domingo, 30 de julho de 2017

DE BECCARIA A FOUCAULT: ASPECTOS POR DETRÁS DA SENTENÇA QUE CONDENA LULA À PRISÃO






Por Nathaly Conceição Munarini Otero*

Analisando a fundamentação da sentença sob a ótica beccariana e foucaultiana da punição, partindo-se das estruturas normativas punitivistas dos séculos passados, sobretudo do século XVI até meados do XVIII, é possível identificar uma pessoalidade muito significativa em relação à decisão do então magistrado Sérgio Moro no processo que condenou Lula à prisão. É sabido que a ânsia por punição em nosso país é uma característica muito presente no sistema penal, sobretudo acerca de casos envolvendo pessoas públicas. A mídia completa este cenário, fomentando a necessidade de ver na prisão todos aqueles que são acusados de algum crime, ainda que tudo indique que sejam inocentes.

Neste sentido, no que tange à imparcialidade do juiz, demonstra-se imprescindível que o mesmo evite manter contato com a mídia a respeito dos temas concernentes nos processos que atua, por assim dizer, seria um acordo de cordialidade com a própria Justiça, muito antes que com as partes no processo envolvidas. Aos magistrados não cabe o direito “[…] de prender discricionariamente os cidadãos, de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos, e, por conseguinte de deixar livres os que eles protegem, mau grado todos os indícios do delito.” (BECCARIA, 2015, p.30)

A sentença proferida pelo magistrado Sérgio Moro, num primeiro momento e como bem alegou à defesa de Luís Inácio Lula da Silva, é tendenciosa. Em sede de inquérito policial, a defesa de maneira muito clara e concisa, apresentou a exceção de suspeição, instituto presente no artigo 95 do Código de Processo Penal, que foi negada, também em fase recursal.

O Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que julgou improcedente o pedido de suspeição, entendeu razoável o envolvimento do juiz frente à operação Lava Jato e que não quebrou a imparcialidade do magistrado a ampla cobertura jornalística nas investigações, manifestações de opinião pública do magistrado (favoráveis ou contrárias), estar em pesquisas eleitorais que não tenha anuído ou ter publicado artigo em revista cientifica a respeito da Operação Mãos Limpas na Itália.

Sob o ponto de vista jurídico, há que se falar numa deficiência argumentativa, pois resta claro que o magistrado, por diversas vezes, discursou sobre a operação em questão, além de pousar para fotos ao lado de adversários políticos do réu Luiz Inácio Lula da Silva, bem como tornou-se uma celebridade, por assim dizer, em nosso país e internacionalmente.

É impossível não questionar o liame entre a imparcialidade de uma autoridade que se submete a tais condutas, à uma intenção pessoal de expor um acusado, no qual trata-se do ex-presidente, em que na mesma proporção possui popularidade e é bem quisto pelo povo, principalmente os mais humildes, que sofrem de uma tremenda impopularidade e ódio na classe média e rica. É impossível não pensar na família e o constrangimento destes. É impossível não lembrar que em meio ao turbulento processo sempre entregue em primeira mão à Globo, a esposa de Lula, dona Marisa Letícia vem a falecer. É inocente pensar que o princípio da imparcialidade do juiz fora respeitado nas linhas de uma sentença judicial baseada em convicções e, nas suas entrelinhas, pautada num intenso clamor social. E é justamente sobre este clamor social o segundo ponto a ser tratado aqui.

Na análise foucaultiana da punição, o clamor do povo, é por si só, muitas e muitas vezes a sentença antecipada de uma conduta supostamente delituosa. Por assim dizer, o povo decide antes se o acusado é culpado ou não. Aliás, o estigma que um acusado carrega, ultrapassa até mesmo uma sentença absolutória, ele é a marca eterna de uma culpa projetada por uma plateia de espectadores que julgam com o juiz. O Brasil e o mundo já sabiam a sentença de Moro, antes mesmo de ser prolatada. Não por estar repleta de provas, mas no cotidiano da vida o próprio juiz deixava escapar seu animus nas capas das revistas, manchetes e jornais, rádios, entrevistas e até como lidava com a fama, mesmo sendo um juiz e, não, um ator Global.

Tratando-se da punição de uma sentença à época de um sistema penal arcaico, o suplício das masmorras do século XVI era uma tortura corporal ao apenado, na qual o sofrimento por este supostamente causado a outrem, era reproduzido em seu corpo, às vistas do público. Nos rituais de suplícios, a presença do povo é requisito imprescindível. Suplício secreto, não é suplício. É preciso envolver o povo, ainda que ele pouco entenda das leis e do crime. “Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado.” (FOUCAULT, 2013, p.56).

Passados os séculos, no presente caso podemos perceber a inquietação jurídica pautada por intenções pessoais de um magistrado parcial, na qual o suplício dá lugar a um julgamento midiático. Da apresentação da denúncia processual feita numa coletiva aberta à mídia, num hotel e com o apoio de um Power-Point ilustrado à sua sentença sendo divulgada à imprensa de forma mais célere que para o advogado da parte mostra que há algo diferente neste julgamento. Quando Lula alega perseguição e parcialidade, há uma enxurrada de argumento de que o mesmo não está acima da lei e que deve ser julgado como qualquer brasileiro, mas da celeridade à forma como o processo é apresentado à sociedade é totalmente diferente dos processos que envolvem quaisquer brasileiros. Quem dera se o judiciário fosse tão célere como os processos que trazem Luiz Inácio Lula da Silva.

Quais às intenções em expor um réu, que apesar dos pesares, tem um amplo apoio popular? Há uma certa obscuridade quando pensamos em como certas conversas grampeadas entre Lula e seus familiares, advogados e companheiros foram divulgadas sem quaisquer respaldos jurídicos, sem falar em uma coação coercitiva assinada por um juiz na qual já havia sido informado que o réu se demonstrava solícito quanto à seus depoimentos.

A mídia utilizada para corromper um processo é o que nos causa maior espanto. A lógica da punição amparada por uma comoção social que é alimentada por inverdades, faz parte do cenário penal há séculos. Junto ao sentenciante terá uma carga elevada de moralidade pública. “Assim que o crime for cometido, e sem perda de tempo, virá a punição, traduzindo em ações o discurso da lei e mostrando que o Código, que liga as ideias, liga também as realidades. A junção imediata no texto, deve sê-lo nos atos.” (FOULCAULT, 2013, p. 106)

Expor um acusado para que seja julgado pelo povo é uma lógica perversa que perpetua há séculos no sistema penal mundial. O interrogatório, é se não, um meio de escrachar o ser humano, muito mais do que obter verdades honrosas assinadas a termo. As audiências televisionadas que envolviam Lula e suas testemunhas, eram também dias de julgamentos em todo o Brasil. Na república que guarda como fundamento a dignidade da pessoa humana é preciso ter redobrado cuidado com o interrogatório. É um meio difícil de se aproximar do conhecimento da verdade “[…] por isso os juízes não devem recorrer a ela sem refletir. Nada é mais equívoco. Há culpados que têm firmeza suficiente para esconder um crime verdadeiro…; e outros, inocentes, a quem a força dos tormentos dez confessar crimes que não eram culpados. (FOULCAULT, 2013, p. 41).

A masmorra moderna corre o risco de se repetir por meio da opinião pública. Conjugada por um só verbo: punir. Sem antes averiguar-se, sem antes ouvir. E ainda que o devido processo legal seja respeitado, a ânsia por condenar é o que movimenta parte dos poderes tomados por vinganças políticas. “O clamor público, a fuga, as confissões particulares, o depoimento de um cúmplice do crime, as ameaças que o acusado pode fazer, seu ódio inveterado ao ofendido, um corpo de delito existente, e outras presunções semelhantes, bastam para permitir a prisão de um cidadão. Tais indícios devem, porém, ser especificados de maneira estável pela lei, e não pelo juiz, cujas sentenças se tornam um atentado à liberdade pública quando não são simplesmente a aplicação particular de uma máxima geral emanada do código de leis.” (BECCARIA, 2015, p.31)

A sentença, desprovida de argumentação sólida e como já falado anteriormente, recheada de convicção, é um documento que empurra mais um ser humano à punição injusta. Indo ao encontro das alegações finais, resta claro que Lula é vítima de uma perseguição política numa “guerra jurídica” ou de “lawfare”, “com apoio de parcela expressiva da mídia, bem como, uma gama de direitos individuais, foram violados, por meio de uma devassa na vida privada dele e de seus familiares.

Em uma das capas da revista Isto é, fora colocado o Juiz Sérgio Moro em posição de adversário, “lutando” contra Lula[1]. Isso demonstra o parágrafo da defesa, de modo que, uma revista amplamente assinada no Brasil, teve total liberdade de colocar um magistrado como opositor de um réu. Para além do baixo comprometimento da mídia com a democracia, o que assusta é um juiz de primeira instância que ao julgar um ex-presidente, sabendo que sua decisão pode interferir drasticamente no cenário político do país, não toma as medidas cabíveis para evitar que sua imagem seja amplamente divulgada para, nitidamente, prejudicar o réu.

Pergunta-se, quando um juiz pode tornar-se parte de um processo? Opinar sobre ele em canais e em redes sociais, palestrar, ainda que indiretamente, sobre uma operação tão complexa? Qual o ponto de conexão entre a parcialidade de uma autoridade, a opinião pública e uma condenação já esperada por boa parte da população?

Na dita sentença, o presente juiz Sérgio Moro guarda parte dela para se defender das imputações da conduta de compactuar diversas vezes com a imprensa: “Em ambiente de liberdade de expressão, cabe à imprensa noticiar livremente os fatos. O sucessivo noticiário negativo em relação a determinados políticos, não somente em relação ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, parece, em regra, ser mais o reflexo do cumprimento pela imprensa do seu dever de noticiar os fatos do que alguma espécie de perseguição política a quem quer que seja. Não há qualquer dúvida de que deve-se tirar a política das páginas policiais, mas isso se resolve tirando o crime da política e não a liberdade da imprensa.” Este é o entendimento dele que contraria a imparcialidade posta na constituição. Como um juiz pode defender uma imprensa em um processo crime tão relevante, na qual um dos réus foi escrachado por esta mesma imprensa?

Reflexões como estas norteiam o sistema punitivista há vários séculos. O julgamento de uma conduta, muitas vezes tem mais a dizer sobre o julgador, do que sobre o julgado. “O poder levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não são as dos juízes da infração.”(FOCAULT, 2013, p.25)

A tríade punitiva amplamente instalada em um processo baseado em convicções, opiniões políticas e perseguições. Não é só um ser humano que perde a oportunidade de um julgamento justo, é a Justiça, que sendo obstruída do seu caminho natural de equidade acima de tudo, é colocada a postos de anseios pessoais e ardilosos.

É na lógica beccariana de Justiça, que fica claro entender um sistema criminal injusto e covarde. A jurisprudência criminal tem afastado da ideia de justiça e aproximado da força e do poder. Como se nela residisse a solução do problema criminal. O suplício é a prisão que detém o acusado. “[…] é porque, finalmente, as forças que defendem externamente o trono e os direitos da nação estão separadas das que mantêm as leis no interior, quando deveriam estar estreitamente unidas. (BECCARIA 2015, p.31).”

Quem perde é a Justiça. E quem ganha?

[1] FERREIRA, Wilson. A construção do super-herói amoral nas capas de “Veja” e “IstoÉ”. Disponível em: Acessado em: 29/07/2017

* da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados.

Artigo publicado originalmente no Brasil 247

Fonte: http://www.ocafezinho.com/2017/07/29/de-beccaria-a-foucault-uma-analise-da-sentenca-de-sergio-moro/






sábado, 29 de julho de 2017

Flor Agreste



Firmeza da pele, unhas bem feitas, cabelos impecáveis, corpos esculpidos...
Há nas falas graciosidade, recato e também uma dose de futilidade.
Passeiam pelos salões e lugares bem frequentados.
São mulheres boas de se ver, não de se saborear...
Quero a mulher!
Aquela que faz eu esquecer o meu nome, meu endereço, que me deixa desatinado.
Quero aquela que tem sagacidade, a louca translúcida.
Envolvente e afiada como uma faca, que fala o que lhe vem a mente, que gargalha alto...
Quero a insubmissa,
a flor agreste, chapada de desejo.
Aquela que me faz perder o rumo com seus beijos.
Que não se enrubece, que não recua diante do meu olhar.
Aquela selvagem, sem domínio, segura de si. 
Quero essa despudorada que se esconde por aí.
Que passeia por qualquer esquina, que encara os revezes da vida,
que não se amofina.
Quero essa mulher em cima de mim,
como onda que se arrebenta na areia.
Quero essa sereia, esse canto blasfemado.
Esse sangue quente, que ferve os meus nervos, que me tira do eixo, salivando feito lobo.
Essa mulher que não se ausenta dos meus pensamentos e não me concede o adormecer em paz.
Minha gota de orvalho sublimado, quero mais! Quero você minha incerteza, que me escapa feito água corrente, 
beleza estuante, não sossego enquanto não estiveres em minhas mãos.
Quero você mulher, 
rainha dos meus sonhos, que me fascina...

Sou seu fiel peregrino em romaria, 
quero estar entre os seus eleitos, me conceda essa honraria.
Prometo cultuá-la noite e dia, até o meu derradeiro fim.






Erika de Almeida. 

17/06/17


Breves palavras sobre a autora

Erika de Almeida (Kika Men), é formada em Letras, estuda Psicanálise.  Amante das artes. 
Adora escrever poesias e pensamentos sobre a vida e seres humanos. "Somos atravessados pela palavra e consequentemente pela linguagem": 

[Linguagem é a sacanagem boa que a boca faz com as palavras. 
Kika Men]

[A poesia é um tecido feito com linhas de palavras e sons, bordado com sentimentos...
Kika Men]

terça-feira, 25 de julho de 2017

A Moça do Violoncelo



Os acontecimentos daquela noite premonitória mudariam completamente os rumos da vida de William Schlesinger. Sua adorável mãe tentou dissuadi-lo enquanto vestia o terno novo e se perfumava. Meu filho, fique em minha companhia, não saia, pressinto algo ruim, disse alisando carinhosamente os cabelos do filho. Ah mamãe, não perderei o espetáculo dessa noite, talvez seja o último! Trata-se David Gilmour in Concert, comprei o ingresso, respondeu sem esconder o enfado. Deixou-a sozinha com lágrimas nos olhos e partiu. A pobre senhora, desde o suicídio do marido, tornara-se uma pessoa amarga, na visão do filho único. Agarrava-se a ele como tábua de salvação.    
       O teatro estava lotado. Como de hábito, Schlesingir encontrava-se na primeira fila, próximo ao palco. Só ia a espetáculos se encontrasse bilhete na primeira fila, no máximo na segunda. Nessa noite sentia-se personagem especial. E de fato seria. Nesse exato momento a mãe chorava de solidão. William ficava irritado com os clamores da mãe. Não foram poucas as vezes em que disse a ela palavras ríspidas:  tenha paciência mãe, me deixe em paz, que merda!

         Tivesse atendido aos seus apelos, não viveria esse inferno hoje...

     David Gilmour iniciou os famosos acordes dissonantes de Shine On You Crazy Diamond, seguidas de Terrapin, Fat Old Sun… Sentiu um arrepio. Mas foi quando a moça do violoncelo entrou, que seu sangue circulou desordenadamente nas veias. Entrou como uma poderosa deusa, vestido longo, cor de vinho tinto com listas negras, negras rubras em forma de arabescos, cabelos ruivos batendo nos quadris, tendo algumas mechas cobrindo ligeiramente seus olhos castanhos claros. Sentou-se consciente de seu poder. Abriu as pernas com elegância suave, levantou o vestido até a altura dos joelhos e encaixou o instrumento entre as pernas...  Nosso personagem não tirava os olhos da moça do violoncelo. Os fantásticos acordes de David pareciam sair de dentro dela. O mundo girava em torno da moça. Seus movimentos concatenados foram se apossando do íntimo de sua alma. Olhar sedutor, cabelos balançando, doces lábios. O desejo de acariciar sua pele o levaria ao delírio.
     Quando os primeiros acordes Je Crois Entendre Encore soaram, seu coração descontrolou-se. E chorou, chorou...  Chorou como criança.
E soluçou. Soluços que sulcaram fundas fendas. Precisava falar com ela. Mais que falar, ouvir. Aproveitou o momento em que ela se dirigia ao camarim, pois a música seguinte não exigia a sua participação, e a seguiu discretamente. Teve sorte ao driblar a vigilância. Ela encontrava-se sentada de frente ao espelho, reparando a maquiagem. Meu Deus, dai-me força! As pernas tremiam; o coração saía pela boca. Ela o olhou de viés, com ar de desdém. Foi como uma facada no peito. Ao se aproximar, ela ergueu o revólver em sua direção. Trêmulo, disse que só queria admirar sua beleza. Ela o obrigou a ficar de joelhos. Depois ordenou que lhe beijasse os pés.  Beijou-os com sofreguidão. Em êxtase. Em seguida puxou-o pelos cabelos e disse saia daqui antes que eu o mate. William não se moveu. Desafiou-a: mate-me se for capaz. De fato preferia morrer, se ela não o ouvisse ao menos. Ela aquiesceu. Eu te amo. A moça deu um riso de escárnio. Imbecil, não sou mulher para o seu bico, disse dando-lhe as costas, após colocar o revólver sobre o birô.  Schlesinger entendeu o gesto como um convite. Alguém bateu à porta com os nós dos dedos e perguntou: está tudo bem? Ela respondeu, tudo bem. Não teve dúvidas, ela também o desejava. Aproximou-se e abraçou-a por de trás. Em seguida conduziu a mão trêmula entre suas coxas macias. Serpenteou os dedos sob a calcinha e tocou o clitóris úmido. Mas foi interrompido, pois a moça do violoncelo precisava retornar ao palco. Após se recompor retirou-se, lançando-lhe um olhar sensual, eu voltarei para te enlouquecer de prazer, disse fechando a porta.
     De Comfortably Numb William Schlesinger só ouvia os acordes do violoncelo enlouquecido. Última canção, que ficaria gravada em seu conturbado sentimento.
     Ela voltou ao camarim e puxou-o pelo braço, conduzindo-o ao seu quarto privativo. William a seguiu como cão fiel. Fique deitado aí, quieto – ordenou-lhe. Em seguida a moça foi tirando peça por peça de seus trajes, sob o olhar indescritível do rapaz. A sua beleza escultural o atordoava. Inteiramente nua, ela apanhou o violoncelo, que se encontrava sobre a cama, ao lado de William. Sentou-se e o encaixou entre as pernas. Suavemente fez um solo de Ne Me Quitte Pas. Ao final, levantou e se vestiu. Schlesinger, depois de ir ao orgasmo, caiu em prantos. Está satisfeito? Agora, retire-se – ordenou. William continuava chorando e dizendo frases, que escapavam ao entendimento da moça do violoncelo. Minha querida mãezinha, o que será de você? Minha vida acaba aqui... Sou seu filhinho querido, mamãe, não a abandonarei... A moça ameaçou: saia imediatamente daqui, maluco, antes que eu chame os seguranças.

     Em seguida um tiro ecoou no recinto. William tirou o revólver que trazia escondido no cós da calça e atirou. A moça tombou sobre o violoncelo e o sangue se espalhou. Depois de alguns minutos os seguranças arrombaram a porta e se depararam com a cena: William Schlesinger, filho único de Margareth Blair dedilhando o violoncelo ensanguentado, ao lado do corpo inerte. O que se seguiu está registrado nas reportagens do tabloide sensacionalista The Sun.    
     William encontra-se na prisão e recebe semanalmente a visita da mãe, mas ele parece não vê-la. Passa o tempo todo com o fone no ouvido, escutando Je Crois Entendre Encore.

J Estanislau Filho




Dois livros em um: duas capas com orelhas em papel laminado. Com 171 páginas.
Editoração eletrônica: Fernando Estanislau - Impresso na Editora O Lutador

Para adquirir o seu exemplar, sem fins lucrativos, faça contato com o autor. E-mail: jestanislaufilho@gmail.com


quarta-feira, 5 de julho de 2017

Brasil não tem alma, não tem caráter, não tem dignidade e não tem um povo



* Aldo Fornazieri

O presidente da República foi flagrado cometendo uma série de crimes e as provas foram transmitidas para todo o país.

Com exceção de um protesto aqui, outro ali, a vida seguiu em sua trágica normalidade.

Em muitos outros países o presidente teria que renunciar imediatamente e, quiçá, estaria preso.

Se resistisse, os palácios estariam cercados por milhares de pessoas e milhões se colocariam nas ruas até a saída de tal criminoso, pois as instituições políticas são sagradas, por expressarem a dignidade e a moralidade nacional.

Aqui não.

No Brasil tudo é possível.

Grupos criminosos podem usar as instituições do poder ao seu bel prazer.

Afinal de contas, no Brasil nunca tivemos república.

Até mesmo a oposição, que ontem foi apeada do governo, dá de ombros e muitos chegam a suspeitar que a denúncia contra Temer é um golpe dentro do golpe.

Que existem vários interesses em jogo na denúncia, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe.

Mas daí adotar posturas passivas em face da existência de uma quadrilha no comando do país significa pouco se importar com os destinos do Brasil e de seu povo, priorizando mais o cálculo político de partidos e grupos particulares.

O Brasil tem uma unidade política e territorial, mas não tem alma, não tem caráter, não tem dignidade e não tem um povo.

Somos uma soma de partes desconexas.

A unidade política e territorial foi alcançada às custas da violência dos poderosos, dos colonizadores, dos bandeirantes, dos escravocratas do Império, dos coronéis da Primeira República, dos industriais que amalgamaram as paredes de suas empresas com o suor e o sangue dos trabalhadores, com a miséria e a degradação servil dos lavradores pobres.

Índios foram massacrados; escravos foram mortos e açoitados; a dissidência foi dizimada; as lutas sociais foram tratadas com baionetas, cassetetes e balas.

A nossa alma, a alma brasileira, foi ganhando duas texturas: submissão e indiferença.

Não temos valores, não temos vínculos societários, não temos costumes que amalgamam o nosso caráter e somos o povo, dentre todas as Américas, que tem o menor índice de confiabilidade interpessoal, como mostram várias pesquisas.

Na trágica normalidade da nossa história não nos revoltamos contra o nosso dominador colonial.

Ele nos concedeu a Independência como obra de sua graça.

Não fizemos uma guerra civil contra os escravocratas e não fizemos uma revolução republicana.

A dor e os cadáveres foram se amontoando ao longo dos tempos e o verde de nossas florestas foi se tingindo com sangue dos mais fracos, dos deserdados.

Hoje mesmo, não nos indignamos com as 60 mil mortes violentas anuais ou com as 50 mil vítimas fatais no trânsito e os mais de 200 mil feridos graves.

Não nos importamos com as mortes dos jovens pobres e negros das periferias e com a assustadora violência contra as mulheres.

Tudo é normal, tragicamente normal.

Quando nós, os debaixo, chegamos ao poder, sentamos à mesa dos nossos inimigos, brindamos, comemoramos e libamos com eles e, no nosso deslumbramento, acreditamos que estamos definitivamente aceitos na Casa Grande dos palácios.

Só nos damos conta do nosso vergonhoso engano no dia em que os nossos inimigos nos apunhalam pelas costas e nos jogam dos palácios.

Nunca fomos uma democracia racial e, no fundo, nunca fomos democracia nenhuma, pois sempre nos faltou o critério irredutível da igualdade e da sociedade justa para que pudéssemos ostentar o título de democracia.

Nos contentamos com os surtos de crescimento econômico e com as migalhas das parcas reduções das desigualdades e estufamos o peito para dizer que alcançamos a redenção ou que estamos no caminho dela.

No governo, entregamos bilhões de reais aos campeões nacionais sem perceber que são velhacos, que embolsam o dinheiro e que são os primeiros a dar as costas ao Brasil e ao seu povo.

No Brasil, a mobilidade social é exígua, as estratificações sociais são abissais e não somos capazes de transformar essas diferenças em lutas radicais, em insurreições, em revoltas.

Preferimos sentar à mesa dos nossos inimigos e negociar com eles, de forma subalterna.

Aceitamos os pactos dos privilégios dos de cima e, em nome da tese imoral de que os fins justificam os meios, nos corrompemos como todos e aceitamos o assalto sistemático do capital aos recursos públicos, aos orçamentos, aos fundos públicos, aos recursos subsidiados e, ainda, aliviamos os ricos e penalizamos os pobres em termos tributários.

Quando percebemos os nossos enganos, nos indignamos mais com palavras jogadas ao vento do que com atitudes e lutas.

Boa parte das nossas lutas não passam de piqueniques cívicos nas avenidas das grandes cidades.

E, em nome de tudo isto, das auto-justificativas para os nossos enganos, sentimos um alívio na consciência, rejeitamos os sentimentos de culpa, mas não somos capazes de perceber que não temos alma, não temos caráter, não temos moral e não temos coragem.

Da mesma forma que aceitamos as chacinas, os massacres nos presídios, a violência policial nos morros e nas favelas, aceitamos passivamente a destruição da educação, da saúde, da ciência e da pesquisa. Aceitamos que o povo seja uma massa ignara e sem cultura, sem civilidade e sem civilização.

Continuamos sendo um povo abastardado, somos filhos de negras e índias engravidadas pela violência dos invasores, das elites, do capital, das classes políticas que fracassaram em conduzir este país a um patamar de dignidade para seu povo.

Aceitamos a destruição das nossas florestas e da nosso biodiversidade, o envenenamento das nossas águas e das nossas terras porque temos a mesma alma dominada pela cobiça de nos sentirmos bem quando estamos sentados à mesa dos senhores e porque queremos alcançar o fruto sem plantar a árvore.

Se algum lampejo de consciência, de alma ou de caráter nacional existe, isto é coisa restrita à vida intelectual, não do povo.

O povo não tem nenhuma referência significativa em nossa história, em algum herói brasileiro, em algum pai-fundador, em alguma proclamação de independência ou república, em algum texto constitucional, em algum líder exemplar.

Somos governados pela submissão e pela indiferença.

Não somos capazes de olhar à nossa volta e de perceber as nossas tragédias.

Nos condoemos com as tragédias do além-mar, mas não com as nossas.

Não temos a dignidade dos sentimentos humanos da solidariedade, da piedade, da compaixão.

Não somos capazes de nos indignar e não seremos capazes de gerar revoltas, insurreições, mesmo que pacíficas.

Mesmo que pacíficas, mas com força suficiente para mudar os rumos do nosso país.

Se não nos indignarmos e não gerarmos atitudes fortes, não teremos uma comunidade de destino, não teremos uma alma com um povo, não geraremos um futuro digno e a história nos verá como gerações de incapazes, de indiferentes e de pessoas que não se preocuparam em imprimir um conteúdo significativo na sua passagem pela vida na Terra.

*Aldo Fornazieri é Professor da Escola de Sociologia e Política