segunda-feira, 31 de agosto de 2020

cinema

imagem: google


um filme passa
pela minha cabeça
e antes que memória me traia
vou à pia lavar a louça
levando caneta e papel
onde anoto depressa
: maria schneider lambuzada de manteiga 
marlon brando se deliciando numa cena
em o último tango em paris
[será coisa só de cinema?]
enquanto enxáguo pratos e pires
outro filme me vem a mente
:zé wilker no papel de vadinho
sônia braga entre dois maridos
o que deixou muitos crentes
de queixos caídos...
ainda se faz bons filmes como os de antigamente?


J Estanislau Filho

Imagem: Google

Vai a Vaia

Imagem: Google



e veio a vaia
vaia que veio
voltará para a plateia
e verá que é feio
com palavrões no meio

não sei se a vaia
veio da veia
do coração
que bombeia
e oxigena o cérebro
a vaia veio
pelo meio
dos célebres
bolas murchas
que bolas cheias
o coração incendeia

vai a vaia
vem a vida
sem dúvida


J Estanislau Filho

Imagem: Google

domingo, 30 de agosto de 2020

A Ponte

Imagem: Goolge



Eu era rígido e frio, eu era uma ponte; estendido sobre um precipício eu estava. Aquém estavam as pontas dos pés, além, as mãos, encravadas; no lodo quebradiço mordi, firmando-me. As pontas da minha casaca ondeavam aos meus lados. No fundo rumorejava o gelado arroio das trutas. Nenhum turista se extraviava até estas alturas intransitáveis, a ponte não figurava ainda nos mapas. Assim jazia eu e esperava; devia esperar. Nenhuma ponte que tenha sido construída alguma vez, pode deixar de ser ponte sem destruir-me. Foi certa vez, para o entardecer – se foi o primeiro, se foi o milésimo, não o sei – meus pensamentos andavam sempre confusos, giravam, sempre em círculo. Para o entardecer, no verão, obscuramente murmurava o arroio, quando ouvi o passo de um homem. A mim, a mim. Estira-te, ponte, coloca-te em posição, viga órfã de balaústres, sustém aquele que te foi confiado. Nivela imperceptivelmente a incerteza de seu passo, mas se cambaleia, dá-te a conhecer e, como um deus da montanha, atira-o à terra firme. Veio, golpeou-me com a ponta férrea de seu bastão, depois ergueu com ela as pontas de minha casaca e arrumou-as sobre mim. Com a ponta andou entre meu cabelo emaranhado e a deixou longo tempo ali dentro, olhando provavelmente com olhos selvagens ao seu redor. Mas então – quando eu sonhava atrás dele sobre montanhas e vales – saltou, caindo com ambos os pés na metade de meu corpo. Estremeci-me em meio da dor selvagem, ignorante de tudo o mais. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um assaltante de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me para vê-lo. A ponta de volta! Não me voltara ainda, e já me precipitava, precipitava-me e já estava dilacerado e varado nos pontiagudos calhaus que sempre me tinham olhado tão aprazivelmente da água veloz

Franz Kafka



sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Tarde demais




Dizer o que acontece, é impossível, serei
aquela mulher sentada num canto da mesa
de casa, ou de qualquer lugar, tentando
entender o porquê de sentir tanto...
Tudo em mim, é intenso demais, quando sou
alegria, alegria maior no mundo não existe.

O meu mundo fica de cabeça para baixo,
tudo fica sem sentido, quando fico triste.

Pior é quando não sinto alegria ou tristeza,
é quando dá esse vazio tão vazio, tão vazio,
que inquieta, irrita, e me enlouquece.
Acho que foi por conhecer o amor tarde demais.

Hoje à tarde, senti a dor das marés, elas vem
e não voltam, na areia se derramam, tem também
àquelas sem força,
antes se desmancham devagar,
sem chegar, na beira do mar.
Mais parece a minha alma  quando sem vida fica,
o que acontece em quase todo anoitecer...
É como se a vida passasse e nem me enxergasse
e sem sentido, feito o vento, fico vagando
sem um porquê, sem ter o que soprar.

Sou dessas que vaga pelo mundo, numa solidão
que nem tem como explicar, dói demais,
essa dor não vai parar, enquanto eu existir.
Nem um grande amor ou poesia, me preencheria,
sinto uma fadiga de ser sensível, romântica,
queria ser seca, fútil, tola, um ser errante.


Liduina Nascimento




terça-feira, 25 de agosto de 2020

A Poesia de Arjofe do Recanto das Letras

Imagem: Recanto das Letras



ENLOU(A)QUECIMENTO


As estações enlouqueceram
Ou enlouquecemos nós
Verões cada vez mais quentes
Nós cada vez mais frios
Invernos de arrepiar peles
Nós arrepiando gêneros
Em números e graus elevados
Primaveras antes floridas
Agora árabes sistêmicas mas
Lembrando Praga
Em que flores murcharam
Nós continuando a murchar
Outonos de equinócios
Nós em redes de ódio
Outonando igualdades
Em nome de Deus
Que parece diabo
Em cruzes de resina
Do deus negro
Que aflora a terra
E joga por terra
A deusa Gaia
E todos morrendo na praia
Envoltos não em mortalhas
Mas em tralhas
Que de nada servem
Na passagem ao Éden
Onde quem sabe
Ainda haja jardim
Ou oásis de humanidade

Arjofe



Imagem: Google - Domínio público


PELE


A pele
Um manto
Santo
Que protege
A carne e o vinho
Que carregas sozinho
Que já foi argila
Que não há como desvesti-la
Que dá beleza a feiume
Que fede e tem perfume
Moldada pelo divino
Não há como mudar esse destino
E assim vamos nós
Com nossos nós
Parecidos com gentes
Vestidos diferentes
Mas únicos em sopro
Frutos de assopro
Ossos e órgãos protegidos
Espíritos ungidos

Arjofe




Imagem: Google



Sobre o autor

Arnaldo Joaquim Ferreira Junior
70 anos
Natural de Santos
Residente em Taubaté

Arnaldo escreve no Recanto das Letras com o pseudômino Arjofe

sábado, 22 de agosto de 2020

Dois Poemas de José Lezama Lima



Chamado do Desejoso


Desejoso é aquele que foge de sua mãe.
Despedir-se é lavrar um orvalho para uni-lo à secularidade da saliva.
A profundidade do desejo não está no sequestro do fruto.
Desejoso é deixar de ver sua mãe.
É a ausência do acontecido de um dia que se prolonga
e é na noite que essa ausência vai afundando como um punhal.
Nessa ausência se abre uma torre, nessa torre dança um fogo oco.
E assim se alastra e a ausência da mãe é um mar em calma.
Mas o fugidio não vê o punhal que lhe pergunta,
é da mãe, dos postigos fechados, que ele foge.
O descendido em sangue antigo soa vazio.
O sangue é frio quando desce e quando se espalha circulizado.
A mãe é fria e está perfeita.
Se for por morte seu peso dobra e não mais nos solta.
Não é pelas portas onde assoma nosso abandono.
É por um claro onde a mãe ainda anda, mas já não os segue.
É por um claro, ali se cega e logo nos deixa.
Ai do que não anda esse andar onde a mãe não o segue mais, ai.
Não é desconhecer-se, o conhecer-se segue furioso como em seus dias, mas segui-lo seria o incêndio de dois numa só árvore,
e ela adora olhar a árvore como uma pedra,
como uma pedra com a inscrição de antigos jogos.
Nosso desejo não é pegar ou incorporar um fruto ácido.
O desejo é o fugidio
e das cabeçadas com nossas mães cai o planeta centro de mesa
e de onde fugimos, se não é de nossas mães que fugimos,
que nunca querem recomeçar o mesmo jogo, a mesma
noite de igual ilharga descomunal?


(Trad. Josely Vianna Baptista)



.Ah, que você escape


Ah, que você escape no instante
em que tenha alcançado sua melhor definição.
Ah, minha amiga, não queira acreditar
nas perguntas dessa estrela recém-cortada,
que vai molhando suas pontas em outra estrela inimiga.
Ah, se fosse certo que, à hora do banho,
quando, em uma mesma água discursiva,
se banham a imóvel paisagem e os animais mais finos:
antílopes, serpentes de passos breves, de passos evaporados,
parecem entre sonhos, sem ânsias levantar
os mais extensos cabelos e a água mais recordada.
Ah, minha amiga, se no puro mármore das despedidas
tivesses deixado a estátua que poderia nos acompanhar,
pois o vento, o vento gracioso,
se extende como um gato para deixar-se definir.


(Trad. Claudio Daniel)


Sobre o autor



Poeta, ensaísta e novelista além de patriarca invisível das letras cubanas, José Lezama Lima nasceu no dia 19 de dezembro de 1910 em Campamento de Columbia, nas proximidades de Havana e é considerado um dos escritores mais importantes da literatura latinoamericana deste século tendo grande influência na obra de diversos escritores hispanoamericanos e espanhóis.
Conhecedor profundo de Góngora, Platão, os poetas órficos e os filósofos gnósticos, Lezama resumiu sua vida ao amor aos livros. Sua obra está cercada de chaves, enigmas, alusões, parábolas e alegorias que aludem a uma realidade secreta, íntima e ao mesmo tempo, ambígua. Descorreu pela literatura erótica, antecipando-se, desta maneira, as correntes européias do estruturalismo. Seus ensaios são imaginativos, poéticos, abertos e constituem uma recriação de textos e imagens. Promotor de revistas e cenáculos soube unir e torno dele poetas do porte de Gasto Baquero, Cintio Vitier. Eliseo Diego, Virgilio Piñera e Octavio Smith, entre outros. Sua amizade com o poeta e sacerdote espanhol Angel Gaztelú (1914), contribuiu para a formação de seu lado espiritual.

Seu primeiro livro de poemas foi Muerte de Narciso (1937), em que ele coloca o leitor frente a uma situação limite da realidade de cujo desmantelamento surge outra realidade artistica potencializada e construída dentro de uma fascinante e barroca mitologia. Seguem, entre outras obras poéticas, todas influenciadas, pelo estilo rico em metáforas e cheio de distorções de Góngora, Enemigo Rumor (1941), Aventuras Sigilosas (1945), Dador (1960) e Fragmentos a su imán, publicado postumamente em 1977.

Em 1966 publicou a novela Paradiso, de onde conflue toda a sua trajetória poética de caráter barroco, simbólico e iniciativo. O cubano, com suas deformações verbais, desempenha um papel fundamental na obra, como ocorre em sua coleção de ensaios La cantidad hechizada (1970). Oppiano Licario é uma novela inconclusa, encontrada postumamente em 1977, que traz de volta a figura do personagem de Paradiso. Lezama Lima teve uma enorme influência em numerosos escritores hispanoamericanos e espanhóis, alguns dos quais chegaram a considerá-lo seu mestre, como é o caso de Severo Sarduy.



sábado, 15 de agosto de 2020

O Navio Negreiro

Imagem: Rugendas



Castro Alves

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço 
Brinca o luar — dourada borboleta; 
E as vagas após ele correm... cansam 
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento 
Os astros saltam como espumas de ouro... 
O mar em troca acende as ardentias, 
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos 
Ali se estreitam num abraço insano, 
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... 
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas 
Ao quente arfar das virações marinhas, 
Veleiro brigue corre à flor dos mares, 
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai?  Das naus errantes 
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? 
Neste saara os corcéis o pó levantam,  
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora 
Sentir deste painel a majestade! 
Embaixo — o mar em cima — o firmamento... 
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! 
Que música suave ao longe soa! 
Meu Deus! como é sublime um canto ardente 
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros, 
Tostados pelo sol dos quatro mundos! 
Crianças que a procela acalentara 
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba 
Esta selvagem, livre poesia 
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, 
E o vento, que nas cordas assobia... 
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro? 
Por que foges do pávido poeta? 
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira 
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz!  Albatroz! águia do oceano, 
Tu que dormes das nuvens entre as gazas, 
Sacode as penas, Leviathan do espaço, 
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas. 

II


Que importa do nauta o berço, 
Donde é filho, qual seu lar? 
Ama a cadência do verso 
Que lhe ensina o velho mar! 
Cantai! que a morte é divina! 
Resvala o brigue à bolina 
Como golfinho veloz. 
Presa ao mastro da mezena 
Saudosa bandeira acena 
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas 
Requebradas de langor, 
Lembram as moças morenas, 
As andaluzas em flor! 
Da Itália o filho indolente 
Canta Veneza dormente, 
— Terra de amor e traição, 
Ou do golfo no regaço 
Relembra os versos de Tasso, 
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio, 
Que ao nascer no mar se achou, 
(Porque a Inglaterra é um navio, 
Que Deus na Mancha ancorou), 
Rijo entoa pátrias glórias, 
Lembrando, orgulhoso, histórias 
De Nelson e de Aboukir.. . 
O Francês — predestinado — 
Canta os louros do passado 
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos, 
Que a vaga jônia criou, 
Belos piratas morenos 
Do mar que Ulisses cortou, 
Homens que Fídias talhara, 
Vão cantando em noite clara 
Versos que Homero gemeu ... 
Nautas de todas as plagas, 
Vós sabeis achar nas vagas 
As melodias do céu! ... 

III


Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! 
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano 
Como o teu mergulhar no brigue voador! 
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! 
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... 
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 

IV


Era um sonho dantesco... o tombadilho  
Que das luzernas avermelha o brilho. 
Em sangue a se banhar. 
Tinir de ferros... estalar de açoite...  
Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas  
Magras crianças, cujas bocas pretas  
Rega o sangue das mães:  
Outras moças, mas nuas e espantadas,  
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente  
Faz doudas espirais ... 
Se o velho arqueja, se no chão resvala,  
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,  
A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece,  
Outro, que martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra, 
E após fitando o céu que se desdobra, 
Tão puro sobre o mar, 
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: 
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros! 
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . 
E da ronda fantástica a serpente 
          Faz doudas espirais... 
Qual um sonho dantesco as sombras voam!... 
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
          E ri-se Satanás!...  

V


Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade 
Tanto horror perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas 
De teu manto este borrão?... 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados 
Que não encontram em vós 
Mais que o rir calmo da turba 
Que excita a fúria do algoz? 
Quem são?   Se a estrela se cala, 
Se a vaga à pressa resvala 
Como um cúmplice fugaz, 
Perante a noite confusa... 
Dize-o tu, severa Musa, 
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto, 
Onde a terra esposa a luz. 
Onde vive em campo aberto 
A tribo dos homens nus... 
São os guerreiros ousados 
Que com os tigres mosqueados 
Combatem na solidão. 
Ontem simples, fortes, bravos. 
Hoje míseros escravos, 
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas, 
Como Agar o foi também. 
Que sedentas, alquebradas, 
De longe... bem longe vêm... 
Trazendo com tíbios passos, 
Filhos e algemas nos braços, 
N'alma — lágrimas e fel... 
Como Agar sofrendo tanto, 
Que nem o leite de pranto 
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas, 
Das palmeiras no país, 
Nasceram crianças lindas, 
Viveram moças gentis... 
Passa um dia a caravana, 
Quando a virgem na cabana 
Cisma da noite nos véus ... 
... Adeus, ó choça do monte, 
... Adeus, palmeiras da fonte!... 
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso... 
Depois, o oceano de pó. 
Depois no horizonte imenso 
Desertos... desertos só... 
E a fome, o cansaço, a sede... 
Ai! quanto infeliz que cede, 
E cai p'ra não mais s'erguer!... 
Vaga um lugar na cadeia, 
Mas o chacal sobre a areia 
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa, 
A guerra, a caça ao leão, 
O sono dormido à toa 
Sob as tendas d'amplidão! 
Hoje... o porão negro, fundo, 
Infecto, apertado, imundo, 
Tendo a peste por jaguar... 
E o sono sempre cortado 
Pelo arranco de um finado, 
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade, 
A vontade por poder... 
Hoje... cúm'lo de maldade, 
Nem são livres p'ra morrer. . 
Prende-os a mesma corrente 
— Férrea, lúgubre serpente — 
Nas roscas da escravidão. 
E assim zombando da morte, 
Dança a lúgubre coorte 
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus, 
Se eu deliro... ou se é verdade 
Tanto horror perante os céus?!... 
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas 
Do teu manto este borrão? 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! ... 

VI


Existe um povo que a bandeira empresta 
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... 
E deixa-a transformar-se nessa festa 
Em manto impuro de bacante fria!... 
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, 
Que impudente na gávea tripudia? 
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto 
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra, 
Que a brisa do Brasil beija e balança, 
Estandarte que a luz do sol encerra 
E as promessas divinas da esperança... 
Tu que, da liberdade após a guerra, 
Foste hasteado dos heróis na lança 
Antes te houvessem roto na batalha, 
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga! 
Extingue nesta hora o brigue imundo 
O trilho que Colombo abriu nas vagas, 
Como um íris no pélago profundo! 
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga 
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! 
Andrada! arranca esse pendão dos ares! 
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



Imagem: Google

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Artigo arrebatador de Márcia Tiburi



Nenhuma teoriazinha de comunicação dá conta do que ocorre no Brasil e   no mundo neste momento. É preciso filosofia e crítica literária, com muita densidade, pois nada é simples ou fácil.

A leitura de Marcia Tiburi sobre Bolsonaro é a melhor até aqui, disparado. A mais qualificada, a menos simplificadora e a mais equilibrada - despida das paixões tolas do mundo do pensamento crítico de internet.

Tiburi é corajosa. Leiam o artigo na íntegra (publicado originalmente na Carta Capital):


Brasil caiu nas mãos do seu torturador


Em 17 de abril de 2016 na votação do farsesco impeachment contra Dilma Rousseff, Bolsonaro se tornou o Ubu rei nacional. Ubu Rei é um personagem de uma peça homônima de Alfred Jarry que data do final do século 19. Nela o personagem principal é um sujeito que quer ser rei para comer muito, matar, enriquecer ilicitamente e fazer todo tipo de maldade e grosseria que estiver ao seu alcance.

O Ubu Rei é um personagem fundamental que nos ajuda a perceber como e por que as figuras mais grotescas fazem muito sucesso na política. Quando a política não se realiza como tragédia, ela se realiza como farsa e a farsa, no sentido do teatro do grotesco que produz efeitos de poder justamente por ser desqualificado e violento, é o que vivemos há um bom tempo no Brasil. Pelo menos desde o golpe de 2016.

Nero e Hitler, Trump e Erdogan fazem parte da estirpe do Ubu. Bolsonaro consegue ser mais surpreendente do que todos eles. De mentalmente inimputável a presidente da república, Bolsonaro deu um salto que faz lembrar das pulgas que não tendo tamanho para ir tão longe vão mesmo assim. Como ele conseguiu tal façanha? Sendo empurrado por muitos, pelos poderes coniventes que saqueiam o Brasil, mas não só. Todos reconhecem que ele tem brilho próprio. Bolsonaro conseguiu transformar as dezenas de deputados grotescos em cena na votação de 17 de abril de 2016 em figuras coadjuvantes diante da sua verve. Em 2018 muitos se elegeram com o mesmo método no teatro atual da política, mas nenhum se compara a ele. De Janaina Paschoal a Kim Kataguiri, de João Doria a Wilson Witzel, todos se garantiram na eleição e provaram que não basta fazer uso da tecnologia política do ridículo, é preciso arrasar no papelão. A infâmia só é capital quando ela produz efeito de poder sobre as massas: um efeito estupefaciente, de droga pesada, de hipnose.

Bolsonaro é imbatível na produção desses efeitos, seja com suas frases, seja com suas cenas. Mostrando o Golden Shower, debochando dos coveiros e dos mortos por COVID, se lambuzando com um cachorro-quente ou fazendo propaganda de cloroquina, o que Bolsonaro faz é causar efeitos pelo choque, em intensidades diversas essa é a técnica que ele domina. Seja ameaçando de morte, seja sendo cínico, ele é único no seu papel. E ao que ele deve tamanha habilidade? Ora, ele teve escola e isso é o que mais importa.

Foi em nome de uma escola que Bolsonaro criou sua fama tendo sido em 17 de abril de 2016 o grande orador da turma. Melhor aluno da escola, ele recebeu a faixa presidencial do Ubu rei anterior, na verdade um pouco esmaecido, mas igualmente funesto, Michel Temer. Mas o sucesso pertence a Bolsonaro, que não perdeu de vista o “dia de glória” e, no contexto de uma violência simbólica espetacular, fez o elogio de ninguém menos que “Carlos Alberto Brilhante Ustra”, o famoso torturador da ditadura militar que ele tinha como mestre. Mas ele precisava se superar no parque temático do Congresso Nacional. Não bastava a coleção de asneiras, nem apenas o elogio ao torturador, era preciso adicionar um aspecto ao discurso que faria toda a diferença no inconsciente político do povo. E para isso, ele foi ao ponto ao falar do “terror de Dilma Rousseff” trazendo de volta das catacumbas apodrecidas da história a pedagogia que durante anos tocou o terror no Brasil: a tortura.

Podemos dizer que, nesse dia, Bolsonaro colocou grande parte da nação em uma imensa síndrome de Estocolmo. Se de um lado, ele escandalizou a muitos que não acreditaram que ele poderia avançar, de outro lado, em sua catarse demoníaca, ele seduziu uma imensa parte da população para o seu lado. Em sua atitude, as bases da psicopedagogia da tortura. Costumamos associar um torturador a um psicopata, a um sádico, o que não deixa de ser, mas ela é uma técnica organizada pelos Estados e Igrejas, da Europa aos Estados Unidos e aplicada em todo mundo há séculos por instituições do poder. Ora, uma dimensão, talvez a mais fundamental da tortura, é justamente o seu caráter psicológico. Daí que se possa falar de psico-pedagogia da tortura como uma técnica de psico poder. A tortura sempre mexe com o medo das pessoas. E, mais além, com o pavor e angústia políticas que precisam ser elaboradas e que no Brasil jamais foram.

Quem ouviu Bolsonaro naquele dia 17 de abril ficou estupefato. Grande parte da população se deixou tocar pelo “pavor” do qual Dilma Rousseff estava sendo cobaia mais uma vez. Aí é que surgiu o que define a “síndrome de Estocolmo”, o estado psicológico que envolve algozes e vítimas por um elo complexo no qual a vítima se identifica com o agressor. Porém, ela não se identifica por empatia, mas muito mais por medo. Colocando-se ao lado do agressor, defendendo-o, o sujeito exorciza o medo de ser maltratado por ele. O operador da síndrome é o medo que, manipulado, faz o indivíduo ceder. Por isso, podemos dizer que Bolsonaro naquele dia 17 de abril, num gesto de perversão radical, colocou o Brasil no pau-de-arara, na cadeira do dragão, sob choque elétrico, em estado de pavor e devendo confessar alguma coisa, mesmo que ela não fosse verdade. A confissão chegou nas urnas dois anos depois como um diploma, prova de que a pedagogia deu certo.

Bolsonaro pertence a um escola. A da ditadura, sobre a qual ficamos sabendo nos depoimentos de torturadores e torturados. Quem consegue esquecer dos depoimentos de pessoas contando sobre choques elétricos e toda sorte de horrores vividos em seus corpos? Quem conseguirá esquecer de Lúcia Murat contando sobre a função de baratas amarradas em barbantes passeando sobre seu corpo? E quem conseguirá esquecer dos jacarés sobre o corpo de Dulce Pandolfi servindo de exemplo em uma aula de tortura?

A tortura foi um método de produção de confissão, mas antes de mais nada foi um método para imprimir pavor. Os militares brasileiros eram imediatistas, não estavam interessados em fazer pesquisas como os americanos fizeram com técnicas de tortura com o objetivo da lavagem cerebral. Os americanos sempre exportaram conhecimento para o Brasil, podemos dizer ironicamente. Os militares brasileiros nunca tiveram tanta paciência, sempre puderam contar com a televisão e sua programação torturante (sou da época em que se dizia com desgosto “não tem nada na televisão no domingo” e mesmo assim, as pessoas continuavam assistindo como se estivessem treinando para o desprazer, como se tivessem se tornado capazes de suportar qualquer sofrimento).

O Brasil caiu nas mãos do seu torturador e segue sendo torturado por ele. Todo o deboche, toda a maldade, todo o descaso e, agora o COVID19 fazem parte das técnicas de tortura em escala nacional. Quem precisa buscar jacarés, ratos ou cobras quando se dispõe do coronavírus que não dá muito trabalho e elimina uma parcela gigante da população odiada pelo fascismo nacional?

Muita gente morreu na ditadura sob a ordem de torturadores como Ustra, o herói de Bolsonaro. Muita gente segue morrendo sob a nova tortura elevada a forma de governo.

Bolsonaro é o resultado de uma parte muito séria da história do Brasil que não foi resolvida até agora. Assim como a escravização, a ditadura militar pesa na vida brasileira e muitos se esforçam para não tocar nesse assunto porque ela faz voltar do passado horrores insuportáveis e responsabilidades que uma nação de oligarquias e poderes coniventes não quer assumir.

Essas oligarquias seguem, junto com Bolsonaro, torturando e matando o povo brasileiro.





Graduada em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1990), e em artes plásticas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996); mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1994) e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999) com ênfase em Filosofia Contemporânea. Seus principais temas são ética, estética, filosofia do conhecimento e feminismo. Márcia Tiburi foi também aluna do filósofo Carlos Cirne-Lima.

Publicou livros de filosofia, entre eles a antologia As Mulheres e a Filosofia e O Corpo Torturado, além de Uma outra história da razão. Pela Editora Escritos, publicou, em co-autoria, Diálogo sobre o Corpo, em 2004, e individualmente Filosofia Cinza - a melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Em 2005 publicou Metamorfoses do Conceito e o primeiro romance da série Trilogia Íntima, Magnólia, que foi finalista do Prêmio Jabuti em 2006. No mesmo ano lançou o segundo volume A Mulher de Costas. Escreve também para jornais e revistas especializados, assim como para a grande imprensa.

domingo, 2 de agosto de 2020

Por que os ricos não pagam quase nada de impostos no Brasil?

Reprodução twitter

Por Jair de Souza*

Nenhuma sociedade pode existir dignamente sem a existência de impostos. Todos os serviços públicos dependem de impostos para funcionar.

De nossas inúmeras necessidades, todos aspiramos a uma escola pública de qualidade, a um atendimento médico público eficiente, a um transporte público digno e a um sistema de segurança que realmente nos proteja.

Mas, como ter acesso a isso sem recursos para bancar os custos?

Os ricos só se preocupam com os serviços públicos de repressão policial e com o judiciário, porque são os que lhes servem melhor para conter a rebeldia popular e os protestos dos trabalhadores e dos pobres em geral.

Porém, eles não dão a mínima para as necessidades básicas do povo trabalhador.

Como os ricos têm dinheiro, eles preferem pagar escolas particulares para seus filhos a contribuir para manter escolas públicas de qualidade para os filhos dos trabalhadores.
O mesmo se dá em relação com a saúde, pois, como os ricos têm como pagar por clínicas e hospitais particulares, estão contra o financiamento público da assistência médica destinada ao povo.

Por isso, eles não querem pagar impostos.

Mas, para angariar simpatia e apoio político na sociedade, tratam de fazer com que os pobres e a classe média também acreditem que o pagamento de impostos são ruins para a sociedade como um todo.

Nada disso! Os impostos são fundamentais.

No entanto, quem deveria arcar com o maior peso dos impostos são aqueles que ganham mais, e não os que ganham pouco.

No Brasil, os ricos quase não pagam impostos.

São os trabalhadores os que arcam com a maior parte da carga tributária.
Enquanto nos países desenvolvidos da Europa, nos Estados Unidos e no Japão, por exemplo, a carga tributária direta é muito mais rigorosa e vai se elevando conforme o nível dos rendimentos, chegando a ultrapassar os 50%, no Brasil a alíquota máxima se congela em 27,5.
Ou seja, um assalariado de classe média que ganhe R$ 15.000,00 por mês, vai pagar os mesmos 27,5% que um super-executivo que receba R$ 500.000,00.

Precisamos acabar com isto.

O exemplo dado a seguir tem a intenção de expor a injustiça da tributação existente no Brasil, onde o imposto direto sobre a renda dos ricos é insignificante, ao passo que o grosso da arrecadação se dá através do imposto sobre os bens de consumo.

Para tornar mais inteligível a questão da tributação injusta, elaborei um cálculo tomando um Brasil hipotético onde existem 100 milhões de pessoas contribuintes.

Destes, 80 milhões são trabalhadores que recebem em média 2500 reais por mês, e outros 20 milhões de ricos que ganham em média 40.000 reais.

Estou fazendo também a suposição realística de que os trabalhadores gastam todo seu rendimento em bens de consumo, e que cada rico gasta em bens de consumo uma média 10 vezes maior do que a de cada trabalhador.

Além disso, vamos imaginar que neste Brasil hipotético toda a tributação se faça apenas através da taxação dos bens de consumo e que a alíquota média cobrada seja de 25% sobre seu valor de mercado.

Este é um exemplo simplificado, só para facilitar sua compreensão, ainda que bem ilustrativo da essência do problema.

Na realidade, a situação é ainda pior.

— Renda total do país = R$ 1.000.000.000.000,00, sendo R$ 200.000.000.000,00 (trabalhadores) + R$ 800.000.000.000,00 (ricos).

— 80.000.000 trabalhadores x 2.500 reais = R$ 200.000.000.000,00.

— Gastos no consumo por trabalhador = R$ 2.500,00. Imposto por trabalhador (25% de 2.500) = 625,00. Total de impostos = R$ 50.000.000.000,00,

Ou seja, os trabalhadores pagam de impostos 25% do que ganham, que significa R$ 50.000.000.000,00.

— 20.000.000 de ricos x 40.000 reais = R$ 800.000.000.000,00.

— Gastos de consumo por rico = R$ 6.250,00. Imposto por rico (25% de 6.250,00) = 1.562,50. Total de impostos = R$ 31.250.000.000,00

Ou seja, os ricos pagam de impostos 3,9% do que ganham.

No final, da carga tributária total (R$ 81.250.000.000,00), o conjunto dos trabalhadores arcam com 61,54%, enquanto que os ricos somente com 38,46%.

É por isso que os ricos só aceitam sem reclamar a tributação em cima dos bens de consumo, e não a tributação direta em cima dos rendimentos.

Acabar com esta tremenda injustiça não vai ser tarefa fácil.

Devemos nos preparar para desmascarar aqueles que desejam manter os privilégios dos eternos apaniguados e tratam de fazer terrorismo toda vez que se levanta a necessidade de taxação sobre os mais ricos.

Precisamos nos esforçar para que o conjunto do povo trabalhador (incluindo a classe média) venha a entender que para haver justiça social que beneficie a todos (inclusive aos próprios ricos), é fundamental que seja feita uma profunda reforma tributária que obrigue aos mais privilegiados a cumprir com seus deveres sociais.



*Economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.