terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Antonia Castro






Sua pele sua
sua voz ecoa
em meus ouvidos

Tento me concentrar
em seu sorriso largo
em suas pernas longas

Sua voz voa sem pausa
até o pouso nos lábios






J Estanislau Filho

sábado, 16 de fevereiro de 2019

O Cemitério

Imagem: Adriano Pedrosa




Era uma tarde igual a tantas outras em que eu levava a cadeira para o fundo do quintal e ficava olhando o cemitério. E pensando nos mortos. Conhecera alguns, todos praticamente.
   Lá da cozinha, vinha um cheiro de carne frita: era a minha mãe preparando o jantar. Imaginei o cheiro da carne dos mortos. Zé da Zilda, Marileide Cravina, Leontina, a voraz. Tião Medonho fora enterrado hoje de manhã. Decompunha. Acompanhei o enterro de quase todos. Tinha oito anos. Gostava de acompanhar enterros. Olhava os defuntos com um interesse, que só viria a entender anos depois. Por esta época morava no sítio do meu pai uma família: avô, filho, filha e neta. A nora morrera de tuberculose. O avô, se perceberam, não tinha esposa. O filho nunca se casara. A neta tinha mãe, mas ignorava a existência do pai. A filha não sabia do marido. Para os diabos, praguejava. Ela estava contaminada pelo Mycobacterium tuberculosis. Não largava mão do cigarro. Recusava-se a ir ao médico. - Fui desgostosa, mas fui. O dotô diss praieu pará de pitá. Ieu intoce reparei o tantão de bituca no cinzero dele. Mod quê o dotô num para? - questionava.
   Um dia levaram-na à força à Santa Casa de Misericórdia. Por lá ficou, nunca mais foi vista, visitada, assim como sua família não recebia visita. Comenta-se que deve ter bebido o chá da meia noite. Ela era filha, irmã e mãe. Em pouco tempo os demais membros da família dela faleceram. Eu fui o primeiro a acender o isqueiro e incendiar o telhado de sapê. O fogo devorou o barraco em poucos minutos. A peste fora posta a baixo. Dos poucos enterros que não participei, foram dos mortos da família de tuberculosos. Na verdade nunca acompanhei enterros. Eu ia sempre à frente do esquife, carregando a cruz e a coroa de flores. Não entendia o sentido das flores.
   Do fundo do quintal de minha casa eu olhava o cemitério e conversava com os mortos. Escurecia quando minha mãe me chamou, para o jantar. As primeiras estrelas surgiam. Todos sentamos em volta da mesa, para um jantar especial, pois meu pai era amigo do vigário e vez ou outra o convidava para uma refeição. Sobre a mesa forrada estava um leitão assado, com uma enorme maçã na boca. Meu Deus, não era um leitão, era a falecida. Por quê me abandonaram na Santa Casa? Fui tratada como indigente, sem documentos, sem amigos, sem família. Olhei minha mãe, meu pai e o vigário. Preparavam-se para a oração. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, começou, pela boca do padre Franco, a oração, acompanhado por todos. Eu não conseguia, pois a defunta me olhava com olhos arregalados: - Você vai levar a cruz do meu enterro!
   - Vamos servir - disse meu pai, com a faca na mão. Quase gritei, "por favor, papai, é a Dona Filó". Ele cortou uma lasca. Eu não via a maçã na boca da leitoa assada, via um cigarro e Dona Filó gritando "não paro de fumá, não paro, não paro". Perguntei ao meu pai: - O caixão, a cruz e as coroas estão prontas?". - Caixão? Que caixão, filho? Coroas de flores, não estou entendendo! Voltando o olhar sobre a mesa, lá estava o leitão retalhado. Todos riram. Olhei as mãos brancas do vigário, segurando um pedaço de costela. Que mistérios tem as mãos do padre? Elas são brancas e lisas. Não são como as de meu pai, grossas. Sobre a mesa restavam alguns ossos, e, em mim, a lembrança das mãos do vigário, segurando as mãos da defunta.
   O vigário nos abençoou e foi embora. Conversamos um pouco antes de irmos dormir. Jurei ter visto a mulher tuberculosa e riram de mim. A janela foi fechada por um vento forte, apagando o lampião. Não conseguia dormir. Vestido de pijama branco, levantei-me e fui ao cemitério. O céu, sem nuvens, estava coberto de estrelas e a lua cheia iluminava por toda parte. Sentei-me sobre uma catacumba e fiquei contemplando o luar. E pensava em todos os que ali jaziam. Lá, bem no fundo estava a catacumba do Seu Ambrosino. Era a mais bonita. Ele era o fundador de Nazaré de Bom Jesus. A de Seu Nicodemo também era bonita, mas igual a de Seu Ambrosino tinha não. Até retrato dele, ao lado da esposa, Dona Margarida, mais conhecida por Dona Guida, tinha. Ele com um machado, ela com uma foice. Mulher batuta aquela Dona Guida. Na lápide estava escrito: in memoriam do Senhor Ambrosino Coelho Machado de Araújo e de Dona Margarida Arcanjo da Conceição Araújo, pioneiros de Nazaré de Bom Jesus. A eles nossa eterna gratidão. Pensei no Risadinha, coitado! Porque ele não tinha uma catacumba... Risadinha bem que merecia. Não acho que ele era doido, não. Um dia eu o vi lendo jornal. Devia ler alguma coisa engraçada, pois dava cada risada! Perguntei do que ele ria, mas ele balançava a cabeça em sinal de "não" e ria e ria. No dia em que ele morreu vi muitos meninos chorando. Eu também chorei baixinho. Risadinha só ficava esquisito no dia que seu Beque do Bar dava pinga pra ele. Dava cada urro. Seu Beque era ruim, muito ruim. O Valmir Carreiro também não tinha catacumba. Só gente importante tinha catacumba. Olhava a lua iluminando tudo. De cima da catacumba eu via a nossa casa e lugar no quintal em que eu colocava a cadeira, bem debaixo do pé de jambo. Fiquei pensando no leitão assado do jantar. Em meu pai e minha mãe, rezando de cabeça baixa. Minha mãe só rezava com os lábios, sem abrir a boca. Eu ficava olhando e achando estranho. Carlos, meu irmão caçula fazia o que queria, ninguém achava ruim. A Gessi, quando vinha do convento das freiras, gostava de me colocar de castigo, mas eu não obedecia. Carlos não ajoelhava, nem levantava, na hora do terço. Era um ajoelha, levanta, ajoelha. Eu hem! Pensava nas mãos brancas do padre, lambendo os ossos da defunta. E na cara engraçada que todos fizeram, quando perguntei pela cruz e pela coroa de flores. Olhei o cemitério com os olhos espichados. Quando vi sair um fogo debaixo da terra, nem liguei, pois o sono me dominava. Voltei pra casa.
   No dia seguinte todas as pessoas comentavam terem visto uma alma penada no cemitério, na noite anterior. Seu Jandir explicava que era uma alma do purgatório e pedia que orássemos por ela. Seu Jandir era muito respeitado. As pessoas acreditavam no que ele dizia. Só o Seu Expedito fazia ouvidos moucos. também pudera, ele era ateu.
No mesmo dia rezaram um terço e acenderam velas, para aquela pobre alma descansar em paz.

J Estanislau Filho






Obs.; Este é um dos primeiros conto de minha autoria. Encontrei-o em meus alfarrábios, escritos pelos idos de 1976 (datilografado). Fiz algumas correções, alterações, mas sem perder a essência do meu modo de escrever em 76. Decidi incluí-lo em meu novo livro A Moça do Violoncelo.