segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Das Minhas Lembranças 51

Imagem: Jornal GGN
 

- Ei, acorda!

     Virei para o outro lado, mas alguém insistiu: - Vamos, acorde, temos novidade no quarto! Ergui da cama, sonolento. Esfreguei os olhos com os punhos cerrados. 

     - O que foi?

     Não me recordo quem e quantos, três?, quatro talvez,  encontravam-se ao redor de minha cama naquela noite em que a lua projetava sua luz  prateada pelas janelas abertas. Se não me falha a memória, o Brasileiro fazia parte dos que me sacudiram, para me informar que o Valmir chegara do pomar das terras de um sitiante vizinho do Ginásio Agrícola, com uma mala cheia de laranjas e a depositara sobre o seu armário. Devia ser por volta da meia noite. Valmir dormia um sono benfazejo.  Pudera, deveria estar cansado pela caminhada de cerca de quatro quilómetros, com a mala no ombro. 

     - Que tal a gente pegar a mala e nos fartarmos? Sugeriu outro colega, cujo nome não me recordo. Mas estou quase certo ser um craque de bola, lá de Montanha, cidade fértil de craques. Como não me lembrar de Vovô, que depois de me dar uma caneta, chutou da entrada da área, para marcar o quarto gol contra o nosso time? 

     - É agora! Consenti sem titubear.

     Calmo e silenciosamente peguei a mala e a levei ao terreiro, colado ao dormitório. Abri-a calmamente e a luz da lua iluminou seu interior. Lá estavam elas, lindas, amarelinhas e pedindo para serem chupadas. E assim fizemos em justa partilha.  Talvez ali a gente tenha entendido o significado da distribuição justa. Quanto ao Valmir, cuidamos de deixar as mamuchas e as cascas na mala, para que ele entendesse o significado do egoísmo. Recoloquei a mala de volta sobre o armário do nosso colega, que dormia um sono profundo.  Seu ronco ecoava pelo dormitório. 

     No dia seguinte ficamos observando os movimentos do Valmir. Quando ele abriu a mala... Bem, aí não me lembro o que aconteceu. Não sei se caímos na gargalhada ou se o mistério foi mantido. Mas que o colega ficou com cara de tacho, não tenho dúvidas.


Ginásio Agrícola de Colatina - atualmente IFES
 

J Estanislau Filho

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Das Minhas Lembranças 50


 Imagem: Revista Rural

Saborear os frutos do pomar, somente à mesa do refeitório. Proibido e severamente punido quem ousasse pega-los nos pés. Era o que eu,  Benil e Reginaldo queríamos naquela tarde morna de um domingo em que professores e funcionários descansavam.  Queríamos frutas frescas, escolhidas a dedo.  O domingo nos convidava. Mas tinha um problema. Não poderíamos ser pegos em flagrante, principalmente eu, já com duas suspensões nas costas.  Uma terceira, seria expulso. Os frutos mais saborosos são os proibidos. E lá fomos nós, inocentemente felizes com a proeza. 
     Estávamos sob a sombra de um pé de laranja, canivete na mão, quando ouvimos uns passos vindo em nossa direção.  Minha ficha caiu! O que fazer? Sebo nas canelas. Corri como nunca, coração saindo pela boca. Não sei como passei entre os fios de uma cerca de arame farpado. Cheguei ao dormitório e respirei fundo. Nos dispersamos na corrida, tipo cada um por si. Minha roupa estava coberta por carrapichos. O meu quarto e de mais seis colegas estava vazio. Enquanto me livrava dos carrapichos, o Benil chegou. Disse-lhe ser mais seguro a gente se separar por uns dias. Perguntei pelo Reginaldo, ele não sabia. 
     Depois de umas longas duas horas o Reginaldo apareceu, com um sorriso enigmático. O professor Bergamaschi me flagrou e me pressionou pra saber quem estava comigo, informou.  E deixou em suspense se nos dedurara. Em seguida nos acalmou, mas ainda manteve um suspense: - o professor me disse que eu não serei suspenso se contar quem estava comigo. Estou pensando no que fazer.  Minha expulsão dependia do Reginaldo. Durante dois ou três dias permaneci apreensivo. 
     - E aí, Regis, já decidiu o que dizer? Perguntei-lhe na segunda-feira. 
     - Não sei, Jampruca! Eu recebera esse apelido, quando disse que minhas raízes eram de Jampruca.  Apelido que eu odiava, mas não manifestava, para  não "colar". A mágoa por ter saído de lá, depois de ter sido chutado no traseiro pelo Cabo Adão, sob a mira do revólver do delegado Matias, não passara. Acho que vou ter de contar, o professor ameaça levar ao conselho, emendou.
     Dias depois o Reginaldo arrumou a mala e foi cumprir a suspensão, lá em Montanha, onde morava. 

Vista parcial de Montanha-ES


J Estanislau Filho



sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Das Minhas Lembranças 49

Governador Valadares-MG


O que me levou ao rompimento com a disciplina da escola agrícola está escondida em algum canto do cérebro. Talvez seja pela fidelidade ao meu grupo de colegas, que exercera alguma influência sobre mim; talvez pela minha essência rebelde; talvez também, pelo meu senso de justiça; talvez ainda por informações precárias, devido a ditadura, de que havia, por parte dos estudantes, nas capitais, resistência ao regime de exceção.
     Aconteceu em duas ocasiões de eu ser punido com suspensão e mandado  passar uns dias em casa. Obviamente que achei injusta tais punições. Eu me lembro da ordem do diretor no quadro de aviso me expondo ao corpo docente e discente.  Ao final do aviso sobre os motivos da punição estava escrito, em caixa alta: cientifique-se e cumpra! Assim, sem chances de defesa.  A minha primeira suspensão se deu por eu ter respondido "grosseiramente" ao responsável pela limpeza do dormitório, quando pedi a ele permissão de entrar no dormitório (esquecera um material escolar), que ficava fechado a entrada de alunos durante a limpeza. Uma advertência, creio, seria suficiente. Uma suspensão poderia me levar a outra, do meu pai. Acho que não fui advertido pelo meu pai por causa  de minha irmã, freira, que saíra de casa lá pelos treze anos, para um internato de freiras. Alaíde,  ao se tornar freira recebeu o nome de Maria das Neves, irmã Maria das Neves.
     Na segunda suspensão, não me lembro o motivo, fiquei hospedado na casa de um colega, em Governador Valadares. Não me recordo se meus pais ficaram sabendo.  Me hospedei justamente na casa de um colega em que dera um murro em seu rosto e ele caíra no chão. Ao se levantar quase caiu de novo,  zonzo. Esta reação violenta me levou a refletir sobre o meu temperamento. Mas esse evento foi abafado, não chegando aos ouvidos do diretor. 
     Uma terceira suspensão me levaria a expulsão do internato agrícola. Conto como aconteceu no próximo capítulo. 

J Estanislau Filho

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Das Minhas Lembranças 48

Balsa que faz a travessia do Rio Doce, em Itapina-Imagem: Google


Umbelina Alves da Silva-Dona Bela, minha mãe



Em 1968 foi a minha vez de escapar dos perrengues em que nos encontrávamos.  Meu pai, que saíra de Jampruca às pressas, para Engenheiro Caldas, vivia uma situação financeira complicada.  A solução encontrada foi me enviar para o internato, no Ginásio Agrícola de Colatina-ES, uma escola federal.  Carlos, meu irmão caçula viria me fazer companhia no ano seguinte. 

     1968 foi ano em que o ditador Costa Silva editou e publicou terrível AI-5.  Mas eu não sabia e não tinha a menor ideia do que isso significava. Queria jogar bola, ver televisão, estudar e ler os livros da biblioteca, obviamente sem as publicações contrárias ao regime.  Eu me embarquei na onda de "esse é um país que vai pra frente", "ame-o ou deixe-o", "ninguém segura esse país" e por aí vai, e nas horas dançantes em que dançava o bilisquete.  Era um filhote da ditadura.

Os ditadores Costa e Silva e Médice

     No primeiro ano fui um aluno relativamente exemplar. Estudava, participava do projeto agrícola. Cada aluno ou pequeno grupo de alunos recebia uma área para plantio de hortaliças. Os mais corajosos pegavam áreas maiores e plantavam milho. No primeiro ano plantei quiabo. A colheita foi boa. Tínhamos uma cota. Atingida a cota, a escola nos pagava um valor pelo excedente. Com a grana recebida no primeiro ano, não foi necessário pedir dinheiro ao meu pai, para passar as férias em casa. Teve um ano que passei as férias na escola, para evitar despesas com passagens, sempre de trem, na segunda classe, de Governador Valadares a Itapina, onde desembarcava e pegava uma balsa para atravessar o Rio Doce, e seguir à pé, com a mala nas costas até a escola. Me lembro do saboroso frango assado, com farofa,  preparado  por Dona Bela, minha mãe. Aconteceu umas duas vezes de me desembarcar em Colatina e pegar o ônibus até a escola.  

Ponte sobre o Rio Doce em Colatina-Imagem: Google

     Não sei até que ponto eu fora manipulado pelo Diretor, José Ribeiro, que me levou à condição de líder geral. O Odilon deixara a liderança e a escola,  após se formar. Em 1969 eu fazia discurso inflamado sobre o país, tipo porque me ufano do meu país.  Isso acontecia, geralmente em datas cívicas, no hasteamento da bandeira.  No dia 7 de setembro desfilávamos nas ruas do centro de Colatina, em que eu tocava um tambor, na fanfarra. Nossos trajes eram calça e camisa caqui, talvez para imitar uniforme militar. Mas não fui um líder exemplar, como o diretor queria. O esporte, a literatura e o teatro me atraíam..  Atuei em duas peças, dirigidas pelo professor Filogônio.  Fui elogiado diante de meus colegas de sala, pelo professor de português,  Wallace Pimentel, quando escrevi sobre a ida do homem a lua, em 1969.  Foram três anos bons, livres das dificuldades do lar. Mas teve um ano em que tivemos de passar uns dias em casa: faltou comida na escola. Hoje entendo que  faltou verbas do governo federal. 

     Sim, fui líder geral. Não me lembro se pelo voto. De qualquer forma, tinha a simpatia dos colegas, que me aplaudiam pela versatilidade. Do futebol ao volei; da literatura ao teatro; da fanfara aos discursos; do projeto agrícola às horas dançantes, não fazia feio. Jogava em todas as posições. Era ruim com as meninas. Reprimido e tímido nas questões de amor. Sim, lá também estudavam garotas internas. Tive um amor platônico por Marlete. Aninha, filha do diretor, não era pro meu bico. Parece que o Méier, carioca, dono de uma calça jeans de fazer inveja na galera, conquistou a garota.  A minha turma era formada por Benil, de Mutum, Roberto, de Aimorés, terra de Sebastião Salgado e Reginaldo, de Montanha.  Mas interagia com outros, o Dário, de Sobrália, por exemplo, no primeiro ano, gostava muito de mim. Sempre me pedia pra cantar:

"Vestiu uma camisa listrada
E saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada
Ele bebeu Parati
Levava um canivete no cinto
E um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia
Sossega, Leão, sossega Leão..." 

Tinha o baiano, Valmir,  caladão. O Zé Carlos e Reginaldo  eram de Montanha-ES, onde fomos disputar uma partida de futebol em que perdemos por 5 x 2. Foi quando conheci o mar, em Conceição da Barra. E a bela lagoa de águas diáfanas Juparanã. Teve muita gozação dos capixabas ironizando os mineiros. Diziam, por exemplo, que o Astrogildo e o Vitorino, lá de Mutum, foram de manhã, com toalha e sabonete lavar o rosto nas águas salgadas.
Lago de Juparanã, Linhares-ES. Imagem: Google

     E o líder geral decepcionou o diretor.  Os detalhes, conto no próximo capítulo. 


J Estanislau Filho