terça-feira, 30 de junho de 2015

Um Dinossauro em Minha Vida







     Meti tudo que necessitava dentro da caminhonete: comida e água; barraca e saco de dormir; anzois, espingarda e munições entre outros artigos necessários, para viver um ano, conforme prometera ao ambientalista Jacinto Flores, no interior da floresta amazônica. Não esqueci de levar algumas garrafas de vinho e cachaça de Minas. Com a cara e a coragem, dei adeus à selva de pedra, sob a orientação da médica cubana Saylly, que me aplicou algumas vacinas contra doenças tropicais. Dias de aventuras desafiadoras me aguardavam. Cinco meses depois de instalado próximo às margens do Solimões, ouvi um uns pisados fortes e o agito de folhas aproximando-se  da barraca. Ergui, com a espingarda em punho. Um dinossauro se aproximou. Eles não foram extintos, conforme se dizia. Apontei a espingarda e ele sorriu. Ao abaixar a arma o animal, com mais de três metros de altura, por três de comprimento me lambeu o rosto com sua língua enorme e áspera. Fui ao chão. Então ele se abaixou, e maneou a cabeça, mostrando o lombo, para eu montar. Dei-lhe o nome de Jacinto, em homenagem ao meu amigo ambientalista. Fiz passeios maravilhosos montado em seu dorso.
     Só percebi o problema em que tinha me metido ao retornar à selva de pedra, um ano depois da estadia na floresta de matas: Jacinto queria porque queria vir comigo.  O que fazer? Deixei a caminhonete na floresta e pulei em seu dorso, rumo à cidade.
     Tive de reformar o apartamento, para que Jacinto vivesse confortavelmente. Tive ainda de enfrentar a fúria dos condôminos. A dificuldade maior foi alimentá-lo cotidianamente com uma tonelada de folhas. Outro problema era na hora de sairmos do apartamento, para o passeio diário. Por fim, tivemos de mudarmos para um pequeno sítio, pois os moradores impetraram uma ação na justiça, que me obrigou a retirar Jacinto do apartamento.


J Estanislau Filho







Os primeiros fósseis de dinossauros encontrados no Brasil datam de 1897.[carece de fontes] Trata-se de pegadas fossilizadas descobertas na localidade de Passagem das Pedras, próximo ao município de Sousa (PB), pelo agricultor Anísio Fausto da Silva,[carece de fontes] que acreditava tratarem-se de rastros de boi e ema.

Fonte: Wikipédia

sábado, 27 de junho de 2015

Raio em Céu Azul



na cabeça do homem na cabeça da vaca
na cabeça de quem quer que seja
seja deus seja santo
seja eu sejam tantos
quantas flores quantas dores
quantas guerras quanta era de aquário...
quanto luto quanta luta
"quantas barricadas por seis sardinhas infelizes" (Jacques Prévert)

quanto salto quanto assalto no escuro
quanta procura do "obscuro objeto do desejo" (Filme de Luis Buñel)
quanta cópula quanta cúpula
quanta coisa esdrúxula
: mariposas cheias de tetas
ideias cheias de mutretas
: "tiranos fazendo planos para dez mil anos" (Bertolt Brecht)

de que me vale de que me serve
este nexo este sexo este plexo
este complexo de édipo quando
"elétrons deificam uma gilete em macroescala" (T.S. Eliot)
minha mãe santa criatura
hermética partitura
nesse meu inconsciente do inconsciente coletivo vendo
"minha cabeça servida numa travessa" (T.S. Eliot)

que me vale que me valha
"duas mãos e o sentimento do mundo" (Carlos Drummond de Andrade)
"o dono da tabacaria" (Fernando Pessoa)
procissão romaria
"é de sonho e de pó o destino de um só" (Renato Teixeira)
se tenho uma faca na garganta
uma molécula uma tarântula e
"quem, se eu gritasse, entre as legiões dos anjos me ouviria?" (Rilke)

mesmo que ouvisse de que adiantaria?
"tem piedade, Satã, desta longa miséria" (Baudelaire)
nem anjos nem demônios
arcanjos querubins
"Allons! seja você
quem for, venha comigo viajar" (Walt Whitman)
"sem medo de ser feliz" (Hilton Accioli)
neste tom neste som
fornalha em meus ouvidos...

este caco este saco este asco
este corte esta morte
este amor inconcebível
: "troço de louco,
corações trocando rosas
e socos" (Paulo Leminsk)

mas a gente grita a gente corre
"atrás da mesma alegria fatal" (Konstantinos Kaváfis)


...J Estanislau Filho



Poema escrito em 01/de abril de 1990 (Do meu livro O Comedor de Livros-1991)



quinta-feira, 18 de junho de 2015

O Abutre




Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava- me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.

– É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.

– Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Basta um tiro e pronto!

– Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?

– Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?

– Não sei lhe dizer. – respondi.

Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:

– De qualquer modo, vá, peço-lhe.

– Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível.

O abutre escutara tranqüilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.


Franz Kafka

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Existem Homens



Existem homens
corajosos destemidos
que cantam e sonham
transformam o minério em aço
e têm nos olhos a lágrima
nos lábios o sorriso.

Existem homens que lutam
e superam a dor
enfrentam obstáculos
não se entregam não recuam
espantam o medo não traem
não delatam.

Existem homens que parecem
não são deste mundo
sob a cruz
coroa de espinhos
ou diante do fuzil
lançam os olhos às estrelas.

Existem homens
que fazem
exatamente
o oposto.


J Estanislau Filho

Do livro Todos os Dias são Úteis - página 56 - Edição do Autor - 2009

Imagem: Trabalhador Rural, esculpida em madeira pelo artesão Manuel - Araçuaí - MG

quinta-feira, 4 de junho de 2015

O Artista de Jogos Malabares



     Os circos mambembes não suportaram o avanço tecnológico e arriaram as lonas, sucumbiram-se.
     O Circo Africano tinha as lonas rotas, mas encantava as crianças da periferia. Muitos adultos, também. "Respeitável público...". Com esta frase famosa, o apresentador - em geral o dono do circo - de fraque, cartola e gravata-borboleta abria o espetáculo. Era de partir o coração vê-los em suas indumentárias puídas.
     A roupa do palhaço era cheia de buracos, mas quanto ao palhaço, vá lá, ele está no picadeiro para fazer graça, ser alvo de chacotas para o respeitável público extravasar sentimentos estancados.
     Quanto aos trapezistas, contorcionistas, as belas bailarinas - profissionais atentos -, precisam se apresentar com a dignidade que a arte necessita.
     O mágico, coitado, tinha uma cartola que estragava a surpresa da mágica, para o delírio da garotada: ela tinha um enorme furo, que deixava à mostra o rabo do raquítico coelho, na parte escondida da cartola.
     O malabarista desastrado, sempre deixava cair uma peça e recomeçava tudo naturalmente, sob vaias tímidas.
     Confesso que, muitas vezes, assistia aos espetáculos com os olhos marejados. Ia mais por solidariedade a esta gente simples, que lutava para sobreviver através de sua arte, e para propiciar a fuzarca de umas crianças sem oportunidades de diversão. Como recompensa eu via seus olhinhos brilharem.
     O circo era generoso, reservava um dia em que liberava a bilheteria. Praticava a inclusão social muito antes de ela se tornar políticas públicas. Assim era o Circo Africano, cujo único africano, mesmo assim, de providência duvidosa, era um macaco com aparência de cansado daquela vida, louco para voltar ao sossego de seu espaço.
     Meus filhos adoravam e até pediram para serem fotografados em um caloroso abraço ao Idi Amin. Adoravam, principalmente as pipocas e os algodões-doces. Ficavam paralisados diante das mágicas, assustavam-se, cobrindo os olhos, com medo dos trapezistas caírem, pulavam na arquibancada de tábuas carcomidas pelos cupins, deixando-me tenso com a possibilidade de tudo vir a baixo, quando o palhaço fazia suas palhaçadas e tropeçava nos obstáculos colocados por um garotinho de olhos de azeitonas pretas. O palhaço se esborrachava no picadeiro e o garotinho pulava, aplaudindo, a fim de estimular o público. Nestas horas eu ria de dar nó nas tripas.
     O Circo Africano, já combalido, foi nocauteado e beijou a lona, para nunca mais se levantar. A juventude está ligada é na internet, nas redes sociais, na virtualidade. Não há mais lugar para os circos mambembes e seus ingênuos espetáculos. Foi então, que numa tarde cinzenta, de trânsito infernal, comecei a compreender para onde os artistas destes circos migraram.
     Estava cansado, depois de um dia de muito trabalho, cujo objetivo meus sentidos não captavam, querendo voltar depressa ao refúgio do lar, tomar uma ducha e refestelar-me no sofá, quando o semáforo amarelou. Tive de frear o veículo bruscamente, para escapar da câmera filmadora e não contribuir com o erário municipal, esta instituição sedenta de recursos, muitas vezes destinados a projetos obscuros. Lembrei do dito popular: "A pressa é inimiga da perfeição". Sou um defensor ardoroso da sabedoria popular a nos ensinar que a beleza está nas coisas simples; que o segredo da boa saúde está em não se estressar: Vamos devagar com o andor, que o santo é de barro. O hermetismo é elitista, assim como a pressa, esta mania que a tal modernidade quer impor, faz uma cortina de fumaça em torno de interesses de poucos, no afã de acumular capital.
     Ainda bem que não aboliram o vermelho a nos lembrar de parar. Não fosse ele eu teria perdido um esplêndido espetáculo, que me remeteu aos bons tempos do Circo Africano: um jovem, nu da cintura para cima, de pele da cor das jabuticabas maduras, com uma calça de moletom vermelha, colada ao seu corpo atlético, com um gorro vermelho de cauda com bolinhas brancas na ponta e que balançavam com seus movimentos coordenados, realizou um número de malabarismo esplêndido nos poucos minutos de semáforo vermelho, para os afobados motoristas. Após a breve apresentação, fez o tradicional gesto de agradecimento, curvando a cabeça, como se aguardasse os aplausos. Em seguida dirigiu-se aos motoristas e passageiros, para recolher as parcas moedas, que nem todos se dispuseram a entregar-lhe.
     Meus olhos encheram-se de lágrimas, quando o reconheci do Circo Africano. Ele era a criança que infernizava a vida do palhaço, colocando os obstáculos, que o levava a engraçadas quedas. Dei-lhe uma polpuda gorjeta. Quando o sinal abriu, ainda tive tempo de vê-lo me olhando e aplaudindo, com sorriso largo, deixando à mostra os dentes de brilho desmesurados, reverberando nos últimos raios de sol.


J Estanislau Filho-crônica do livro Filhos da Terra-paginas 121/122/123-Edição do Autor-2009

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Rumores



faca de dois gumes
quando cega
não corta legumes

cuidado minha nega
se o efeito te pega
a cabeça dança
os olhos balançam
: menina

o vaso que se quebra
no limiar da janela
sob o lumiar da vela
incendeia a cortina

na estrada o estrondo
dilacera talebãs
debaixo dos escombros
do edifício incongruente
dormem vilões e inocentes

mundo nas mãos
mudos corações
refletem anseios desconexos
conectando semblantes perplexos

peregrino persegue prossegue
em seu fundamentalismo banal
o neoliberalismo consegue
impor seu fundamentalismo fatal

afagar afegões e afegãs 
com missas massas e mísseis

tênues lágrimas incendiárias
internam-se em fundas fendas
ferindo feras centenárias

trilhando trilhas herméticas
encarquilhados trapos visionários
talham desenhos antagônicos
revelando suas metas fanáticas

agitadas mãos sobre a tela
traçam riscos histéricos

a caneta rompe o papel
outrora tronco outrora vegetal
num cálculo matemático.



Poema do meu livro Todos os Dias são Úteis - pagina 59/60 - primeira edição - esgotado.