  não chegava, abriam cisternas.  O despejo do esgoto era em fossas.  Primeiro a cisterna, depois levantar o barraco, pular pra dentro e fazer "gato",  pra conseguir luz.  Enquanto isso, a iluminação era à luz de velas.  Aí o Newtão entrou com a promessa de dar casas. Assim nasceu o Nova Contagem. 
Voltando a palestra, fui bem recebido pela coordenadora da escola.  Não me lembro o nome dela. Em uma sala, a professora reuniu os alunos e as alunas para eu começar a conversa. Nem bem iniciara, eis que entra um aluno, acredito que entre 12/13 anos, senta-se ao lado da professora e a abraça, em seguida dá-lhe um beijo na face e fala pra mim: - Minha professora é linda, né professor? Um silêncio constrangedor toma conta da ambiente.  A professora pede ao jovem para não interromper. Volto a falar sobre a necessidade de participação dos moradores na preservação do meio ambiente.  O inquieto aluno volta a interromper a minha fala, conversando alto com alguém.  A professora pede licença e  o retira da sala.  Continuo a palestra. Depois das perguntas e respostas, encerro. 
Antes de ir embora, tomo um cafezinho na cantina da escola. A professora me pede desculpas pelo "incidente" e me conta que o jovem aluno é irmão de um traficante, que sempre aparece na escola,  armado, para defender seu protegido, no caso de algum processo disciplinar. 


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Tentarei fazer um resumo do que pretendo ser o último capítulo de minha participação como conselheiro do meio ambiente no COMAC (Conselho de Defesa do Meio Ambiente de Contagem). Os fatos aqui narrados são fragmentos e não seguem, portanto,  ordem cronológica.
No bairro Nova Contagem não havia rede de esgoto, na época em que fui conselheiro. Uma das causas era a falta de interesse das autoridades. Esgoto é uma obra que fica escondida debaixo da terra. Não dava votos. Talvez ainda não.  Muitos políticos gostam mesmo é de obras de visibilidade, como asfalto, túneis e viadutos. Havia uma empresa que fazia a limpeza (e loby) com sua frota de caminhões limpa-fossas. Imaginem o quanto esta empresa ganhava com a falta de esgoto e quanto de prejuízo causava ao meio ambiente. 
Numa ocasião visitei uma área de nascente, que um empreendedor queria drenar, para construir uma obra, próxima ao lago da mata do Confisco, que causaria um impacto negativo, atingindo, inclusive, a bacia da Pampulha. Convidamos a Loló, não me lembro se ela atuava no Consórcio da Pampulha ou na associação do bairro Bandeirantes, que se localiza nas proximidades da lagoa da Pampulha, para, juntos, denunciarmos e barrarmos esse empreendimento.  Levamos a pauta à TV Globo Minas, que foi conosco ao local.  Pactuamos que a Loló falaria à repórter, para que eu fosse preservado e assim evitar retaliações por parte de gente do governo de Contagem. A reportagem foi ao ar. Na reunião seguinte do conselho, percebi olhares de gente do governo como se quisessem dizer: " ah eu sei que foi você quem estava por traz dessa denúncia à imprensa".  Só depois entendi:  minha imagem fora flagrada pelo cinegrafista, quando eu apontava com o dedo, o local da nascente. Foi uma questão de segundos, o suficiente para me identificarem. 
Em uma reunião do conselho o ambiente estava tenso, creio, por conta de uma pauta  que poderia autorizar a instalação de um empreendimento, ao final aprovado por um voto de diferença. Se o conselheiro titular não tivesse faltado àquela reunião, haveria um empate e o secretário Juca Camargos teria de dar o voto minerva. Aí então ele teria de dizer de que lado estava. O conselheiro suplente votou com o secretário. Ficamos sem saber se foi armação ou coincidência. O conselheiro titular votaria por barrar o empreendimento. 
Por último, lembro que antes da reunião do conselho,  eu me reunia com as lideranças que me conduziram ao COMAC, para analisarmos e deliberarmos sobre a pauta, enfim, como eu deveria votar. Meu suplente era o Geraldo Ferreira Pinto, mais conhecido por Índio, morador do bairro Petrolândia, sempre presente, no movimento popular e em defesa do meio ambiente.
  

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Imagem: Jefil


O sonho de realizar um projeto sem as amarras da política partidária me levou a criar o Grupo Oficina de Sonhos.  Como na maioria das vezes, não me lembro o ano.  Com certeza,  ao final dos anos 90.   A ideia fixa me levou a perder o sono em algumas noites e sonhar com um projeto de literatura, música e teatro, tendo como eixo, o comportamento. A frase de Raul Seixas "sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só; sonho que se sonha junto é realidade", me levou a Geraldo Bernardes, velho companheiro de militância e ao novo amigo, Rubens Pinheiro.  Expus a ideia aos dois, que toparam de imediato.  Rubens sugeriu convidarmos o Marco Aurélio, o Marquinhos, com experiência de luta no movimento sindical e popular.  A  primeira reunião, que oficializou o grupo, aconteceu na casa de Rubens. Laura, sua companheira, providenciou café e pão de queijo. Dessa reunião nasceu o nome Oficina de Sonhos, que começaria a editar e publicar o boletim Intercâmbio, de meio ofício de quatro páginas, com textos curtos, para incentivar as pessoas a leituras. Decidimos, também, que a nossa sede seria móvel.  Ora na casa de um membro, ora na casa de outro, com o cafezinho e os bolos, por conta do anfitrião. Foi aí que surgiu um problema: o grupo não podia ser um Clube do Bolinha. As as mulheres, no caso as nossas companheiras precisavam ser integradas. E com o tempo, pensar na integração de outras pessoas, caso quisessem.  Mas não queríamos um grupão.  Nossas companheiras foram convidadas e toparam.  Assim, com a integração de Eliana, Laura, Lúcia e Simone, o grupo teve a sua ampliação. Elson Pego também veio logo em seguida, trazendo seu violão, que pertencia ao Rubens, debaixo do braço, animando nossas reuniões com músicas de Xangai, Elomar, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, entre outros.  Era um sonho alto para as nossas condições financeiras, com os custos divididos entre os integrantes, de acordo com a capacidade de cada um. 
Eu fiquei responsável pela primeira página, a capa, Geraldo Bernardes,  pela segunda, Rubens Pinheiro pela terceira e o Marquinhos pela quarta.  A tiragem inicial de cinco mil exemplares foi distribuída nos locais previamente definidos: Escolas Júlia Kubistischek,  Maria do Amparo, Nossa Senhora Aparecida (Bairro Industrial)  e Machado de Assis,  Antônio Confrade (Bairro Amazonas), que se tornaram pontos fixo, pela boa aceitação.  Sempre na entrada do horário noturno. Outro local definido foi na saída da missa da Igreja São José Operário e no centro comercial do bairro. Uma vez distribuímos o boletim na feira do Bairro Amazonas. 
No próximo capítulo trago os conteúdos do nosso primeiro número . 


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Prometi no capítulo anterior que reproduziria os conteúdos do Intercâmbio número zero.  Aí eu me lembrei de minha participação no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, que se não me falha a memória, foi em 2001. Fui participar de um seminário da Central de Movimento Popular-CMP.  Havia representantes do movimento popular de todas as partes do Brasil, como MST, MTST, movimento de luta por moradia, da saúde, meio ambiente e outros. Eu me lembro do representante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto-MTST fazer uma intervenção, que me deixou impressionado pela capacidade de argumentação.  Era um militante jovem, que defendeu sua tese de forma bem articulada. Se não me engano, era o Guilherme Boulos.
A Democracia permite o encontro da diversidade. O Fórum Social Mundial, cujo slogan era Um Outro Mundo é Possível, tinha oficinas, conferências e seminários temáticos.  Tinha palestrantes, com Noam Chomsky e Frei Beto, entre outras e outros intelectuais e artistas do Brasil e do mundo.  Além do seminário da CMP, ouvi a palestra de Frei Beto, que foi quem pensou a criação da CMP, uma espécie de CUT do movimento popular.  Mas quero contar sobre alguns acontecimentos que não têm registro. O Fórum Social Mundial tem. 
Foi a primeira vez que fui a Porto Alegre. Foi em janeiro, ou fevereiro. Cuidei de me prevenir, levando uma jaqueta jeans, por causa do frio. A jaqueta tornou-se um estorvo. Não cabia na mochila.  Fazia um calor de uns quarenta graus.  Só então fiquei sabendo que lá tem as quatro estações. No inverno faz um frio de lascar; no verão um calor arretado. Ao chegarmos, não tinha hotel, nem pousada, tudo lotado. O Zé Geraldo, companheiro de viagens e dirigente da CMP  não tinha feito uma  reserva. Ele ligou pra alguém, que instruiu irmos para o município de Esteio, na região metropolitana.  Que situação! Pegamos o trem na estação do metrô e rumamos para lá.  O local da hospedagem era o parque de exposição agropecuária.  E de novo, não tinha alojamento. Passamos parte da noite, cansados, juntos com vários companheiros e companheiras, numa imensa área coberta. Nessa hora a jaqueta me serviu de travesseiro. Estávamos cansados de dar pernadas. O calor produziu um odor, queria entrar debaixo de uma ducha. Pernilongo! O inseto fazia acrobacia e cantava em meus ouvidos. Não conseguia tirar uma soneca. Passado umas horas, o Zé Geraldo me chama. Conseguira espaço num  alojamento. Os pernilongos atrás. Tinha uns colchões no chão. Depois do banho, fomos dormir. O Zé, virado de costas, roncava numa altura! Não ligava pros pernilongos sugando seu sangue pelas costas.  Pernilongos sempre me tiraram o sono. Por mais cansado que esteja, não consigo. Principalmente pelo zumbido nos ouvidos.  Caramba, o que fazer? Um companheiro de Belém me ofereceu um repelente feito a base de ervas do Pará. Ele, como tantas e tantos, vendiam produtos trazidos de suas terras. Principalmente artesanatos. 
Terminado as atividades do fórum, retornei num ônibus do Sindicato dos Metalúrgicos de BH, Contagem e região. O Zé Geraldo voltou de avião. Foram vinte e nove horas de viagem. O ônibus era confortável e me permitiu dormir praticamente o tempo todo. 
No próximo capítulo cumpro a promessa do capítulo anterior.



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“A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” Darcy Ribeiro

O número 0 do nosso boletim Intercâmbio foi distribuído nas escolas do bairro Industrial e em algumas do bairro Amazonas, em Contagem.  Na capa eu escrevi a crônica Olhar, que viria integrar, em 2006,  o meu livro de bolso Crônicas do Cotidiano Popular:

Olhar
 
Pelos olhos se conhece o coração das pessoas. Expressões como "fuzilou-me com os olhos"; "olhar bondoso"; "olhar assustado", etc., traduzem sentimentos e emoções. O olhar assustado do filho diante do olhar severo do pai.
Os olhos brilham diante de uma obra de arte. Arregalamos os olhos sobre um prato saboroso e, se estamos a fim de alguém, estabelecemos contato através do flerte: olhar de desejo, olhar apaixonado.
Os olhos fotografam belezas e horrores. Alguns dizem que as plantas secam com um mal olhado e o que os olhos não veem, o coração não sente.
Lançando um olhar sobre o Brasil, enxergamos paisagens belas: rios, matas, pássaros, cidades com ruas limpas, praças e jardins bem cuidados, casas bonitas, crianças entrando e saindo das escolas em algazarras. São belezas.
Porém, há o outro lado, que fere os olhos e dói o coração: ruas e estradas esburacadas, erosões, becos e corações sombrios, crianças abandonadas, gente catando comida no lixo, olhos no chão, tristes olhos no chão, a natureza sendo violada, poluição, incêndio nas matas.
Olhar nossa casa, nossa rua, nossa cidade, o País, o mundo, o Universo: o céu está estrelado, a lua brilha!
Olhar tudo, sem preconceito, pois o que os olhos vêm, o coração sente e quando o coração sente... bem, aí é outra história.

Na segunda página, que números depois passaria à quarta,  RIR É O MELHOR REMÉDIO, Marco Aurélio, o Marquinhos escreveu:

Cavalo educado organiza fila de ônibus

Tudo aconteceu em uma tarde de segunda-feira na fila de ônibus 112-A - B. Industrial.
A fila atravessava o quarteirão, o ônibus não aparecia há mais de 1 hora, o nervo à flor da pele. Foi então que de repente lá vem ele. O ônibus? NÃO!, o cavalo, digo, o guarda com seu ar imponente de policial montado em seu cavalo e em seguida o tão esperado ônibus. Não deu outra: tinha gente para encher três ônibus. Confusão armada, fura fila dali e daqui. O guarda, por sua vez tentando organizar a fila acaba batendo com a cara do cavalo em uma senhora, que enlouquecida de raiva gritou:
- Seu mal educado!...
- Mal educados são vocês! - retrucou o guarda. Se o povo fosse educado não precisaria de cavalo para organizar fila de ônibus.
A senhora, feliz da vida, soltou uma gargalhada e disse:
"O senhor tem razão, Senhor Cavalo, desculpe, seu guarda!"

"É MAIS DIFÍCIL OCULTAR IGNORÂNCIA DO QUE ADQUIRIR CONHECIMENTO".

Na página 3 , na coluna TRUQUES & GALHOS, Geraldo Bernardes deu explicações sobre DIARRÉIA, e LUXAÇÃO. Enquanto em POIS É..., Rubens reproduziu a fábula:
" Há muito tempo atrás uma grande floresta começou a pegar fogo. Os animais corriam desesperados tratando de salvar a própria pele. Foi aí que um leão parou ao ver um pequeno beija-flor. Ele voava até o rio, pegava água, jogava no fogo, voltava para o rio e assim continuava...
 - Ah, beija-flor! Você acha que vai conseguir apagar esse fogaréu? Perguntou o leão. 
O beija-flor respondeu:
 Sei que não vou conseguir apagar todo esse fogo sozinho, mas estou fazendo a minha parte". 


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Iniciamos o Intercâmbio, boletim do Grupo Oficina de Sonhos com o número zero, para, à partir do número 1, o formato e os conteúdos fossem definidos. Como a repercussão foi boa, modificamos pouca coisa.  E de novo recorremos ao chargista Berzé, para a diagramação, no que fomos prontamente atendidos.  Assim, lá pelos idos de 1998, o número 1 abre o boletim, com uma cônica de minha autoria:

O VIZINHO É O PARENTE MAIS PRÓXIMO

Bom é viver em harmonia com o vizinho. Afinal, estamos ali juntinhos, parede-meia, um socorrendo o outro na hora das necessidades.
- Laura, me empresta dois reais para comprar pão e leite, que acerto depois.
- Simone, a alfavaca é um santo remédio para os rins.
- Eliana, você protege a minha casa durante a minha viagem de férias?
- Claro! E águo as plantas com o maior prazer, Sandra.
Bom vizinho é assim: sempre pronto para praticar a solidariedade, fazendo nascer e fortalecer as amizades.
Um remédio caseiro, uma receita de bolo, uma ferramenta emprestada e devolvida, uma muda de planta, um jogo de truco... Seis! Ladrão!... Uma palavra amiga, de consolo. E por aí vai.
Todavia nem sempre é assim. Às vezes um quer levar vantagem, dar uma rasteira, tipos espertos, “coelhos”. Som alto até tarde. Lixo no passeio do outro. Fofocas, calúnias. Zoeira no boteco da esquina, ou membros de uma nova seita gritando sons estranhos.
Nenhuma relação, para ser boa, pode ser unilateral e praticar a política de boa vizinhança é, no mínimo, usar a inteligência.
Inveja, que bobagem! Se o vizinho comprou um carro novo ou reformou a casa, que bom!
Casa bonita enfeita a rua, e o carro, bem, o carro...
- Ei vizinho! Minha mulher está sentindo dores.
Pronto, chegou a hora do parto. Lá vai o vizinho com seu carro, socorrer.
Como já diziam os nossos avós: o vizinho é o parente mais próximo.

 TRUQUE & GALHOS foi para a página 2 de responsabilidade de Geraldo Bernardes, falava das qualidades da alfavaca no tratamento de saúde. na página 3 Rubens e Laura escreveram sobre os 500 anos de Brasil:

Brasil!
País de muitos credos e culturas.
País que se diz descoberto há 500 anos!!!
Será mesmo?
Não é de se envergonhar?
Como descoberto?
Já havia aqui habitantes!
Pois é...
Povo que tinha toda essa imensa terra
E que hoje dela é apenas inquilino
Vivia em liberdade. 
Liberdade de andar nu, de usar a terra e a natureza, de buscar nela sua sobrevivência, sem destruí-la.
É!... Os índios eram parte da natureza. Mais: Eram a natureza.
Que pena!
Homens se dizendo civilizados destroem, desencantam...
Arrancaram desse ser ingênuo sua crença, seus hábitos, sua pureza!
Naquele tempo sim! "Todo dia era dia de índio"
E hoje eles (os poucos que ainda restam)
Só têm o dia 19 de abril!

Quem não vive para servir, não serve para viver - Ghandi

Na quarta página, na coluna RIR AINDA É O MELHOR REMÉDIO,  Marquinhos escreveu:

O caso se deu da seguinte forma:

O povo do Bairro Industrial estava danado da vida com as guias de impostos enviadas pelas prefeituras de Contagem e Belo Horizonte. A associação do bairro travou luta feia pela definição dos limites municipais do bairro: Foram abaixo-assinados, audiências, manifestações, etc. 
Acontece que o leite estava correndo solto e o que é melhor: de graça. Se o povo e a associação não agissem, até a Prefeitura de Betim iria mamar.
Foi assim que a vaca foi para o brejo, com os moradores proclamando: A onça vai beber água!
A associação recolheu todas as guias dos impostos dos moradores. A indiferença oportunista dos prefeitos incomodava. Aí surgiu a ideia:
- Fogo nisso!
Levaram todas as guias dos impostos para a porta da Prefeitura e atearam fogo. Uma beleza! Parecia Festa Junina.
Assim foi resolvida a questão: Bairro Industrial é Contagem mesmo sô! E não se fala mais nisso. 
Até hoje se ouve o comentário:
 - O povo do Bairro Industrial é fogo.
E bota fogo nisso!


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O nosso  informativo teve mais de trinta publicações, mas não tenho todos os números.  No sexto número abrimos a página assim: 

ODEIO POLÍTICA

Outubro tem eleição. Mesma história: tapinha nas costas, risos falsos, distribuição de quinquilharias, promessas, etc.  Mesma história: eleitor vendendo voto, enganando e deixando-se enganar, etc.  Ou desta vez vai ser diferente? Para quem odeia política e políticos, adoram reclamar e xingar, pode vender o voto e a cidade ou votar em qualquer um. Afinal os políticos são todos iguais. Certo? Errado, não são iguais.
A prefeita de Betim é igual ao prefeito de Contagem? É diferente não apenas porque trata-se de uma mulher. É diferente porque governa de modo diferente. Compare! Odiar não é uma boa política e bem ou mal, somos todos políticos. Somos quando lutamos por emprego e salário, casa, saúde, educação; somos políticos quando pechinchamos nas lojas, quando odiamos e anulamos o voto, ou quando votamos em qualquer um. Quem xinga faz a política do xingamento; quem cala faz a política da omissão e da covardia. Quem participa faz a política da participação e está preparado para votar corretamente. VOTA DIFERENTE! Aos outros restam aceitar. Ainda que xingando e odiando. 

TRUQUES & GALHOS
...........Geraldo Bernardes

     PARA FUGIR DO ASSÉDIO  ELEITORAL DOS CORONÉIS URBANOS

1) Pergunte-lhe sobre todas as atividades praticadas até hoje;
2) Depois procure investigar o que ele realmente tem feito na Câmara em benefício da população em geral. Você perceberá que foi enganado novamente;
3) Se algum cabo eleitoral vier pedir-lhe voto para algum Coronel, siga as instruções 1 e 2;
4) Pergunte ao cabo eleitoral se compensa trabalhar 3 meses na campanha e dar 48 meses de salários, para o Coronel legislar em causa própria;
5) Procure evitar estes vínculos com os Coronéis, pois eles podem se tornar vitalícios;
6) Não se esqueça: a eleição é, também, como um Plebiscito. Se você não está satisfeito(a) com o desempenho de algum político, nem por isso deixe de votar. Pelo contrário, dê seu voto de protesto, votando naquele que mais se identifica com você!

                                                 BOM VOTO!

POIS É...  Rubens Pinheiro da Cruz e Eliana

LEI DE GERSON:

É vantagem?

É muito comum ouvirmos atualmente as pessoas comentarem: "o mundo não tem mais jeito", "políticos são todos iguais: ladrões e corruptos" e vejam bem!: "aquele roubou mas fez", enfim, "é cada um por si e Deus por todos".
Vivemos um sistema perverso e egoísta que nos induz, propositalmente, a termos determinados comportamentos que tragam vantagens aos poderosos,  que idealizaram este sistema. Assim praticamos a Lei de Gerson, a de levar vantagem em tudo e, sem termos consciência disso, a estendermos em nossos lares e comunidade. Ensinamos nossos filhos a não levar desaforo para casa, a levar o melhor e maior pedaço. Já passou por nossas cabeças que eles serão os adultos de amanhã, inclusive políticos? E como? Sem a educação que valorize a solidariedade, honestidade e justiça?
Pois é... É urgente que nos conscientizemos de nossa imensa capacidade como seres humanos, agindo com mais responsabilidade e priorizemos como Lei primeira o respeito profundo ao próximo e o amor à justiça e igualdade. Só assim seremos mais felizes no futuro, num novo sistema, sem miséria, corrupções e vantagens pessoais. 

RIR AINDA É O MELHOR  CONTAGEM DAS ABÓBORAS REMÉDIO             
..................................     Marco Aurélio (Marquinhos)

A coisa é mais ou menos assim: anos atrás havia em nossa cidade um trevo ( espécie de cruzamento de duas ruas), onde os moradores se encontravam para negociar, contando-se assim as abóboras. Daí o nome Contagem das Abóboras. Pois é, como toda boa cidade, tinha à frente de sua direção duas ilustres tradicionais famílias. Uma a conhecida família do Senhor Fulano. A segunda, a tradicional família da Senhora Coisinha. O tempo passou e com ele vieram as melhoras e os políticos, também  cidadãos ilustres da boa família contagense, filhos, netos, sobrinhos, primos, etc. da Senhora Coisinha e Senhor Fulano. Vieram as eleições, o ilustre filho da Senhora Coisinha com o vice (claro), neto do Senhor Fulano. Mas este ano as tais famílias resolveram inovar, lançando dois candidatos: um descendente do Senhor Fulano e outro conhecidíssimo descendente da Senhora Coisinha. E pra não dizer que não falei das flores, o fato de fato é que pintou novidade no jardim: uma flor em forma de mulher desabrocha, para mudar as cores pálidas e repetidas nas eleições deste ano.

"O HOMEM É UM ANIMAL POLÍTICO"
Aristóteles 



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O Grupo Oficina de Sonhos, que publicava o Informativo Intercâmbio teve uma vida de compromisso com a cultura, que vai de 1998 a 2003.  Começou com quatro visionários: Estanislau, Geraldo Bernardes, Marquinhos e Rubens Pinheiro.  Em seguida, Eliana, Elson Pego, Laura e Lúcia,  entrariam para  o grupo.  Publicamos cerca de 30 edições, distribuídos, preferencialmente entre os estudantes do ensino médio. Foram mais de cem mil boletins. Depois do terceiro número, provavelmente, em algumas escolas, professores vinham ao nosso encontro, para nos pedir alguns exemplares, que serviam de apoio em suas aulas. Isso era muito gratificante e nos estimulava prosseguir. 
Felizmente eu mantive em meu arquivo quase todos os exemplares, o que facilitou contar aqui, apesar de algumas lacunas.  Além de seus fundadores, contribuíram com o grupo: Lair Estanislau, Eva Torres, Isis Aguiar, Neila Guimarães, José Francisco, Antoniele, Gabriel Silva, Antônio Marcos, Rodrigo. Apoiamos a criação de outro grupo, formado por adolescentes, o Grupo S/A (Sociedade Alternativa), com Fernando Stanys (meu filho), Tony Marcos, Fabiano, Charley, Léo e Paulinho, sob a coordenação de Eliana. Também colaborou com o grupo, ilustrando e diagramando, Roberto Caio, também meu filho.  Sem esquecer, que na reta final, recebemos o apoio cultural do SITRAEMG.  
O número 27 do Intercâmbio, que prenunciava o fim do grupo, trouxe na capa um texto assinado pelo Tony.  Na páginas 2 a Eliana escreveu sobre meditação. na página 3, eu e o Rodrigo, que viria a se formar em jornalismo, fizemos uma pesquisa sobre o comércio da Rua Tiradentes e descobrimos uma venda, que funcionava desde 1965.  Na quarta página o Elson Pego dissertou sobre algumas frases de efeito, como por exemplo,  "Deve-se usar agulha descartável para injeção letal?".  Reproduzo o texto que eu e Rodrigo escrevemos na página 3, na coluna POIS É...:

Mercearia Leandrense Ltda

Ao passar pela rua Tiradentes, 2.642 - Bairro Industrial - a Mercearia Leandrense desperta atenção. Em tempos de lojas de conveniências, shopping's e coisa e tal, a mercearia, que em pequenas cidades e lugarejos é chamada de venda, mantém viva a tradição de um comércio em extinção, principalmente nas metrópoles.
Assim como a venda do "Seu Lidirico", lá em Araçuaí, como canta o músico Edilberto, a Mercearia Leandrense  - cunho nome é uma homenagem à Leandro Ferreira, município do oeste de Minas, de onde vieram os fundadores - tem de tudo um pouco: fumo de rolo, queijo, pinga com mel, palha de milho, isqueiro, facão, agulhas e linhas, lampião, chicletes, querosene, alho, lamparina, bomba de matar mosquito. Tem feijão, arroz, milho, tudo bem pesado em uma antiga balança de prato. E atrás do balcão, educada e feliz, Delfina perguntando o que o freguês deseja.
A venda ou mercearia, "funciona neste endereço desde 1965, fundada pelo meu pai Elói da Costa Coelho, hoje com 93 anos", conta Delfina.
"Sou feliz, nasci para o comércio. Meu pai me iniciou na profissão aos sete anos. Temos aqui todo tipo de freguês, do mais simples ao mais elegante. Eu e meu marido tocamos o negócio", diz Delfina com um leve sorriso. 
Pois é, o Oficina de Sonhos deseja vida longo ao "Seu Elói", à Delfina e seu companheiro de luta, à toda família, e claro, à Mercearia Leandrense. 


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Encerro nesse capítulo o registro dos conteúdos  do informativo Intercâmbio.   Como disse anteriormente,  esse resgate foi possível, por encontrar em meus arquivos uma série de exemplares.  Ao redigir, descobri que parece ser de 1997 a formação do grupo. O  boletim de número 9 traz na capa outra crônica de minha autoria, que a exemplos de outras, integraria o meu primeiro livro de crônicas:

TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA

Nascemos nus.
Criança fica  pelada na frente dos adultos, sem medo. Recebe abraços, carícias. Um prazer ser tocado: pele na pele, cheirinho bom. Uma delícia!
De repente vem a bronca:
 * Menino(a) sem vergonha. Vá se vestir!
* Menina, feche esta perna, senão vai apanhar!
Nascemos nus, inocentes. Depois nos ensinam que a nudez é feia. É preciso esconder o corpo.
VERGONHA + MEDO=CULPA
Assim vamos crescendo e compreendendo a lógica dos adultos. REPRIMIDOS,  nos tornamos inseguros e... em alguns casos, PROMÍSCUOS, vertente perversa da REPRESSÃO. Cheios de sentimentos de CULPA E MEDO, estamos preparados para o convívio social: SUBJUGADOS, ANULADOS. 
Nascemos nus. À medida em que crescemos, cobrimos e nos cobrem com as mais estranhas vestes. Até o fim dos nossos dias, quando nos colocam um paletó de madeira. 

A página 2  ficou assim:

TRUQUES & GALHOS
Geraldo Bernardes

* PARA TER UM CORAÇÃO SAUDÁVEL
Substitua a manteiga por óleo de milho. Em vez de usar ovos inteiros nas omeletes ou receitas, utilize somente as claras. Prefira o iogurte no lugar do creme de leite. Prefira o leite desnatado ao leite integral. Quanto aos queijos, prefira os mais branquinhos, como o Minas e Ricota. 
*    SOPA DE GORDURA
Para tirar o excesso de gordura de sopas e ensopados, quando estiverem prontos, adicione algumas pedras de gelo, mexendo para a gordura aderir às pedras e retire antes que elas derretam. Ou ainda, embrulhe as pedras em um pedaço de gaze ou toalha de papel e passe levemente  sobre a superfície da sopa. 
*    FERMENTO RESISTENTE
Para que o fermento em pó dure mais, guarde-o na geladeira. 

                                                   PENSAMNETO
"O homem que se vende recebe sempre mais do que vale". Barão de Itararé

A página 3: 

POIS É...
 Eva Torres e Rubens Pinheiro

A FRATERNIDADE E OS ENCARCERADOS

A campanha da fraternidade de 1997 veio resgatar em nossa memória o drama em que vivem os encarcerados e suas famílias. A divisão social e racial tem sido um dos fatores principais das injustiças em nossa sociedade, porém, é comum ver pessoas, sem conhecimento profundo, defendendo a  pena de morte como solução para certos casos. 
Segundo dados do Ministério da Justiça de 1994, há no Brasil 130.000 presos, sendo: 96% homens, com média de 2,15 presos por vaga e a maioria pobre, 95%. O ser humano é sempre maior que sua culpa, mas, quem erra perante a Sociedade tem o direito de se reabilitar, sem discriminação. 
A campanha propõe que ajudemos o encarcerados, construindo com eles novas formas de vida, porque, juntamente com suas famílias, são entregues à própria sorte. Lutar pela vida e as oportunidades de direito, como cristãos e cidadãos de todos os segmentos é um desafio para todos nós, direito à Saúde, Educação e trabalho digno. Só assim prevalecerá a JUSTIÇA E A FRATERNIDADE entre nós. 
Na quarta página (contracapa) foi assim:

RIR AINDA É O MELHOR REMÉDIO

UM JEGUE CHAMADO CARDOSO
Marco Aurélio - Marquinhos

A história de hoje fala de uns jegues urbanos e suas respectivas famílias. Os tais jegues atendem pelo nome de Cardoso Industrial A ou B - 1117  e seu primo Industrial A ou B - 1112, como preferir o usuário. Os jegues prestam serviço "e que serviço" de transporte há muito tempo, habituados a andar sempre na hora, digo, de hora em hora e como tradição familiar, com carga máxima (carroça suja, disfarçada de coletivo), sendo que um dos jegues (1112-B) se pirulitou pras bandas do Barreiro. Tais jegues são de propriedade de uma outra família, cada vez mais rica com o trabalho dos velhos animais. 
Outra família já está com o direito garantido de que seus jegues não serão amolados por 10 anos, "sem concorrência", é mole? Direito garantido por padrinhos ocupantes da Prefeitura de Contagem. Bom, o jeito, sô, é pô os jegues pra corrê e pressioná os Vereadores a revogarem tal Lei de Prorrogação. Portanto, abra o olho, usuário de jegue coletivo, "senão, vamos andar de jegue a vida toda".

CONCORRÊNCIA JÁ! 


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A literatura possibilita uma instropecção muito mais profunda às pessoas do que qualquer outra ciência o pode fazer. Noam Chomsky


A literatura entrou em minha vida assim que aprendi a lê. Por não termos TV a leitura era uma forma de diversão. Nas ondas do rádio, ouvia Jerônimo, o Herói do Sertão.  O que realmente me atraía era as músicas dos Beatles e da jovem guarda. Acreditava que os Beatles eram uma espécie de cover de Renato e Seus Blues Caps.  Mas voltando a leitura, Gessi, minha irmã, que estudava no internato de freiras em Nova Era, nas férias trazia umas revistas de fotonovelas, Grande Hotel, Capricho, que eu devorava a ponto de me apaixonar por uma atriz.  Já o meu irmão, Altair, que fugiu dos perrengues da roça e foi pousar seus sonhos em Belo Horizonte ao final da década de cinquenta,  quando vinha passear em Boleirinha, onde tínhamos um pedaço de terra em que meu pai e minha mãe garantiam o nosso sustento com vacas e lavouras, trazia os livrinhos de bolso. Outro irmão,  o Jair, que também escapou da labuta do campo, indo estudar num seminário em Araçuaí, trazia a tiracolo, livros de filosofia e alguns romances. Me lembro de ter lido Guerra e Paz, de Tolstói,  um calhau de cerca de oitocentas páginas, por volta dos doze/treze anos.
Em 1964 aconteceu o golpe militar, que mudaria o rumo de nossas vidas. Me lembro vagamente  de meu pai com o ouvido colado no rádio, comentando algo a respeito.  Aos treze anos esse evento não despertava  o meu interesse.  Assim como o Lalá, Altair e Jair, eu também pensava em escapar dos perrengues da zona rural. Enquanto isso e quando podia, batia uma bola nos gramados do campo de futebol de Jampruca, ou no terreiro de Seu Carlos Carneiro.  A bola era um pé de meia cheia de trapos, ou uma bexiga de boi.  Foi mais ou menos nessa época que rabisquei meu primeiro poema, A Partida:

Partirei, sim, partirei
Em busca de meu ideal
Para onde vou não sei,
Sei que vou, é o substancial!

Saímos de Jampruca em 1966, para Engenheiro Caldas, por conta de encrenca política envolvendo meu pai, que fora candidato a Juiz de Paz, suplente, talvez, Me lembro de uma passagem do seu boletim de campanha em que se dirigia a supostos adversários: "... cuspindo e escarrando dentro da Igreja como se estivessem em pleno campo".  Isso e provavelmente outros, foram os motivos políticos que o obrigara a vender as terras de "porteira fechada" e sair imediatamente. Antes, porém, eu fui usado como álibi, para que a perseguição política se concretizasse. Aconteceu numa partida de futebol, do Atlético de Jampruca. O estádio era cercado por lascas de madeira e cobravam ingressos para ver o jogo. Encostei a charrete na beira da cerca. De pé sobre a charrete eu apreciava a partida, como outros faziam, inclusive, sentados sobre a cerca. De repente o Delegado Matias e o Cabo Adão, atendendo ao Bené, zagueiro e "dono" do time e do estádio, dirigiram até a mim e bateram no lombo do cavalo.  Pulei da charrete. O Cabo Adão me deu um chute no traseiro. Caí. Do chão vi o interior do cano do revólver do Delegado, apontado para mim. Mijei nas calças. Meu pai surgiu não sei de onde, para tirar satisfação.  Em alguns dias, tivemos de sair da cidade,  rumo a Engenheiro Caldas, de onde parti para o internato, em Colatina, no estado do Espírito Santo. Lá eu me tornaria líder estudantil.  Conto tudo no próximo episódio.


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"O capitalismo, por definição, é lucro acumulado, é privilégio do capital, é a exclusão da maioria”.  Pedro Casaldáliga


Em 1968 foi a minha vez de escapar dos perrengues em que nos encontrávamos.  Meu pai, que saíra de Jampruca às pressas, para Engenheiro Caldas, vivia uma situação financeira complicada.  A solução encontrada foi me enviar para o internato, no Ginásio Agrícola de Colatina-ES, uma escola federal.  Carlos, meu irmão caçula viria me fazer companhia no ano seguinte. 
1968 foi ano em que o ditador Costa Silva editou e publicou terrível AI-5.  Mas eu não sabia e não tinha a menor ideia do que isso significava. Queria jogar bola, ver televisão, estudar e ler os livros da biblioteca, obviamente sem as publicações contrárias ao regime.  Eu me embarquei na onda de "esse é um país que vai pra frente", "ame-o ou deixe-o", "ninguém segura esse país" e por aí vai, e nas horas dançantes em que dançava o bilisquete.  Era um filhote da ditadura.
No primeiro ano fui um aluno relativamente exemplar. Estudava, participava do projeto agrícola. Cada aluno ou pequeno grupo de alunos recebia uma área para plantio de hortaliças. Os mais corajosos pegavam áreas maiores e plantavam milho. No primeiro ano plantei quiabo. A colheita foi boa. Tínhamos uma cota. Atingida a cota, a escola nos pagava um valor pelo excedente. Com a grana recebida no primeiro ano, não foi necessário pedir dinheiro ao meu pai, para passar as férias em casa. Teve um ano que passei as férias na escola, para evitar despesas com passagens, sempre de trem, na segunda classe, de Governador Valadares a Itapina, onde desembarcava e pegava uma balsa para atravessar o Rio Doce, e seguir à pé, com a mala nas costas até a escola. Me lembro do saboroso frango assado, com farofa,  preparado  por Dona Bela, minha mãe. Aconteceu umas duas vezes de me desembarcar em Colatina e pegar o ônibus até a escola.  
Não sei até que ponto eu fora manipulado pelo Diretor, José Ribeiro, que me levou à condição de líder geral. O Odilon deixara a liderança e a escola,  após se formar. Em 1969 eu fazia discurso inflamado sobre o país, tipo porque me ufano do meu país.  Isso acontecia, geralmente em datas cívicas, no hasteamento da bandeira.  No dia 7 de setembro desfilávamos nas ruas do centro de Colatina, em que eu tocava um tambor, na fanfarra. Nossos trajes eram calça e camisa caqui, talvez para imitar uniforme militar. Mas não fui um líder exemplar, como o diretor queria. O esporte, a literatura e o teatro me atraíam..  Atuei em duas peças, dirigidas pelo professor Filogônio.  Fui elogiado diante de meus colegas de sala, pelo professor de português,  Wallace Pimentel, quando escrevi sobre a ida do homem a lua, em 1969.  Foram três anos bons, livres das dificuldades do lar. Mas teve um ano em que tivemos de passar uns dias em casa: faltou comida na escola. Hoje entendo que  faltou verbas do governo federal. 
Sim, fui líder geral. Não me lembro se pelo voto. De qualquer forma, tinha a simpatia dos colegas, que me aplaudiam pela versatilidade. Do futebol ao vólei; da literatura ao teatro; da fanfara aos discursos; do projeto agrícola às horas dançantes, não fazia feio. Jogava em todas as posições. Era ruim com as meninas. Reprimido e tímido nas questões de amor. Sim, lá também estudavam garotas internas. Tive um amor platônico por Marlete. Aninha, filha do diretor, não era pro meu bico. Parece que o Méier, carioca, dono de uma calça jeans de fazer inveja na galera, conquistou a garota.  A minha turma era formada por Benil, Roberto e Reginaldo. Mas interagia com outros, o Dário, por exemplo, no primeiro ano, gostava muito de mim. Sempre me pedia pra cantar:

"Vestiu uma camisa listrada
E saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada
Ele bebeu parati
Levava um canivete no cinto
E um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia
Sossega, leão, sossega leão..."  

Tinha o baiano, Valmir,  caladão. O Zé Carlos e Reginaldo  eram de Montanha-ES, onde fomos disputar uma partida de futebol em que perdemos por 5 x 2. Foi quando conheci o mar, em Conceição da Barra. E a bela lagoa de águas diáfanas Juparanã. Teve muita gozação dos capixabas ironizando os mineiros. Diziam, por exemplo, que o Astrogildo e o Vitorino, lá de Mutum, foram de manhã, com toalha e sabonete lavar o rosto nas águas salgadas.
E o líder geral decepcionou o diretor.  Os detalhes, conto no próximo capítulo. 


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O que me levou ao rompimento com a disciplina da escola agrícola está escondida em algum canto do cérebro. Talvez seja pela fidelidade ao meu grupo de colegas, que exercera alguma influência sobre mim; talvez pela minha essência rebelde; talvez também, pelo meu senso de justiça; talvez ainda por informações precárias, devido a ditadura, de que havia, por parte dos estudantes, nas capitais, resistência ao regime de exceção.
Aconteceu em duas ocasiões de eu ser punido com suspensão e mandado  passar uns dias em casa. Obviamente que achei injusta tais punições. Eu me lembro da ordem do diretor no quadro de aviso me expondo ao corpo docente e discente.  Ao final do aviso sobre os motivos da punição estava escrito, em caixa alta: cientifique-se e cumpra! Assim, sem chances de defesa.  A minha primeira suspensão se deu por eu ter respondido "grosseiramente" ao responsável pela limpeza do dormitório, quando pedi a ele permissão de entrar no dormitório (esquecera um material escolar), que ficava fechado a entrada de alunos durante a limpeza. Uma advertência, creio, seria suficiente. Uma suspensão poderia me levar a outra, do meu pai. Acho que não fui advertido pelo meu pai por causa  de minha irmã, freira, que saíra de casa lá pelos treze anos, para um internato de freiras. Alaíde,  ao se tornar freira recebeu o nome de Maria das Neves, irmã Maria das Neves. 
Na segunda suspensão, não me lembro o motivo, fiquei hospedado na casa de um colega, em Governador Valadares. Não me recordo se meus pais ficaram sabendo.  Me hospedei justamente na casa de um colega em que dera um murro em seu rosto e ele caíra no chão. Ao se levantar quase caiu de novo,  zonzo. Esta reação violenta me levou a refletir sobre o meu temperamento. Mas esse evento foi abafado, não chegando aos ouvidos do diretor. 
Uma terceira suspensão me levaria a expulsão do internato agrícola. Conto tudo na próxima narrativa. 


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Saborear os frutos do pomar, somente à mesa do refeitório. Proibido e severamente punido quem ousasse pegá-los nos pés. Era o que eu,  Benil e Reginaldo queríamos naquela tarde morna de um domingo em que professores e funcionários descansavam.  Queríamos frutas frescas, escolhidas a dedo.  O domingo nos convidava. Mas tinha um problema. Não poderíamos ser pegos em flagrante, principalmente eu, já com duas suspensões nas costas.  Uma terceira, seria expulso. Os frutos mais saborosos são os proibidos. E lá fomos nós, inocentemente felizes com a proeza. 
Estávamos sob a sombra de um pé de laranja, canivete na mão, quando ouvimos uns passos vindo em nossa direção.  Minha ficha caiu! O que fazer? Sebo nas canelas. Corri como nunca, coração saindo pela boca. Não sei como passei entre os fios de uma cerca de arame farpado. Cheguei ao dormitório e respirei fundo. Nos dispersamos na corrida, tipo cada um por si. Minha roupa estava coberta por carrapichos. O meu quarto e de mais seis colegas estava vazio. Enquanto me livrava dos carrapichos, o Benil chegou. Disse-lhe ser mais seguro a gente se separar por uns dias. Perguntei pelo Reginaldo, ele não sabia. 
Depois de umas longas duas horas o Reginaldo apareceu, com um sorriso enigmático. O professor Bergamaschi me flagrou e me pressionou pra saber quem estava comigo, informou.  E deixou em suspense se nos dedurara. Em seguida nos acalmou, mas ainda manteve um suspense: - o professor me disse que eu não serei suspenso se contar quem estava comigo. Estou pensando no que fazer.  Minha expulsão dependia do Reginaldo. Durante dois ou três dias permaneci apreensivo. 
- E aí, Regis, já decidiu o que dizer? Perguntei-lhe na segunda-feira. 
 - Não sei, Jampruca! Eu recebera esse apelido, quando disse que minhas raízes eram de Jampruca.  Apelido que eu detestava mas não manifestava, para  não "colar". A mágoa por ter saído de lá, depois de ter sido chutado no traseiro pelo Cabo Adão, sob a mira do revólver do delegado Matias, não passara. Acho que vou ter de contar, o professor ameaça levar ao conselho, emendou.
Dias depois o Reginaldo arrumou a mala e foi cumprir a suspensão, lá em Montanha, onde morava. 


51


- Ei, acorda!
Virei para o outro lado, mas alguém insistiu: - Vamos, acorde, temos novidade no quarto! Ergui da cama, sonolento. Esfreguei os olhos com os punhos cerrados. 
- O que foi?
Não me recordo quem e quantos, três?, quatro talvez,  encontravam-se ao redor de minha cama naquela noite em que a lua projetava sua luz  prateada pelas janelas abertas. Se não me falha a memória, o Brasileiro fazia parte dos que me sacudiram, para me informar que o Valmir chegara do pomar das terras de um sitiante vizinho do Ginásio Agrícola, com uma mala cheia de laranjas e a depositara sobre o seu armário. Devia ser por volta da meia noite. Valmir dormia um sono benfazejo.  Pudera, deveria estar cansado pela caminhada de cerca de quatro quilómetros, com a mala no ombro. 
- Que tal a gente pegar a mala e nos fartarmos? Sugeriu outro colega, cujo nome não me recordo. Mas estou quase certo ser um craque de bola, lá de Montanha, cidade fértil de craques. Como não me lembrar de Vovô, que depois de me dar uma caneta, chutou da entrada da área, para marcar o quarto gol contra o nosso time? 
- É agora! Consenti sem titubear.
Calmo e silenciosamente peguei a mala e a carreguei até terreiro, colado ao dormitório. Abri-a calmamente e a luz da lua iluminou seu interior. Lá estavam elas, lindas, amarelinhas e pedindo para serem chupadas. E assim fizemos numa justa partilha.  Talvez ali a gente tenha entendido o significado da distribuição justa. Quanto ao Valmir, cuidamos de deixar as mamuchas e as cascas na mala, para que ele entendesse o significado do egoísmo. Recoloquei a mala de volta sobre o seu armário. Valmir dormia um sono profundo.  Seu ronco ecoava pelo dormitório. 
No dia seguinte ficamos observando os movimentos dele. Assim que abriu a mala... Bem, aí não me lembro o que aconteceu. Não sei se caímos na gargalhada ou se o mistério foi mantido. Mas que o colega ficou com cara de tacho, não tenho dúvidas. 


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1980 é o início do fim da ditadura militar. Era impossível conter o grito de liberdade, que brotava em todos os lugares.  As greves de 1979 sacudiram o país e abalaram os alicerces do sistema opressor.
Nos anos oitenta várias manifestações artísticas e culturais ganhavam as ruas e as mentes das pessoas. Na música, destaque para o rock nacional.  Surgiam várias bandas. MPB, cinema, teatro, entre outros movimentos, indicavam que a ditadura estava acuada.
A literatura também soltou a voz, ou melhor, os textos. A poesia circulava nas mesas dos bares, ruas e praças. A criatividade de escritores e escritoras  provocava agito.  A necessidade de comunicar era intensa. Conheci alguns artistas de rua e de bares. O edifício comercial e residencial do Maleta, no centro de Belo Horizonte era o ponto de encontro de artistas famosos e outros nem tanto.  E de alguns políticos, como José Aparecido.  Milton Nascimento era outro que vez em quando marcava presença. Evaldo Martins ia de mesa em mesa oferecendo seus cartazes, com seus poemas ilustrados. Dubiel, que já era meu amigo e que morreria anos depois num acidente de trânsito numa rodovia do Espírito Santo, também oferecia seu livro de poemas aos clientes nos diversos bares e restaurantes do Maleta e de toda BH e região metropolitana.
 Frequentador do Maleta desde 1975, onde conheci o Seu Olímpio, o garçom comunista, que viria  receber o título de cidadão honorário de Belo Horizonte alguns anos depois e  que me servia doses generosas de uísque, certa noite me mostrou o livro de Pablo Neruda, Confesso que Vivi, autografado.
A poesia veio ao encontro de novos autores e autoras na década de oitenta.  Um boom como se dizia. As formas de imprimir eram muitas. Na maioria em mimeógrafos, que acabou sendo rotulada de geração mimeógrafo.  Poetas marginais.  Havia impressão em papel higiênico, calendários,  artesanatos de madeiras,  por meio de  pirógrafos.  A criatividade entalada se soltava de várias formas. Outro autor que deixou sua marca nos anos oitenta em Belo Horizonte foi Rogério Salgado. 
O movimento nascido nos anos oitenta me levou a reunir alguns poemas escritos à partir, principalmente, da segunda metade da década de setenta, acrescidos por alguns já no início dos oitenta e imprimir o livro Nas Águas do Arrudas. Uma edição precária, com erros de digitação, porém com um pouco mais de qualidade que os mimeógrafos.  Berzé fez a ilustração da capa, além de uma charge irônica em que eu carrego às costas  um lápis, simbolizando as dificuldades de um escritor publicar seu livro fora da indústria cultural.
O lançamento, com uma tiragem de mil exemplares aconteceu na Pizzaria Jones, à Rua Tiradentes, no Bairro Industrial, em 1984 e varou a madrugada. Quem animou o lançamento, ao som do violão e voz, foram José Prado e José Maria, o Guinho. Claret, o dono da pizzaria me disse que foi a noite mais movimentada da casa. Depositou sobre a mesa em que autografava, uma garrafa de uísque, como brinde, além dos petiscos. 
A primeira e única edição de Nas Águas do Arrudas, praticamente esgotou nessa noite inesquecível. 

Nas águas do arrudas
nas águas do ribeirão arrudas
muda
a ideologia
muda
o canto torto
o rato morto
o sonho do poeta
sem rima
sem métrica
a paz eterna
o esperma
o amor
o odor
o grito
sufocado
engasgado
do esmagado
explorado
nas águas do ribeirão arrudas

d
e
s
c
e
m
os bolos
cais
do executivo
executivo
do patrão
da madame
(a madame caga no arrudas)
o corpo
morto
de um morador das adjacências
que sem paciência
c
ai
u
nu
n
o
arru
d
a
s
sem esperar
a época das chuvas
pois no arrudas
pode morrer
em tempos de
encheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnnttteeeeesssssssssss
oh poeta incompetente
onde está o ritmo
a rima
a cadência
a tônica tônica
atônica
atônito
atômico
autônimo
autômato
antônimo
autonomia
onde está?
?
já não se fazem poetas como antigamente...
o estilo
ah o estilo
(há o estilo)
afinal que paí...
digo, estilo é este?
é um estilo
à imagem e semelhança
dos dias em que viVemos
julgados
condenadoSOS
culpados
(até que nunca provem que são inocentes)
exilado
cagado
mijado
ado ado ado do do
dor dor dor dor dor dor dor
(não me condenem: eis aí a rima (apreciadores) estética)
ia me esquecendo
nas águas do arrudas
d
e
s
c
e
m
os bolos fecais
do operário
do mendigo
do homem
do menino
que canta com outros meninos de mãos dadas em frente
a televisão
“liberdade é uma calça azul e desbotada”
(este é um poema que vai pra frente
nas
águas
do arrudas)
livremente
calmamente
(rima pobre)
transportando os anseios
os não-anseios
de um povo
(“povo é abstração”)
nas águas do arrudas
(“lugar de estudante é na escola”)
(“pra pensar pensamos nós”)
(“o Brasil é feito por nós”)
(“é hora de confiar”)
(“é hora de mudar”)
nas águas do arrudas
nas águas do arrudas
por
onde
descem
os bolos
fecais
(“ame-o ou deixe-o”)
da meretrizes
da grã-fina
dos zeferinos
dos infelizes
dos psicólogos
dos filósofos
dos sociólogos
dos ideólogos
ogos
ogos
ogos
do masoquistas
dos fascistas
do padre
do camelô
do gigolô
do dotô
do inquisidor
(“revogo as disposições em contrário”)
nas águas do arrudas
onde
d
e
s
c
e
os bo
los
fe
cais
(dos colunáveis,
dos presidenciáveis)
do marginal
do desempregado
(“o futuro a Deus pertence”)
adeus futuro
nas águas do Ribeirão Arrudas
onde há igualdade social
(ou a deles é melhor?)


53




Em 1987 editei e publiquei Três Estações, com o prefácio de Francisco Marques, o Chico dos Bonecos. 

O meu segundo livro teve uma edição mais caprichada que o anterior, com capa colorida, ilustrada por Eliana Belo.  O miolo acolheu ilustrações de meu filho Roberto Caio.  O lançamento aconteceu no Sindicato dos Jornalistas. Houve também um segundo lançamento no Palácio das Artes.  Ambos em Belo Horizonte. Lúcio Costa, dono da empresa Suggar, onde trabalhei por quase dez anos, adquiriu cerca de cem exemplares e distribui aos funcionários, o que praticamente me garantiu o pagamento da edição de mil exemplares. Eliana ilustrou as três estações:










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Ilustração: Roberto Caio


Não me lembro se tive alguma ilusão de ganhar dinheiro com a venda de meus livros.  Cobrindo os custos, já me dava por satisfeito, ou seja, do ponto de vista  financeiro, trocar seis por meia dúzia.  Se pudesse, as tiragens seriam maiores e as distribuiria gratuitamente.  Como disse Lewis Hyde em seu livro A Dádiva, uma obra de arte não se enquadra como mercadoria, uma vez que é fruto do dom, que o artista recebe de graça.
Dito isto, lancei em 1991, teimosamente, O Comedor de Livros em mais uma edição do autor.  Foram mil exemplares, sendo que o empresário Lúcio Costa, adquiriu  algumas dezenas.  De novo contei com a solidariedade caseira de meus filhos Roberto e Fernando. O primeiro desenhou a capa e o segundo fez a editoração eletrônica. O lançamento aconteceu no Palácio das Artes.  Teve também um lançamento no Circo Voador, instalado na praça da estação, em Belo Horizonte.  Entre os lançamentos, creio ter sido o mais elaborado até então. 

O Comedor de Livros

Lia livros e mais livros
Com olhos e boca
A cada livro que lia
Em seguida o comia
Comia com olhos – que a terra há de comer
Com boca e dentes para melhor entender
Comia-os como sanduíches
Com mostarda e catchup
Tragédias dramas
Qualquer trama
Para compreendê-los
Bom mesmo era comê-los
Sentiu forte emoção
Em  Cem Anos de Solidão
Com Ulisses ficou aturdido
Em Busca do Tempo Perdido
Sentiu um misto de tristeza e alegria
O que não aconteceu em A Escolha de Sofia
Comendo Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
Sentiu-se farto satisfeito
Com Orlando – metade homem metade mulher
Despediu-se com um aceno
Para comer A consciência de Zeno
E comeu com regozijo Enquanto Agonizo
Ao comer o Deserto dos Tártaros chorou
Comeu Poema Sujo
De Pessoa comeu os heterônimos
Comeu autores anônimos
Com As Flores do Mal
Sentiu um apelo um sinal
E comeu Lima Barreto Bandeira Sartre e Machado
Castro Alves Maiacoviski e Callado
E comeu Rimbaud Sthendal Camus e Afonso Romano
Comeu por engano discos do Chico e do Caetano
E comeu Saramago Cecília Amado Dikhinson e Adélia Prado
Becket Dos Passos Chaucer Kafka Verlaine e Arrabal
E comeu toda biblioteca municipal
Devorou as livrarias da cidade
E após uma certa idade
Sentindo-se mal
Foi levado às pressas ao hospital
Morreu na fila por falta de atendimento.

Uma das dificuldades do autor marginal é fazer o livro chegar aos leitores. É preciso fazer poeira, como me diria anos depois a amiga e parceira de letras Edna Lopes.  Distribuir em livrarias, sem chances. Mas eu até tentei a mídia algumas vezes.  A TV Minas, que é pública,  divulgou o lançamento. Por ter sido lançado no Palácio das Artes, houve divulgação, tanto deste, quanto de Três Estações, no Jornal Estado de Minas, no qual o poeta Márcio Almeida tinha uma coluna de crítica literária. Enviei ao colunista um exemplar de O Comedor de Livros e de Três Estações. A crítica dele foi dura, me sugerindo, inclusive a tentar a prosa. Acatei, em parte, a sugestão, lançando em 2006, Crônicas do Cotidiano Popular, tema do próximo capítulo. 

Raio em Céu Azul*

na cabeça do homem na cabeça da vaca
na cabeça de quem quer que seja
seja Deus seja santo
seja eu sejam tantos...
quantas flores
quantas dores
quanta guerra
quanta era de aquário...
quanto luto quanta luta
“quantas barricadas por seis sardinhas infelizes” (Jacques Prévert).
tanto alto quanto salto quanto assalto no escuro
eu tanto procuro
este “obscuro objeto do desejo” (L. Bunel).
quanta cópula quanta cúpula
quanta coisa esdrúxula:
mariposa cheia de tetas
ideias repletas de tretas
“tiranos fazendo planos para dez mil anos” (Bertolt Brecht).
e que me vale
e que me serve este sexo
este plexo complexo de édipo
eu perplexo enquanto
“elétrons deificam uma gilete em macroescala” (T. S. Eliot).
minha mãe
santa criatura
hermética partitura
nesse meu inconsciente do inconsciente coletivo
vendo “minha cabeça servida numa travessa” (T.S. Eliot).
que me vale que me valha
“duas mãos e o sentimento do mundo” (Carlos Drummond de Andrade).
“o dono da tabacaria” (Fernando Pessoa).
procissão romaria:
“É de sonho e de pó o destino de um só” (Renato Teixeira).
com uma faca na garganta
uma molécula uma tarântula:
“quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos me ouviria?” (Rilke).
mesmo que ouvisse de que adiantaria?
“tem piedade, Satã, desta longa miséria!” (Charles Baudelaire).
nem anjos nem demônios
arcanjos querubins
protegerão meus neurônios
“allons! Seja você quem for, venha comigo viajar” (Walt Whitiman)
“sem medo de ser feliz” (Hilton Accioly)
neste tom neste som
que fornalha em meus ouvidos
este caco este saco este asco fiasco sustenido
este corte esta morte
este amor inconcebível
“troço de louco, corações trocando rosas e socos” (Paulo Leminsk)
ainda assim a gente grita a gente corre
“atrás da mesma alegria fatal” (Konstantino Kaváfis).

* Poema premiado e publicado em uma antologia poética do Miramar Shopping-Santos-SP

Lançamento de Palavras de Amor no Berimbau



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Quinze anos após o lançamento de O Comedor de Livros, lancei, em 2006 o meu primeiro livro de crônicas, sendo que algumas delas foram extraídas do  boletim Intercâmbio, do Grupo Oficina de Sonhos.
Crônicas do Cotidiano Popular, com cento e dez páginas,  edição de bolso, recebeu uma atenção especial. Não poderia cometer os mesmos erros de publicações anteriores.  A professora Cristina Almeida fez uma revisão primorosa. O jornalista e militante das causas socioambientais, Elian Guimarães de Oliveira escreveu o prefácio. Convidei o grafiteiro Maizena para ilustrar a capa e algumas crônicas.  Maizena  recebeu cinquenta exemplares, como forma de pagamento.  
Não fossem os mecenas da cultura popular, não seria possível  publicar  meus livros, sendo que alguns  adquiriram pacotes de dez e até cinquenta exemplares.  Na minha trajetória de escritor e poeta alternativo, tive a solidariedade e o talento de  Berzé (ilustrações),  Tânia Orsi (revisão), Roberto e Fernando, meus filhos (ilustrações e editoração eletrônica), Eliana Belo (ilustração). Regina Rodrigues e Nayara Bernardes (recepção e vendas), José Prado e Guinho (apresentação musical), Ronaldo Freitas e Aninha Viola (apresentação musical),  Clevane Lopes (prefácio), Marcio Almeida (poeta e crítico literário), Carlos Lúcio Gontijo (prefácio),  os professores Vicente de Paulo e Geraldo Batista, da escola Municipal Jonas Barcelos, de BH (prefácio e divulgação),  Claudia Buffet e Decorações (coquetel), Tax Man Blues e Grupo Negume (apresentação musical), Edson Drummond (livreiro), Claret (Pizzaria Jones), Usina Belas Artes, Palácio das Artes, Prefeitura Municipal de Contagem, As rádios Inconfidência e Itatiaia, TV Minas e TV Contagem, Geraldo Bernardes, que faleceu precocemente, a minha eterna gratidão, solidário em todos momentos bons e difíceis de minha vida.  
Crônicas do Cotidiano Popular,  com mil e quinhentos exemplares, foi a minha maior tiragem,  esgotada rapidamente. O lançamento aconteceu na Casa Azul, do Centro Cultural de Contagem. Elson Pego e Rubens Pinheiro fizeram o espetáculo musical. A Claudia Dias preparou um belo coquetel 
Em 2007 me conectei à internet, onde encontrei novos leitores e leitoras. 


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Sem dúvida,  foi uma decisão corajosa lançar dois livros de uma tacada!
Aconteceu em 2009 no Parque Ecológico do Eldorado, em Contagem, ao lançar Filhos da Terra (crônicas), com prefácio de Ignácio Hernandez e Todos os Dias são Úteis (poesias),  com prefácio de Clevane Lopes.  Filhos da Terra teve a capa criada por  Berzé e ilustrações internas de Eliana Belo. Mais uma vez as editorações eletrônicas ficaram por conta de meu filho Fernando, que também criou a capa de Todos os Dias são Úteis. Me lembro bem dos deliciosos caldos servidos aos convidados pelas mãos solidárias de minha nora,  Angélica Rodrigues e sua irmã Ailza,  ao som do violão e voz de Raimundo Pradino.  Geraldo Bernardes cuidava da venda dos livros. 
Enquanto escrevia as crônicas de Filhos da Terra,  que sugaram as  minhas energias, eu descansava escrevendo os poemas de Todos os Dias são Úteis.  E ao dizer sobre uma decisão corajosa, ou talvez, desafiadora lançando dois livros ao mesmo tempo é por conta de uma conjuntura desfavorável ao escritor alternativo e marginal, quando o perfil de leitoras e leitores migrava para a internet. O livro impresso sobreviverá?   Mas não foi por causa disso que Filhos da Terra consumiram minhas energias.  Foi por causa do meu envolvimento com os personagens da trama.  Em especial com Zenaide, a mais linda garota do bairro, destruída pelas drogas.  Logo no início do livro, um poeta e personagem declama na praça do bairro esses versos: 

prazer

quero me perder
nas ondulações sensuais do teu corpo
cegar-me com o brilho dos teus olhos
quero seguir
o teu hábito
achar-me em teus passos
quero sentir
o teu hálito
embriagar-me em teus braços
como as ondas do mar beijando a areia
quero beijar teu corpo
em cada curva estacionar meu sonho
quero ser atrevido
violar os teus sentidos
afogar-me em tuas águas
mar de delícias
envolver-me em carícias
roçar meu corpo em tua pele
sentir o calor
brotar em nossos poros
quero me atazanar me estrepar
em teus espinhos
conquistar palmo por palmo errante
tua selva misteriosa
eleger-me teu bandeirante
quero teu corpo molhado suado
a formar vapor subindo
virando nuvens no céu
chuva caindo sem assombro
sobre a terra fértil
quero-te ave de múltiplas cores
pousada sobre meu ombro.

No lançamento no Parque Ecológico do Eldorado


O início promissor da garota indicava um fim trágico.  Mas estas lembranças não são para revelar o livro, e sim, como aconteceram  os lançamento no Parque e na  Usina Cine Belas Artes,  naquele novembro de 2009.
O erro que eu cometera em publicações anteriores aconteceu com Filhos da Terra, talvez pela ânsia de publicar: falha na revisão ortográfica, que viria descobrir após leitura posterior. Assim que considerei o livro pronto , não quis passar pelo sofrimento da releitura. Eu me sentia extenuado. Mas é um filho de papel muito especial. Se houver a chance de uma segunda edição, estas falhas serão corrigidas, que diga-se de passagem, não interferem no conteúdo. Não me lembro exatamente o número de exemplares, mas foi por volta de quatrocentos, duzentos de cada título. 
Pouco tempo depois do lançamento no Parque Ecológico, fiz um segundo na Usina Cine  Belas Artes de Belo Horizonte, com a participação musical das bandas Taxmann e Negume. Trata-se de um espaço mantido pela Usiminas. O local, diria, cult, tem um pequeno palco para apresentações musicais, café, livraria e lógico, cinema. 
Creio que o sonho de todo escritor e escritora é ver seus livros, em primeiro lugar sendo lidos e/ou expostos em bibliotecas e livrarias.  Na medida do possível, doei exemplares para algumas bibliotecas.  De novo é preciso "fazer poeira", ou seja, levar os livros até os leitores.  Conheci escritores e escritoras criativos na divulgação de seus filhos de papel.  Teve um, para chamar a atenção da mídia, enviou às redações mensagem de que pularia de um edifício às tantas horas. TV, rádios, jornais e revistas impressas enviaram repórteres ao local.  Outros e outras fazem performances em locais públicos.  Fiz apenas um ensaio de um  projeto cultura sobre rodas, em Tiradentes, durante um festival de cinema.  A ideia era ter dois ou mais títulos e viajar num carro aos municípios de Minas Gerais,  para apresentar e vender.  O cultural sobre rodas não andou.  Depois descobri a Livraria Popular, do Edson Drumond, no bairro JK, em Contagem, que acolhia e vendia os livros de autores independentes.  Vinicius Cardoso, jornalista, foi quem me apresentou ao Edson.  Meu lançamento duplo, além de Crônicas do Cotidiano Popular foram expostos nas vitrines da Livraria Leitura do Big Shopping e do Itaú Power, também em Contagem, pela intermediação de meu amigo João Basílio. 

 

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Manter o estoque de livros em casa era um transtorno. Onde colocar quinhentos e algumas vezes mil livros?  Aprendera com a indústria e o comércio a "desovar" estoque. Mas como, se encontrar leitores e leitoras não é a mesma coisa que encontrar consumidores? Não, livro, com disse Lewis Hyde não é commodities .  Não se resolve com "promoções" e "liquidações".  Não funciona para uma obra de arte.  Nesse caso, desovar significa doar.  Assim que os lançamentos e os mecenas da cultura popular adquiriram seus exemplares, a alternativa é a doação. Ou então correr atrás de mais leitores.  Mas como, se o tempo era escasso? Mesmo autoras e autores consagrados não sobrevivem unicamente por meio de seus livros.  Eu sempre trabalhei na iniciativa privada, onde garantia o meu sustento e da família.  A escrita é um dom. E também um lazer, mesmo para quem quer profissionalizar-se. 
Tempos atrás,  as gráficas imprimiam por fotolitos. Nesse caso, seria inviável lançar, por exemplo, cem exemplares.  O preço unitário iria pras alturas.  Mil exemplares era o mínimo recomendado, por isso era necessário espaço maior em casa. Com a impressão digital, a coisa mudou.  E um monte de "editoras" surgiram.  Adeus fotolitos.  
Assim, em 2011 lancei pelo selo Editora 24 horas meu livro de poesias, Palavras de Amor e no ano seguinte, 2012, Crônicas do Amor Virtual e Outros Encontros pela Editora Protexto.  E vi o meus leitores esvaírem.  Apenas cerca de cem exemplares de Palavras de Amor foram vendidos.  Crônicas do Amor Virtual e Outros Encontros, cerca de cento e cinquenta. 
Isso posto, conto como foram os lançamentos. É possível encontrá-los nas editoras e em algumas plataformas, como  Amazon e Estante Virtual. 
Palavras de Amor teve um único lançamento, no bar do Milson, o Berimbau, em Contagem, que tinha e talvez ainda tenha, um pequeno palco, onde a Banda Negume, cujo vocalista era o meu amigo Sebastião Maria, se apresentou.  Foi uma noite agradável. Apesar de algumas ausências, lá estiveram meus mecenas. Expus,  a convite do parceiro de letras, Wagner M Martins, Palavras de Amor, juntamente com o poeta Fábio Brandão e a poetisa Marli Caldeira, durante um encontro cultural no Teatro Municipal de Sabará. Suzana Barbi foi quem nos deu carona. Foi uma noite de muitas gargalhadas.  
 E de novo, em Contagem, no Espaço do Saber, lancei em 2012,  o Crônicas do Amor Virtual e Outros Encontros, que contou a apresentação musical da banda Taxman.
 

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Após a experiência de lançar dois livros pelas editoras em que se paga para publicar, retornei ao meu modus operandi,  ou seja, publicar por conta própria.  É um processo que exige um custo menor, pelo menos no meu caso, que posso contar com o talento de meu filho na criação e editoração eletrônica. O bom neste processo é poder acompanhar o parto, desde a gravidez.
Foi assim em 2015 ao lançar meus livros A Moça do Violoncelo (contos) e Estrelas (poesias) num só volume.  Dois filhos de papel, gêmeos, que me trouxe alegria.  Minha sugestão de capa foi aceita e aprimorada pelo Fernando. Disse  que o conto que dá título ao livro nasceu de um vídeo de um show de David Gilmour em que uma moça ruiva, linda, tocava um violoncelo, encaixado nas pernas. Uma cena sensual. Debatemos sobre a capa de Estrelas e concluímos por uma tela de Van Gogh.  Sou um contemplador de estrelas. 
Para o lançamento convidei, além do Fernando, a Angélica, a Regina e a Nayara Bernardes, para formar comigo uma comissão organizadora do evento. O convite a Nayara tinha um motivo especial:  é filha do meu amigo Geraldo Bernardes, que sempre me apoiara em lançamentos anteriores e outros tantos momentos de agruras.  Meu bom amigo falecera.  Nayara aceitou, com os olhos marejados, pela lembrança do pai. 
A Moça do Violoncelo/Estrelas  foi bem elaborado. Tive o cuidado na revisão, que teve a generosa e solidária contribuição da professora e poetisa gaúcha, Tânia Orsi Vargas, que também escreveu um posfácio. Os professores Vicente de Paulo e Geraldo Batista de Avila, da Escola Municipal Jonas Barcelos, de Belo Horizonte, onde participei de evento poético,  escreveram o prefácio de Estrelas, com a intermediação da professora Paula Patrícia, minha sobrinha. 
O lançamento aconteceu no Parque Ecológico do Eldorado, em Contagem. Para que o lançamento acontecesse neste espaço público,  tive de "brigar".  A Secretaria de Meio Ambiente se recusava autorizar.  Bati pé e a secretaria cedeu e o evento aconteceu numa manhã de sábado, com a participação musical de Aninha Viola, poetisa e cantora de rua,  moradora de Mariana, numa parceria musical com Ronaldo Freitas.  Regina Rodrigues decorou o ambiente com frases retiradas de Estrelas. 
O escritor Jorge Luiz Alves e sua companheira Fininha vieram do Rio de Janeiro, além da poetisa  bauruense Olynda Bassan, prestigiarem o lançamento.

Com Nayara no lançamento de A Moça do Violoncelo

   

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No começo a narrativa parecia sem norte.  O sul, capengava. Fragmentos de uma percepção particular do cotidiano, sob a influência das leituras de Franz Kafka.  Para tumultuar ainda mais a mente do recém chegado à capital mineira, vindo do interior,  a ditadura impedia a real compreensão dos fatos, por conta de perseguições e  censura.  Havia uma cortina de fumaça. Havia o movimento estudantil e operário, sob vigilância e repressão. 
Em 1977, provavelmente, comecei a escrever A Construção da Estrada de Ferro, que não sabia exatamente onde chegaria. Não tinha um plano da obra.  O plano era a vida, como a percebia. Antes escrevera um pequeno conto, Ninguém Atravessa a Ponte, que seria aproveitado, em parte, na Construção. Estava, também, sob o impacto das leituras de Sartre e Camus. Garcia Marques e os  Cem Anos de Solidão, além José J. Veiga, Murilo Rubião, que trouxeram mais luzes. Marx misturou tudo e me fez  "compreender"  o tema da alienação. Burocracia e alienação, é disso que fala o livro. 
Em 2014, depois de mais de trinta anos, entre a gaveta e a escrivaninha,  dei a narrativa por "encerrada". Uma novela? Um romance? Não me apego a gênero e regras  literárias.  Escrevi como se delirasse. É um livro, que talvez nunca saia da gaveta, construído e reconstruído ao longo de mais de trinta anos e que contém  umas trezentas páginas.  Em 2019 fiz a "última" revisão. 
O final do livro ficou assim:

Fabrício Valdéz esfregou os olhos com os punhos cerrados, naquela manhã em que o cheiro de rosas brancas invadira seu valhacouto, serpenteou sob a manta de estampas coloridas, presente dos ciganos, que a cada quatro anos, no verão torrencial, armavam barracas de lonas puídas em suas terras, para vender tachos de cobre aos moradores do vilarejo, cavalos e burros decrépitos como se fossem jovens, graças a artimanha de colori-los com tintas extraídas de plantas. O cheiro das rosas penetrou em suas narinas, expulsando de vez o sono de uma noite premonitória.
Sentou-se com dificuldades, tateou o chão com os pés à procura das pantufas de cetim rotas, única lembrança de Catarina Flor, que o abandonara naquela noite de tempestade desmesurada, com as andorinhas em algaravias, e que decidira, para colocar-se a salvo dos tormentos dos remorsos, revelar com quantas mulheres havia se deitado no transcorrer de vida a dois. Pela primeira vez ao longo dos trinta e três anos de solidão, praguejou que merda ao refletir sobre o sentido das palavras de Flor, seu desgraçado, réprobo, porque não carregou esta ignomínia para o túmulo!
Às vésperas de completar noventa e oito anos, trinta e três de solidão em companhia de bêbados, drogados e prostitutas, não estava certo de alcançar a cocaína que o reanimava desde que Catarina Flor desaparecera naquela noite, sob a chuva de granizo, que provocara uma desordem descomunal no vilarejo, matando porcos, cavalos, galinhas, cães e outros seres indefesos, destelhando casas, deixando por vários dias um odor putrefato.
 O cheiro de rosas brancas intensificou-se ao tentar tocar a aldrava e desta vez lamentou que merda, como pude magoar minha prófuga andorinha! Neste instante uma rajada de vento descerrou as janelas e pétalas de rosas, como aves migratórias invadiram o quarto, pousando suavemente sobre sua cama, no chão, nos móveis. Milhões de pétalas foram cobrindo o corpo caquético de Fabrício Valdéz e entre elas identificou Catarina Flor, vestida de branco, dançando com leveza, tendo nos lábios e nos gestos a pureza dos justos. As pétalas foram se amontoando placidamente no valhacouto até alcançar o teto. As que não conseguiram espaço interno foram amontoar-se ao redor da casa sob os olhares diáfanos de lírios, de rosas.


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“O que queres que os homens façam por ti, faça igualmente por eles.” Jesus Cristo

Meu pai e minha mãe

Outubro de 1951, dia 20. Não há registro das horas.
Consta na certidão o nascimento de uma criança, vinda ao mundo pelas mãos de uma parteira, nos grotões  de Minas Gerais, no distrito de São João do Oriente. Testemunhas relataram gritos de choro, assim que o cordão umbilical fora rompido.  Aos quatro ou cinco anos  a família da criança mudou-se para outro roçado, no córrego Boleirinha, zona rural de Jampruca, localizado  no Vale do Rio Doce, na divisa com o Vale  Mucuri.  A mudança ocorrera, por conta de desavenças políticas.  Em Jampruca crescera  entre o roçado e a rua.  E o amor ao pé de ingá, onde sempre parava, ora de bicicleta, ora de charrete, para saborear os frutos e descansar sob suas sombras;  entre o trabalho no campo e o lazer com os filhos de companheiros camponeses,  ou no pequeno distrito, jogando sinuca e futebol;  indo ao cinema do Heleno. Os estudos primários eram, também, uma válvula de escape. De criança a adolescência, tudo passou muito rápido. Aos dezesseis, novamente por conta de desavença política, a família mudou-se para Engenheiro Caldas, mas lá permanecera por curto período: entre 1967 a 1970, quando, novamente mudam de cidade, desta vez, não por desavença política, pois o pai abandonara a contenda, mas por outros motivos, que não vem ao caso,  e para não alongar a narrativa. Para onde ia, levava consigo o segredo do evento ocorrido à sombra do pé de ingá. Mudaram-se, então, para Itabirinha, em 1970, ano do tri.  Um ano antes, em 1969, matricula-se no Ginásio Agrícola de Colatina-ES, em regime de internato. Tempos do auge da ditadura militar; do milagre econômico; do "ame-o ou deixei-o"; de "este é um país que vai pra frente".   Sem esquecer a lembrança do pé de ingá e do evento que ali ocorrera.
Para que a crônica de uma vida não seja prolixa, o autor e personagem  muda o rumo da prosa, e passa a falar de como a literatura entrou em sua vida. Tudo começou em Jampruca, lendo foto-novelas, quadrinhos e livros de bolso, que os irmãos e uma irmã, traziam das cidades grandes. Depois seguiram-se os clássicos nacionais e estrangeiros. José Alencar, Machado de Assis, Tolstói, tudo que caía em suas mãos, até conhecer as primeiras bibliotecas e "comer" muitos livros.  Das leituras a escrita, foi um pulo. Primeiro com diários, seguidos dos primeiros versos. A literatura descortina o mundo, abre horizontes. Assim, o jovem desbravou florestas; singrou mares; apaixonou-se por capitus e julietas; viu soldados e civis mortos nos front's; revoltou-se com as injustiças, que os livros de história e os romances narravam;  buscou entender o sentido da vida com os livros de filosofia e a universidade da vida. Fez greve. Continuava sonhando revelar o que ocorrera sob a sombra do pé de ingá.  
Inevitavelmente a leitura despertaria a sua consciência política. Em busca de emprego, independência e sobrevivência, foi morar na capital. E do chão da fábrica ao sindicato, foi rápido. Quando a consciência de classe e política de que a vida plena é um direito de todos se instala, não larga mais. Paralelamente a ação política, escrevia poesias, crônicas e contos. Sedimentava o escritor autodidata. 
Hoje, com vários livros publicados em edições marginais, assiste ao que pensou ser uma página virada na história: a nossa frágil democracia novamente golpeada, desta vez, não pelos militares, mas por uma quadrilha de parlamentares em conluio com a turbamulta. E como a consciência política e social instalou-se definitivamente, continua em ação, para mudar esta realidade.
E reflete se deve mesmo revelar  o que aconteceu à sombra do pé de ingá.

SOBRE PROVA DE VIDA

Em 2020 a pandemia da COVID-19 chegou com força, dizimando vidas mundo afora.  Eu me encontrava em Cruz das Almas, no Recôncavo baiano, onde tive de permanecer até 2022,  por conta das barreiras sanitária e pelo amor de Antonia.  Nesse período escrevi algumas crônicas, que resultaram no livro Prova de Vida, lançado em 2021 pelo Clube de Autores.  A crônica abaixo, dedicada ao meu neto ficou assim:

Tamanho não é documento

(Para o meu neto Raul Rodrigues Estanislau)

Quando o Raul nasceu ele era pequeno.
Imaginem um grão de mostarda. Raul era maior, bem maior.
Comparado ao grão de mostarda Raul era grande, enorme. Um gigante!
Agora imaginem a mãe de Raul, o pai, os avós, tios e tias...
Comparando assim Raul era pequeno. Nesse tempo Raul não falava.
Sempre que queria comunicar alguma coisa, como está com fome ou sede, ele gritava, esperneava e até chorava.
Até que um dia Raul cresceu e foi pra escola.
Aprendeu a ler e escrever.
Ah, e desenhar. E principalmente brincar!
Até que um dia chegou o coronavírus.  Menor mas muito menor que um grão de mostarda. O coronavírus é tão pequeno, mas tão pequeno que a gente nem consegue enxergar a olho nu. Só com microscópio!
Como pode um bichinho assim, pequenino assim, trazer tanto medo às pessoas a ponto de obrigá-las a ficarem em casa! Das escolas fecharem.


Raul e eu


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Meu pé de ingá

O garoto encontrava-se na fase de descobertas.  Adquirira o hábito de contar estrelas,  principalmente em noites de lua cheia. 
- Menino, está na hora de ir pra cama - a mãe chamou, lá da cozinha, enquanto apagava as brasas  do fogão. 
- Esse menino é meio esquisito,  com a mania de contar estrelas, você não disse a ele que nasce verruga? - indagou o pai. 
 - Ah, Zé, o menino é sabido, não acredita nessas coisas!
- Tá com a cabeça rachada - interviu o irmão, com uma risada. 
O menino entrou e antes de ir pra cama, ouviu as instruções do pai.
- Amanhã, depois de voltar da rua, precisa voltar de novo pra entregar as laranjas. 
Toda manhã, depois de ajudar o pai na ordenha das vacas, o menino levava o leite pra cooperativa. Nos tempos da colheita de laranjas, ele era o responsável pelas vendas à partir das encomendas. Um cento para Fulano, meio cento pra Beltrano e por aí vai. 
O que ele não gostava era de levantar de madrugada. Mas entregar o leite e vender as laranjas,  ele gostava.  Tudo por causa do pé de ingá, onde fazia uma parada, ao retornar da rua.  Estacionava a charrete, mas antes colocava o animal à beira do córrego, para beber água e comer capim.  Atravessava a cerca de arame farpado e deitava-se num tapete feito de folhas secas, sob a sombra do pé de ingá, onde passava um bom tempo contemplando o tronco e a copa da árvore. O vento agitava as folhas, produzindo uma brisa, que abrandava o calor e o suor do corpo  do menino. 
Sob a sombra do pé de ingá seus pensamentos corriam solto até chegar ao ápice de prazer. 


DEPOIMENTOS 

Via o Estanislau de cima. Eu trabalhava num escritório bem pequeno, que ficava num dos  pátios da Companhia Belgo Mineira. O Estanislau, eu o via rodando e rondando lá embaixo com uma prancheta na mão controlando o estoque de arames a serem despachados para os clientes. Muito barulho de máquinas, empilhadeiras e caminhões. Era um sujeito simpático, sempre brincando com os peões, o pessoal que ralava. As vezes ele subia as escadas e trocávamos palavras que foram evoluindo através dos anos até se aprofundarem, ao ponto dele começar a me jogar um lero mais erudito, até me falar sobre filósofos. Foi , por isso mesmo ,que, quando me envolvi com o MEP (movimento de emancipação do proletariado), ser ele o primeiro que  contactei  pra começarmos um trabalho de, chamemos "politização" com a turma da fábrica.
Foi uma troca de conhecimentos e principalmente de uma amizade q continua até hoje.

Berzé

Conheci Estanislau nos anos 80, morador do bairro Industrial, um bairro que tinha uma essência de movimento popular. Estanislau, que fora demitido da Belgo Mineira, nesse mesmo ano, por conta de sua participação sindical,  estava engajado na construção do PT.  Stan não era apenas um operário,  tinha um olhar que ia além do chão da fábrica.  Todos os finais de semana aconteciam reuniões em sua casa, com jovens e adultos, num sonho de "consertar" o mundo à partir da cidade. Ali acontecia debates sobre música, política, cultura e lazer, início do grande sonho de construção de um partido que pudesse representar a realização desse sonho.  Stan enxergava um pouco além do que se via .
Com o sonho de que todo trabalhador, operário que consegue ver a sua necessidade e ver a do outro, estava na construção de um partido dos trabalhadores.  Em  sua casa se juntava pessoas, jovens, mulheres e homens, para a transformação tão sonhada. 
Estanislau sempre foi um trabalhador diferenciado, organizado em suas leituras e escritas.
Do bairro Industrial, começou a ganhar a cidade na organização das lutas que começa na organização em sua casa. Stan sempre foi um homem sonhador e admirado por muitos de nós da sua geração.

Leticia da Penha

Nos anos 90 eu trabalhava no Sindicato dos Metalúrgicos de BH e Contagem, sob a direção de Paulo Funghi.  Acabara de me formar em fotografia e viria a ser contratado pelo extinto Diário da Tarde.  Foi também, nos anos 90 que fui membro Associação Comunitária do Bairro Industrial (ACBI) e da Creche Criança Feliz. Nesse tempo surgiu um grupo de amigos, que se reunia esporadicamente pra tomar umas, ouvir Raul Seixas. Tocavam violão. Quem conduzia o show era o Rubens Pinheiro, tendo como parceiros, o Bonfá e o Elson. Geraldo Bernardes também arriscava alguma coisa. Amigos felizes, politicamente engajados, cada um no seu canto, mas com o mesmo pensamento: mudar o país. Foi aí que o Rubens me disse que estava reunindo com uma galera, para montar um jornalzinho e pôr a boca no mundo. Topei na hora.  Os caras mais malucos belezas que conheci. E competentes, tipo Estanislau, Geraldo Bernardes, Rubens e outros. Assim nasceu o Intercâmbio, com colunas sérias e a minha, com humor irônico. Estanislau fazia a revisão, ordenava os textos e a gente distribuía em pontos previamente acertado. O Intercâmbio mexeu com a cabeça de muitas pessoas. Saudades, saudades. 

Marco Aurélio