sábado, 30 de setembro de 2023

Arrogância e uma breve autobiografia


imagem: Estado de Minas


João Batista é o pai e a mãe da paciência. Pouca gente entende como ele consegue manter a amizade com Pedro, um cidadão pra lá de arrogante. Pedro é o dono da verdade, pra qualquer assunto, sempre tem razão. Não admite ser contrariado. Fala com o nariz empinado sobre qualquer assunto. Tem respostas prontas sobre a vida e a morte. 

     Certo dia, Batista resolveu reagir, com seu jeito manso. Lascou na cara de Pedro, que ele era arrogante. Pra quê? Recebeu de volta uma enxurrada de ofensas. Você é que é arrogante, João, com essa falsa humildade. Eu digo o que penso, na lata. Você fica dando voltas, gaguejando, não tem opinião própria.  Sua paciência é só de fachada, como para dizer, olha como sou humilde. Sabia que a humildade não passa de uma estratégia arrogante?  Mas peraí, Pedro, retrucou João, que não teve tempo de completar o pensamento, peraí que nada, você me ofende e diz peraí?  Quer saber quantas vezes você me ofendeu? Lembra aquele dia em que te disse pra me fazer o favor, eu pedi por favor, de fechar a porta do carro devagar e o que você fez? Bateu a porta com violência! Que é isso agora, Pedro? João tentou retrucar, mas Pedro continuou, e quando te pedi pra limpar os pés, antes de entrar em meu escritório, você chagava da rua, não ouviu o meu pedido, entrou e sujou o tapete, fiquei calado e ainda te servi um cafezinho com biscoitos. Você é ingrato, João Batista, vem me chamar de arrogante assim, na maior cara dura, você devia era me agradecer por ter te levado a UPA,  as vezes em que paguei, sozinho,  as conta de bar. Não só pra você, mas pra turma toda. E quando....

     João Batista não teve tempo de esboçar qualquer reação. Pedro tinha sempre razão. 


Autobiografia






Sou J Estanislau Filho, mineiro de São João do Oriente. Vivi a minha infância e parte da adolescência entre os vales do Rio Doce e Mucuri, em Jampruca, próximo de Governador Valadares e Teófilo Otoni. Meu nome de registro é José Estanislau Filho, filho de José Estanislau e Umbelina Alves da Silva, trabalhadores rurais. Pai de Roberto e Fernando, avô de Raul. Em uma união estável com Antonia Castro. Escrevo em meu blog, no Recanto das Letras, Facebook e em outras mídias sociais.  Editei e publiquei os seguintes livros:

Nas Águas do Arrudas - poesias (1984)
Três Estações - poesias (1987)
O Comedor de Livros -poesias (1991)
Crônicas do Cotidiano Popular - crônicas (2006)
Filhos da Terra - crônicas (2009)
Todos os Dias são Úteis - poesias (2009)
Palavras de Amor - poesias (2011)
Crônicas do Amor Virtual - crônicas   (2012)
A Moça do Violoncelo - contos (2015)
Estrelas - poesias (2015)
Prova de Vida - crônicas (2021)










sexta-feira, 29 de setembro de 2023

A Dentadura e o Amor




Imagem: Google


As coisas são assim, temos que aceitá-las
mesmo se pescarmos sem querer
um pequenos resfriado
Que diálogo de beijos


poderia mudar a dentadura
diante do amor que arde
Ponto final, é verdade
se alguém logo empresta a sua
Os dentistas vão fechar
suas clínicas com este anúncio
“Aluga-se dentaduras de burro”


Hugo Mayo, Equador-1895-1988


Hugo Mayo: imagem Google



domingo, 24 de setembro de 2023

Você Ouve Isso?


Imagem: Google


Você ouve isso?
O Chile privatiza o mar.
Me pergunto: como se vende o mar?
Por quilo? Por galão?
Quem não quer um pedacinho de mar?
Viver em uma anêmona, com um jardim de coral, algas nas janelas,
e ocasionalmente confiar o correio a uma água-viva.
Passará pela rua um cardume de atum,
uma multidão de ostras com pérolas contrabandeadas.


Quem não quer um pedacinho de mar?
Veja que sua mãe já comprou um traje de mergulho para nos visitar.
Veja que atravessar fronteiras terrestres é complicado:
é preciso tirar um visto, comprar uma passagem, viajar de trem…
Porque eu acredito que você e eu merecemos ter um pedacinho de mar
onde não podemos chorar,
onde não nos falta sal para cozinhar.


Anos depois, olharemos o calendário
e teremos medo de pagar o aluguel marítimo a cada mês,
de que nossos filhos, na escola, não aprendam a evitar anzóis corretamente.
Sua mãe virá uma vez por mês, é claro, por isso ela comprou o traje de mergulho.
—Lembra dos pássaros?, ela me dirá com um sotaque estrangeiro terrestre.
Eu balançarei minha cauda de peixe envergonhado e compararei:
—Ah, sim. Eles se parecem com as águas-vivas do correio.


Krisma Mancía ( El Salvador)


Imagem: Google


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Coleta Seletiva em Cruz das Almas/BA



Imagem: G1

Sacolas plásticas, garrafas pets, papel, papelão, vidros, isopor, sobras de alimento e de material de construção são encontrados, parados ou voando   pelas ruas de Cruz das Almas, o que demonstra a necessidade de implantação de uma coleta e destinação correta dos resíduos.








imagens: Jefil

UMA CIDADE LIMPA  É MAIS BONITA


Todas e todos, certamente queremos uma cidade mais bonita, com ruas e praças limpas.  Para que isso aconteça, a prefeitura precisa tomar a iniciativa, com vistas a implantação da COLETA SELETIVA DO LIXO.  Um passo a frente e já não estaremos no mesmo lugar.


EDUCAÇÃO AMBIENTAL, O PRIMEIRO PASSO


Mobilizar e conscientizar a população sobre a importância de sua participação nesse processo. Consumidores, comerciantes, condomínios, comunidade escolar e religiosas, catadores de materiais recicláveis,  unidos por uma cidade limpa. 


QUEM SABE FAZ A HORA


Que tal começarmos a separar papéis, papelões, vidros, plásticos, isopor, pets,  (lixo seco)  das sobras de alimento, de papéis higiênicos e fraldas  usadas (lixo úmido)! 


Imagem: Google


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

 (Florbela Espanca)


Imagem: G1


Eu tenho pena da Lua!
Tanta pena, coitadinha,
Quando tão branca, na rua
A vejo chorar sozinha!…


As rosas nas alamedas,
E os lilases cor da neve
Confidenciam de leve
E lembram arfar de sedas


Só a triste, coitadinha…
Tão triste na minha rua
Lá anda a chorar sozinha…


Eu chego então à janela:
E fico a olhar para a lua…
E fico a chorar com ela!…


Imagem: Google



domingo, 17 de setembro de 2023

Venha ver o pôr-do-sol




Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.

― Minha querida Raquel. Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

― Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.

Ele riu entre malicioso e ingênuo.

― Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra? Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? ― perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. ― Hein?!

Ah, Raquel... ― e ele tomou-a pelo braço. Você, está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?

Podia ter escolhido um outro lugar, não? ― Abrandara a voz. ― E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

― Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo acrescentou apontando as crianças na sua ciranda.

Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.

― Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura.

― Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.

Ela encarou-o um instante. Envergou a cabeça para trás numa risada.

― Ver o pôr-do-sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

― Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...

― E você acha que eu iria?

― Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... ― disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. ― Você fez bem em vir.

― Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

― Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

― Mas eu pago.

― Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

― Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

― Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado ― prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. - Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

― É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros. Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados.

― É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente ― exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. ―Vamos embora, Ricardo, chega.

― Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambiguidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.

― Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

― Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

― É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais. ― Ele é tão rico assim?

― Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

― Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

― Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como aguentei tanto, imagine, um ano!

― É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?

― Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades ― leu em voz baixa. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

― Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja ― disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda ―, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

― Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim.

Deu-lhe um rápido beijo na face.

― Chega, Ricardo, quero ir embora.

― Mais alguns passos...

― Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! ― Olhou para trás. ― Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

― A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio ― lamentou ele, impelindo-a para a frente. ― Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

― Sua prima também?

― Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza-dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

―Vocês se amaram?

― Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. ― Enfim, não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.

― Eu gostei de você, Ricardo.

― E eu te amei.. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

― Esfriou, não? Vamos embora.

― Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a ca tacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

― Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.

― Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

― E lá embaixo?

― Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó ― murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. ― A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

― Todas essas gavetas estão cheias?

― Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe ― prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

― Vamos, Ricardo, vamos.

― Você está com medo.

― Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.

― A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... ― Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. ― Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

― Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando!

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

― Pegue, dá para ver muito bem... ― Afastou-se para o lado. ― Repare nos olhos. Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça...

Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.

― Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... ― Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. ― Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos ! Seu menti...

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso – meio inocente, meio malicioso.

― Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! ― exclamou ela, subindo rapidamente a escada. ― Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

― Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! ― ordenou, torcendo o trinco. ― Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

― Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola.

― Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! ― Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. ― Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

― Boa noite, Raquel...

― Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... ― gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. ― Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! ― exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. ― Não, não...

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando, as duas folhas escancaradas.

― Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

― Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

― NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.


Lygia Fagundes Telles





sexta-feira, 15 de setembro de 2023

CAVALOS





1


Para o lugar mais íntimo do homem
chegam os cavalos,
ali onde tudo é virgem e diferente.


Embora se diga que a noite
      é o momento certo
para que cheguem
é necessário apenas que o homem
       afogue suas penumbras
e esteja pronto para descansar.


Alguém poderia confundi-los
com a causa de tanto pesadelo.
Mas quem viu
       aqueles que dormem em paz
garantem que um cavalo
é o portador das origens mais nobres.



2


Imaginar um cavalo
é como imaginar a Deus.


Deus é a folha
                  que cai devagar
                                           sobre a água
como a própria água recebendo a folha
com toda mansidão.
Mas Deus não é a folha
                                     a plenitude da água.
Pelo contrário, é instinto:
a suavidade da queda,
a mansidão do acolhimento.


3


Aparecem de repente diante dos olhos
De quem já olha com calma
a luz começa a se mover como um pássaro
cujo ninho foi arrebatado
o pássaro mal move as asas
e não é pássaro, mas tigre
perseguindo silhuetas deliciosas
salta o tigre e não é senão uma menina
detida na beleza de suas carnes
e a menina será menina por segundos
e o casal casal por segundos
e a cidade por segundos…
até que de repente
como se alguém acendesse as luzes
      de um cinema
aquele que olhava com calma
começa a ver uma clareza embaçada.


4


Uma sombra esperando a cada momento.
Em seu verde ergue-se a pira
onde queimam as fundações. 
Do azul é feita a máscara
com que a besta engana os guardiões do sonho.


Em cada momento uma sombra à espera
de que a luz abandone seu hábito
de iluminar os agradáveis corredores.



5


Então o homem não descansa.
Confundiu a luz com a clareza,
o repouso com o simples ato de fechar os olhos,
a paz com a passagem silenciosa da besta
que espreita seu descuido.

 

Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils


Israel Domínguez nasceu em Placetas, Villa Clara, Cuba, em 1973. Atualmente vive em La Habana. É poeta e tradutor literário. Licenciado em Língua Inglesa. Membro da UNEAC (Unión de Artistas y Escritores de Cuba). Recebeu vários prêmios, entre eles o Calendario (1999), José Jacinto Milanés (2000), Dador (2005), La Puerta de Papel (2012, 2015) e o Premio de Poesía La Gaceta de Cuba (2016). Publicou os livros de poemas Como si la muerte hubiera sidounsueño (Ediciones Vigía, 1998), Poemas tempranos(Ediciones Aldabón, 1999), Invitaciones (Ediciones Vigía, 1999), Hojas de Cal(Ediciones Abril, 2001), Collage mientras avanza mi carrode equipaje(Ediciones Vigía, 2002), Sobre un fondo de arena(Colección Sur, 2004), Después de acompañar a William Jones(Letras Cubanas, 2007), Del ciruelo y otras observaciones (Ediciones Vigía, 2009), Viaje de regreso (Ediciones Matanzas, 2011), Los mares profundos (Ediciones La Luz, 2011), En dirección contraria (Ediciones Aldabón, 2014) e Return Trip (The Operating System, 2017). Seus poemas aparecem em antologias e revistas nacionais e internacionais. Colaborou com revisões e traduções em diferentes publicações. Traduziu para o espanhol a coletânea de poemas Del pequeño Charlie Lindbergh y otros poemas, de Margaret Randall, publicada pelas Ediciones Matanzas. Participou da expedição poética La Estrella de Cuba. Foi convidado para a Feria Internacional del Libro de Venezuela (2008, 2010). Participou do Festival Internacional de Poesía de Medellín e da Feria Internacional del Libro de Antofagasta (2016). Foi editor das Ediciones Aldabón.


Fonte: https://revistaacrobata.com.br/florianomartin/atlas-lirico-da-america-hispanica/3-poemas-de-israel-dominguez-cuba-1973/


sexta-feira, 8 de setembro de 2023

O Gato Preto


Imagem: Google

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e instruíram.

No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror _ mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum _ uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto _ assim se chamava o gato _ era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento _ enrubesço ao confessá-lo _ sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim _ que outro mal pode se comparar ao álcool? _ e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão _ dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti- lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado _ um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de “fogo!”. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo _ coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras “estranho!”, “singular!”, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei- me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando- o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme _ tão grande quanto Pluto _ e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo _ e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse _ detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando- se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por quê _ seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos – muito gradativamente _ , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava- se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo _ apresso-me a confessá-lo _ , pelo pavor extremo que o animal me despertava.

Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar _ sim, mesmo nesta cela de criminoso _ , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível _ que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa _, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável _ um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído… uma besta- fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso _ encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim _ pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros _ os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade _ e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.

Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão”.

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite _ e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia _ e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram- me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.

_ Senhores _ disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada _ , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída… (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes _ os senhores já se vão? _ , estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!


Edgar Allan Poe

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Um Lençol de Palavras




As palavras saíram de minha boca e caíram sobre o lençol.
Dobrei-o cuidadosamente, para que elas não se ferissem nem se perdessem.
Guardei o lençol na gaveta perfumada.
Em sonho as vejo saindo uma a uma da clausura da gaveta,
Formando frases luminosas no quarto escuro,
Embalando meu sono.


Imagem: Google
J Estanislau Filho

domingo, 3 de setembro de 2023

Justificativas linguístico-filosóficas para o emprego do termo bolsonarismo





Por Jair de Souza*


Muita gente tem reclamado do uso do termo “bolsonarismo” para fazer referência à corrente política de extrema direita que começou a ganhar destaque em nosso país a partir de meados da década passada.

O que se costuma alegar para justificar tal contrariedade é, fundamentalmente, o fato de que a pessoa de cujo nome o termo se deriva não contaria com a envergadura requerida para ser reconhecido como o idealizador de uma corrente de pensamento político.

De acordo com quem levanta esta objeção, não é justo que um sujeito tão inculto, tosco, falto de caráter e desprovido de qualquer brilhantismo intelectual venha a gozar de uma importância tão significativa a ponto de ter seu próprio nome servindo como base para a designação de uma linha de visão política, seja ela de que orientação for.

É inegável que, se os critérios a respeitar nesta questão forem realmente os mencionados no parágrafo anterior, seríamos forçados a reconhecer que os que levantam essa objeção estão cobertos de razão.

Não há dúvidas de que o ex-capitão que é visto como a Alma Mater do bolsonarismo pode ser considerado um dos políticos mais abjetos de que se tem notícia no cenário político brasileiro desde tempos imemoriais. Afora a circunstância de ter sido eternamente arredio ao trabalho, ele jamais se envolveu em nenhuma atividade que não fosse exclusivamente em seu próprio benefício.

Além do mais, sua cultura e sua capacidade intelectual nunca foram seus pontos fortes, muito pelo contrário.

Em vista do que expusemos até o momento, não deveríamos evitar recorrer a essa designação daqui para frente?

Não está mais do que evidente que alguém com qualificações tão escabrosas não é merecedor de ser fonte para a nomeação de nenhuma força atuante no jogo social?

Bem, embora eu tenha ciência de que vou frustrar as expectativas de várias pessoas, quero deixar bem claro que sou favorável a que não apenas continuemos a empregar a expressão, senão que passemos a utilizá-la com muito mais frequência.

As justificativas para este meu posicionamento é o que vou me esforçar por explicar nas seguintes linhas.

Em primeiro lugar, precisamos entender que, neste caso específico, esta expressão não tem o objetivo de louvar aquele de quem ela etimologicamente se derivou, e sim o de desmascarar a todos os que engendraram a monstruosidade e depravação que ela carrega consigo.

Em outras palavras, ao escrevê-la ou proferi-la oralmente e vinculá-la com certas pessoas ou grupos, nossa intenção é revelar toda a podridão que caracteriza aos que com ela estão associados.

De modo nenhum almejamos equiparar um energúmeno a um filósofo gestador de uma nova maneira de sentir e refletir o mundo em que estamos inseridos, ou seja, devemos considerar sua aplicação como uma severa punição daqueles que são, em realidade, os responsáveis pela existência de todas as mazelas que o termo simboliza e transmite.

A bem da verdade, ele é o fruto mais completo de toda a sordidez comportamental e de caráter que vem marcando nossas classes dominantes desde os primórdios de nossa constituição como sociedade.

Portanto, mesmo sem ser criador de nada, sua figura reflete todas as aberrações cultivadas e praticadas pelos setores que sempre agiram como senhores absolutos de tudo e de todos.

À continuação, vamos tentar expor e elucidar as principais características do bolsonarismo.

Em sua base, está um furibundo ódio contra as maiorias populares e uma profunda aversão a tudo que possa favorecer as camadas mais despossuídas.

Em consequência, sempre houve uma enorme resistência a qualquer medida que viesse a contribuir para diminuir o nível de desigualdade social. Este traço tem se evidenciado em nossas terras desde os primórdios da colonização europeia.

Não podemos nos esquecer que, com a chegada dos colonos portugueses, instalou-se por aqui um regime de cruel exploração, com a coisificação da mão de obra aborígene e daquela trazida da África na condição de escravos.

No entanto, com o passar do tempo, este ódio ao povo não deixou de existir. Tão somente adquiriu novas facetas e até se acentuou.

Hoje em dia, esta ira histórica contra os menos privilegiados continua presente e permanece como um dos fundamentos de nossos exploradores e, como não poderia deixar de ser, do bolsonarismo.

Em segundo lugar, mas não menos importante para sua constituição, está a hipocrisia. Seria impossível definir o bolsonarismo sem levar em conta este fator.

Porém, uma vez mais, não foi o ex-capitão e nem seus aduladores mais achegados os introdutores do hábito de fingir e falsear posicionamentos para levar vantagens na vida política de nosso país.

Poderíamos, sim, dizer que o bolsonarismo conseguiu a proeza de sintetizar e potencializar quase todas as variantes de hipocrisia que há muito vêm sendo destiladas em profusão por nossas classes dominantes.

Em suma, ele tão somente se transformou no desaguadouro natural das variadas torrentes de manipulação farsante de cunhos pseudo-nacionalista, pseudo-moral, pseudo-cristão, entre outros, oriundas dos eternos sanguessugas da nação brasileira.

Sabemos que o bolsonarismo foi gestado nas casernas e nos círculos de militares retirados inconformados com a possibilidade de acerto de contas com a Comissão da Verdade criada por Dilma Rousseff. Para ganhar musculatura, se apropriaram das cores de nossa bandeira e dos símbolos nacionais.

Por isso, tornou-se corriqueiro em manifestações bolsonaristas o vestir camisetas verde-amarelas de nossa seleção de futebol, cantar o hino nacional e bradar loas à Pátria.

Tudo isso para justificar a entrega de nossas reservas petrolíferas às multinacionais gringas, o desmantelamento e inviabilização da Petrobrás, a privatização e transferência da Eletrobrás a grupos capitalistas estrangeiros e nacionais, e por aí vai.

Ou seja, nunca antes os símbolos da Pátria tinham sido manipulados tão descaradamente para favorecer nossa espoliação e submissão aos desígnios de potências estrangeiras. Porém, o bolsonarismo foi reflexo e consequência de um espírito entreguista de longa data, e não a razão causante do mesmo.

Como exemplo do moralismo hipócrita que permeia os meios de comunicação corporativos do Brasil, é fundamental observar como esses órgãos atuaram para ancorar e fortalecer o lavajatismo-morismo e sua pretensa luta contra a corrupção.

Agora, já está mais do que comprovado que o lavajatismo-morismo foi um dos mais nefastos instrumentos arquitetados pelas forças do imperialismo e do grande capital local para travar o avanço de nosso país pelos caminhos da soberania nacional.

Sob o pretexto de combater a corrupção, esses meios se lançaram com tudo na campanha de endeusamento do ex-juiz suspeito Sergio Moro e a justificação de todas as arbitrariedades por ele cometidas.

Além de destruir grande parte da infraestrutura industrial do Brasil, de causar e expandir a miséria como nunca antes a todos os rincões de nossa pátria, o lavajatismo-morismo acabou se mostrando como uma das mais insidiosas máquinas de corrupção de toda nossa história, estando envolvido em desvios ilegais que ultrapassariam a casa dos dois bilhões de reais.

Em outras palavras, o lavajatismo-morismo levava em seu bojo a hipocrisia típica de nossas classes dominantes. Cresceu e se nutriu com base no apoio total e articulado da rede Globo e do restante da mídia corporativa.

Atuou sempre em consonância com os interesses das classes que o patrocinaram. Em decorrência, como não podia deixar de ser, o lavajatismo-morismo ajudou a abrir as portas para a chegada do bolsonarismo ao comando do Estado.

Para sacramentar essa questão da hipocrisia, convém escrever algumas palavras sobre a mais significativa fonte de sustentação numérica de massas do bolsonarismo: as igrejas ditas evangélicas, mormente as neopentecostais.

Neste caso, temos o mais flagrante descaramento de ver como se usa o nome de Jesus para defender tudo aquilo contra o que o próprio Jesus lutou durante toda sua vida.

Os capitalistas donos dessas igrejas não se envergonham de passar a seus seguidores a ideia de um Jesus avarento, sequioso por dinheiro, vingativo, guerreirista e profundamente preconceituoso. Ou seja, procuram transformar a imagem de Jesus em algo completamente contrário ao que Jesus foi.

São essas igrejas que dão ao bolsonarismo uma certa expressividade numérica junto ao povo. Essas igrejas neopentecostais bolsonaristas recebem aos que vão a procura da bondade de Jesus e procuram reencaminhá-los na rota do diabo.

Por tudo o que argumentamos até este ponto, defendemos que o termo bolsonarismo continue sendo usado para fazer referência a toda a podridão de nossas classes dominantes.

Entendo isto como uma maneira de puni-los por todo o mal que vêm causando a nosso povo.


*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.



Publicado originalmente pelo Viomundo