domingo, 31 de agosto de 2014

PROFESSOR DESMONTA CONTEÚDO DO SITE “MARINA DE VERDADE”




por Gustavo Castañon

Candidata Marina Silva, meu nome é Gustavo Castañon. Sou, entre outras coisas, filiado há mais de dez anos ao PSB, partido que hoje a senhora usa para se candidatar, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e um cristão convicto, como acredito que a Senhora também seja, do seu jeito.

Investida de seu eterno papel de vítima, sua campanha lançou um site na internet chamado “Marina de Verdade” (com V maiúsculo mesmo) para combater supostas “mentiras” espalhadas contra a senhora na internet. Vou aqui responder uma a uma as afirmações de seus marqueteiros no site citado, oferecendo os links de fontes das minhas afirmações.

1 – Não Marina, você não sofre preconceito por ser evangélica.
Você é que acredita que todos aqueles que não compartilham de suas crenças queimarão eternamente no fogo do inferno. É o que está claramente descrito no credo (credo 14) de sua agremiação religiosa. Que nome podemos dar a isso? Certamente é um nome mais assustador do que intolerância ou preconceito. Talvez essa seja a origem de seu maniqueísmo, já que separa o mundo entre os bons, que apoiarão seu possível governo, e os maus, que lhe fariam oposição, como eu. O seu problema não é ser protestante. É ser da Assembleia de Deus, associação pentecostal de vários ramos que interpreta literalmente o Antigo Testamento, e que tem entre seus pastores Marcos Feliciano, que vende curas a paraplégicos, e Silas Malafaia, este homem que hoje defende da “cura gay” à teologia da prosperidade e vende bênçãos de Deus. Eu me pergunto: o que alguém que faz parte de uma organização que faz comércio com a palavra de Cristo é capaz de fazer na vida política? Qual o nível de inteligência que pode possuir alguém que faz interpretações tão rasteiras do significado da Bíblia? Essas são perguntas legítimas que as pessoas se fazem, e não por preconceito, mas por conceito.


2 – Não Marina, o Estado Laico deve intervir nas práticas religiosas quando são fora da lei.
Se uma religião resolve reinstituir o sacrifício de virgens dos Astecas ou a amputação de clitóris comum em alguns países muçulmanos hoje, o estado tem que observar inerte essas práticas em nome da liberdade religiosa e do laicismo? Não, candidata. Nenhuma organização está acima da lei num Estado Laico.


3 – Não Marina, você não é moderna, você é uma fundamentalista mesmo.
O fundamentalismo religioso não é a negação do Estado Laico, essa é só uma espécie de fundamentalismo, o teocrático. O fundamentalismo se caracteriza pela crença de que algum texto ou preceito religioso seja infalível, e deva ser interpretado literalmente, tanto em suas afirmações históricas como comportamentais ou doutrinárias. E o ataque ao Estado Laico pode vir também pela incorporação de leis, que desrespeitem as minorias religiosas ou não religiosas, impondo um valor comportamental de determinada religião a todos os cidadãos. Isso faz da senhora uma fundamentalista (Assembleista) que compartilha das crenças de Feliciano e Malafaia, e uma adversária, se não do Estado Laico, do laicismo que deveria orientar todas as nossas leis, pois defende plebiscitos sobre esses temas para impor a vontade das maiorias religiosas sobre as minorias em questões comportamentais.


4 – Não Marina, você é, sim, contra o casamento gay.
Você agora diz que está sofrendo ataques mentirosos na internet sobre o tema, mas sempre se colocou abertamente contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, defendendo somente a união civil nesse caso. E não adianta simular que o que o movimento gay está reivindicando casamento religioso. O casamento é também uma instituição civil. Você só defende união de bens, sem todos os outros direitos que o casamento confere às pessoas. O vídeo acima e mais esse vídeo aqui provam esse fato de conhecimento público.

PS: Hoje, dia 29/08/2014, ao lançar seu programa de governo, a candidata mudou uma posição defendida por toda vida, faltando um mês para a eleição. Por que?


5 – Realmente Marina, você não é petista.
Você abandonou o partido que ajudou inestimavelmente a construir sua vida política, ao qual você deve todos os mandatos e o único cargo que ocupou até hoje, porque não tinha espaço para sua candidatura à presidência. Hoje, você busca se associar, sem qualquer pudor ou remorso, a inimigos ideológicos históricos do partido, repetindo as práticas que supostamente condena no PT e chama de “velha política”. Só que faz isso somente para chegar ao poder e construindo um projeto oposto àquilo a que defendeu toda a vida.


6 – Realmente Marina, você não é tucana. Mas sua equipe econômica é.
Sua equipe econômica conta com André Lara Resende e Eduardo Giannetti, ex-integrantes da equipe econômica do governo FHC, além de seu coordenador Walter Feldman, que fez toda sua história no PSDB. Suas propostas econômicas são as mesmas do PSDB. Agora, de fato, o que nem o PSDB jamais teve coragem de ter é uma banqueira como porta voz de sua política econômica… Você não quer alianças com governos atuais de nenhuma agremiação, como o de Alckmin, exatamente para manter sua imagem de anti-tudo-o-que-está-aí. Mas não se sente constrangida em ter o vice de Alckmin na coordenação financeira de sua campanha, nem de convidar o “bom” representante de sua “nova política” José Serra para seu governo…


7 – Não Marina. Você defendeu, sim, Marcos Feliciano.
Você afirmou que ele era perseguido na CDH não por causa de suas posições políticas, mas por ser evangélico. Disse que isso era insuflar o preconceito religioso. Não, candidata. Você está falando de seu companheiro de Assembleia de Deus, um homem processado por estelionato, que pede senha de cartão de crédito de seus fiéis, que defende que os gays são doentes e os descendentes de africanos amaldiçoados. Recentemente, esse homem que você afirma ser vítima do mesmo preconceito que você sofreria, afirmou à revista Veja: “Eu não disse que os africanos são todos amaldiçoados. Até porque o continente africano é grande demais. Não tem só negros. A África do Sul tem brancos”. Ao usar essa estratégia de defesa pra ele e para você, você reforça os preconceitos da sociedade e o comportamento de grande parte dos pentecostais de blindar qualquer satanás que clame “Senhor, Senhor” em suas Igrejas.


8 – Não Marina. Você não é só financiada por banqueiros. Eles coordenam seu programa!
Neca Setúbal, herdeira do Itaú, não é só sua doadora como pessoa física. Ela é a coordenadora de seu programa de governo e sua porta-voz, e já declarou que você se comprometeu a dar “independência” (do povo e do governo) ao Banco Central, que fixa os juros que remuneram os rendimentos dela. Da mesma forma, o banqueiro André Lara Resende, um dos responsáveis pelo confisco da poupança na era Collor e assessor especial de FHC, é o formulador de sua política econômica.


9 – Não Marina, você é desagregadora e vilipendia a classe política. Seu governo será o caos.
Você é divisionista e maniqueísta e implodiu meu partido em uma semana de candidatura. Vai deixar seus escombros para trás quando chegar ao poder, como sabemos e já anunciou, para delírio daqueles que criminalizam a política. Seu partido é nanico, e se não o criar com distribuição de cargos, continuará nanico. Com a oposição certa do PT, terá que governar com a mídia e os bancos, que cobrarão o apoio com juros. Precisará do PMDB, que você acusa de fisiologismo, e do PSDB e o DEM, que lhe exigirão não só cargos, empresas públicas e ministérios, mas também a volta das privatizações. A única base congressual que lhe será fiel é a bancada evangélica, que cobrará seu preço com sua pauta de controle dos costumes e seu fisiologismo extremo. Resultado, você vai entregar a alguém o trabalho sujo do fisiologismo ou mergulhará o país no caos.


10 – Não Marina, seu marido foi sim acusado de contrabando de madeira.
E não só isso, foi acusado pelo TCU de doação de madeira clandestina. A senhora usou sua força política de Ministra para impedir que o caso fosse investigado, como sempre fazem na “velha política”. Mais tarde o MP arquivou, como fazem com todas as denúncias contra membros da oposição. Mais uma vez, fato bem comum na “velha política”. Nada é investigado.


11 – Não Marina, Chico Mendes não era da elite. A elite é que o matou.
Em mais uma tergiversação semântica demagógica, num vilipêndio à memória de seu companheiro, a senhora tomou o termo “elite” pelo sentido de elite moral, para acusar de “divisionismo” os que lutam contra a elite econômica brasileira. Essa mesma elite que mantém o Brasil como um dos dez países mais desiguais do mundo e que hoje está acastelada no seu programa de governo e campanha. Seu discurso despolitizante busca mascarar a terrível e perversa divisão de classes no Brasil e é um insulto aos seus ex companheiros de luta. Seu uso demonstra bem à qual elite você serve hoje, e nós dois sabemos que não é à elite moral. A elite moral desse país está lutando contra a elite econômica para diminuir nossa terrível e cruel desigualdade social. E você, Marina, não é mais parte dela.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Formigas não lambem sabão




O mundo, sabemos, já não é tão grande como no tempo de nossos ancestrais. Não esqueçamos, porém, que foram eles os desbravadores com suas ferramentas rústicas. Tudo começou lá trás e não sabemos, apesar dos avanços semióticos, da antropologia, enfim da ciência,  de onde viemos e para onde vamos. Somos o que somos, soma de espanto, alegrias, medos, selvageria, inocência, doçuras, amarguras, assassinos de reputações, corajosos, egocêntricos, altruístas. E nos encantamos com a lua, mesmo depois de pisada por humanos, quiçá outras civilizações.
     O instinto continua a nos guiar; o conhecimento empírico é a universidade completa. O conhecimento acadêmico é essencial, mas com ele somos como cães amestrados, comandado por sistemas. Ao esquecer a metodologia do sistema perdemos até mesmo o rumo de casa. Perdemos o instinto, a intuição. Para viajar é preciso dar o primeiro passo. A fenomenologia do espírito (Phänomenologie des Geistes) foi a tentativa de Hegel de unir ciência e prática. Marx avançou na mesma direção com o materialismo dialético. A dialética não é só pensamento: é pensamento e realidade a um só tempo. Século das Luzes.
     Formigas não lambem sabão. Micro-céfalas, traçam rotas, constroem lares, procriam desenfreadamente como forma de preservar a espécie. Distinguem o doce do amargo da vida. Alimentam-se de folhas, sem destruir a natureza. As formigas passeiam em locais jamais percorrido pelos humanos - esta espécie em extinção. Formigas sobreviverão a hecatombes, sem gente,sem folhas.

       poucas pessoas
   as folhas são poucas
                 aqui             
                       uma
                           ali
                              outras  (Bashô)


      A voz da natureza assobia, marulha, canta, encanta, chora, clama, ri. Um homem caminha. Ancestrais caminharam, viajaram como Bashô. Como Jesus, Buda, Judas. Ajuda que vem da zoeira ou do silêncio das cachoeiras. Vida.

                        libertam-se libélulas
                        sobre elas libélulas
                        um céu cheio delas (Bashô)

     Cerceado os instintos, tateamos como cegos sobre planícies e planos desvairados. 

                          do sol o brilho
                          distante da montanha
                          sapo andarilho         (J Estanislau Filho)

                
        Não seria necessário observar, como observei, durante dias e noites, que formigas não lambem sabão. Uma lata de doce, restos de comida, flores, unissexuais e inconspícuas. Talvez por isso as formigas viajam. 

                Na lata do poeta tudo-nada cabe,
                pois ao poeta cabe fazer
                com que na lata venha a caber
                O incabível            (Gilberto Gil).


J Estanislau Filho

O maior tributo a um grande amor que se encerra

E então pensei no final adequado de uma história de amor: gratidão ou maldição eterna? Amor ou ódio?

Aqui mesmo, diante desta tela, me ocorrem cenas de nosso amor de ontem.

E então eu sei, Deus, como eu sei, que a resposta àquela questão, para nós dois, é obrigado.

Gratidão eterna, em vez de maldição.

Serei feliz em sua felicidade. Escrevi uma vez e escrevo agora outra.

Sei que você também será feliz em minha felicidade.

De você lembrarei das pequenas e das grandes coisas.

Das cartinhas deixadas sob meu travesseiro: a letra ligeiramente inclinada para trás, a bola sobre a letra i. “As pessoas nascem para fazer certas coisas”, estava escrito numa delas que reli agora em nossa despedida. “Eu nasci pra te amar.” Éramos reis naqueles dias, não éramos?.

Do cheiro forte, perfume de fêmea, tão bom de aspirar pela manhã, antes que sabonetes e perfumes tornassem tudo artificial. Uma de minhas batalhas perdidas foi tentar convencer você a não usar perfume.

Das roupas tão desafiadoramente fora do padrão. Poderiam ficar esquisitas em outra mulher, mas em você eram a perfeita embalagem para uma alma também fora do padrão.

Das enxaquecas, suportadas estoicamente, sem o recurso a outras armas que não aquelas bolinhas brancas da homeopatia.

Dos sorrisos cúmplices para a câmara que eu empunhava. Gostaria, se você não se importar, de ficar com as fotos feitas apenas para o fotógrafo.

Da coragem admirável escondida num corpo miúdo, e não demonstrada em gritos ou mesmo em voz alta.

Da graça natural com que se move na dança.

De certas coisas esquecerei, afinal tão pequenas diante do conjunto da nossa vida, e sei que você fará o mesmo em relação a mim.

Esquecer, ainda mais que lembrar, pode ser o maior tributo a um grande amor que se encerra.


Fabio Hernandez


Sobre o Autor

O cubano Fabio Hernandez é, em sua autodefinição, um "escritor barato".

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O Corvo




Em certo dia, à hora 
Da meia-noite que apavora, 
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, 
Ao pé de muita lauda antiga, 
De uma velha doutrina agora morta, 
Ia pensando, quando ouvi à porta 
Do meu quarto um soar devagarinho, 
E disse estas palavras tais: 
"É alguém que me bate à porta de mansinho; 
Há de ser isso e nada mais". 
Ah! bem me lembro! bem me lembro! 
Era no glacial dezembro; 
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia 
A sua última agonia. 
Eu ansioso pelo Sol, buscava 
Sacar daqueles livros que estudava 
Repouso (em vão!) à dor esmagadora 
Destas saudades imortais 
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora, 
E que ninguém chamará mais. 

E o rumor triste, vago, brando 
Das cortinas ia acordando 
Dentro em meu coração um rumor não sabido, 
Nunca por ele padecido. 
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito, 
Levantei-me de pronto, e "Com efeito, 
(Disse), é visita amiga e retardada 
"Que bate a estas horas tais. 
"É visita que pede à minha porta entrada: 
"Há de ser isso e nada mais". 

Minh'alma então sentiu-se forte; 
Não mais vacilo, e desta sorte 
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora, 
Me desculpeis tanta demora. 
"Mas como eu, precisando de descanso 
"Já cochilava, e tão de manso e manso, 
"Batestes, não fui logo, prestemente, 
"Certificar-me que aí estais". 
Disse; a porta escancar, acho a noite somente, 
somente a noite, e nada mais. 

Com longo olhar escruto a sombra 
Que me amedronta, que me assombra. 
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado, 
Mas o silêncio amplo e calado, 
Calado fica; a quietação quieta; 
Só tu, palavra única e dileta, 
Lenora, tu, com um suspiro escasso, 
Da minha triste boca sais; 
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; 
Foi isso apenas, nada mais. 

Entro co'a alma incendiada. 
Logo depois outra pancada 
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela: 
"Seguramente, há na janela 
Älguma coisa que sussurra. Abramos, 
"Eia, fora o temor, eia, vejamos 
"A explicação do caso misterioso 
Dessas duas pancadas tais, 
"Devolvamos a paz ao coração medroso, 
"Obra do vento, e nada mais". 

Abro a janela, e de repente, 
Vejo tumultuosamente 
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias. 
Não despendeu em cortesias 
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto 
de um lord ou de uma lady. E pronto e reto, 
Movendo no ar as suas negras alas, 
Acima voa dos portais, 
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas: 
Trepado fica, e nada mais. 

Diante da ave feia e escura, 
Naquela rígida postura, 
Com o gosto severo, - o triste pensamento 
Sorriu-me ali por um momento, 
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas 
"Vens, embora a cabeça nua tragas, 
"Sem topete, não és ave medrosa, 
"Dize os teus nomes senhoriais; 
"Como te chamas tu na grande noite umbrosa?" 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

Vendo que o pássaro entendia 
A pergunta que eu lhe fazia, 
Fico atônito, embora a resposta que dera 
Dificilmente lha entendera. 
Na verdade, jamais homem há visto 
Coisa na terra semelhante a isto: 
Uma ave negra, friamente posta 
Num busto, acima dos portais, 
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta 
Que este é seu nome: "Nunca mais". 

No entanto, o corvo solitário 
Não teve outro vocabulário. 
Como se essa palavra escassa que ali disse 
Toda sua alma resumisse, 
Nenhuma outra proferiu, nenhuma. 
Não chegou a mecher uma só pluma, 
Até que eu murmurei: "Perdi outrora 
"Tantos amigos tão leais! 
"Perderei também este em regressando a aurora". 
E o corvo disse: "Nunca mais!" 

Estremeço. A resposta ouvida 
É tão exata! é tão cabida! 
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência 
"Que ele trouxe da convivência 
"De algum mestre infeliz e acabrunhado 
"Que o implacável destino há castigado 
"Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga, 
"Que dos seus cantos usuais 
"Só lhe ficou, na amarga e última cantiga, 
"Esse estribilho: "Nunca mais". 

Segunda vez nesse momento 
Sorriu-me o triste pensamento; 
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo; 
E, mergulhando no veludo 
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera, 
Achar procuro a lúgubre quimera, 
A alma, o sentido, o pávido segredo 
Daquelas sílabas fatais, 
Entender o que quis dizer a ave do medo 
Grasnando a frase: "Nunca mais". 

Assim pôsto, devaneando, 
Meditando, conjeturando, 
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava, 
Sentia o olhar que me abrasava. 
Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto, 
Com a cabeça no macio encosto 
Onde os raios da Lâmpada caíam, 
Onde as tranças angelicais 
De outra cabeça outrora ali se desparziam 
E agora não se esparzem mais. 

Supus então que o ar, mais denso, 
Todo se enchia de um incenso, 
Obra de serafins que, pelo chão roçando 
Do quarto, estavam meneando 
Um ligeiro turíbulo invisível: 
E eu exclamei então: "Um Deus sensível 
"Manda repouso à dor que te devora 
"Destas saudades imortais. 
"Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora". 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

"Profeta, ou o que quer que sejas! 
"Ave ou demônio que negrejas! 
"Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno 
"Onde reside o mal eterno, 
"Ou simplesmente náufrago escapado 
"Venhas do temporal que te há lançado 
"Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo 
"Tem os seus lares triunfais, 
"Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?" 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

"Profeta, ou o que quer que sejas! 
"Ave ou demônio que negrejas! 
"Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! 
"Por esse céu que além se estende, 
"Pelo Deus que ambos adoramos, fala, 
"Dize a esta alma se é dado inda escutá-la 
"No Éden celeste a virgem que ela chora 
"Nestes retiros sepulcrais, 
"Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!" 
E o corvo disse: "Nunca mais!" 

"Ave ou demônio que negrejas! 
"Profeta, ou o que quer que sejas! 
"Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa! 
"Regressando ao temporal, regressa 
"À tua noite, deixa-me comigo... 
"Vai-te, não fique no meu casto abrigo 
"Pluma que lembre essa mentira tua. 
"Tira-me ao peito essas fatais 
"Garras que abrindo vão a minha dor já crua" 
E o corvo disse: "Nunca mais". 

E o corvo aí fica; ei-lo trepado 
No branco mármore lavrado 
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. 
Parece, ao ver-lhe o duro cenho, 
Um demônio sonhando. A luz caída 
Do lampião sobre a ave aborrecida 
No chão espraia a triste sombra; e fora 
Daquelas linhas funerais 
Que flutuam no chão, a minha alma que chora 
Não sai mais, nunca, nunca mais!


Edgar Allan Poe

Lembranças de Teresa




De Teresa lembro os seios fartos e sorriso ingênuo.
Eu a vejo vindo ao meu encontro naquela tarde cinzenta
de um verão ardiloso em Petrópolis.

Digo ardiloso porque o tempo mudava bruscamente
e Teresa mantinha o sorriso inocente,
talvez por acreditar que o amor chegara para ficar.

Teresa habita meus sonhos utópicos, como querer romper
esse pragmatismo devorador a devastar uma geração,
que um dia ousou desafiar o obscurantismo nefasto.

Dela resta uma lembrança esmaecida nesses dias em que os relacionamentos são virtualmente expostos em telas frias.

Quando me lembro de Teresa uma tristeza me invade
sem explicação.

J Estanislau Filho

Mais em: www.recantodasletras.com.br/autores/jestanislaufilho


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Palavras de Amor



Amo amar todas as coisas,
sem exigência de valores.
Quem faz de marquises casas
e em castelos habitam senhores,
amo-os como os assassinos
e me compadeço pelos psicopatas.
Amo adultos e meninos
E ao que a fome mata.
Amo quem vive na luxúria
e me emociono com as prostitutas,
com pessoas em amarguras.
E aos que vivem felizes,
de sorrisos estampados nos rostos
eu os amo como os andarilhos rotos.
Homens e mulheres de finas estampas,
tudo isto me encanta:
o gari, o pedreiro, o carpinteiro,
o meu amor é verdadeiro.
Amo sem restrições
os objetos e as coisas abjetas
e em estado de putrefações.
Amo as nuvens e as estrelas,
não só por serem belas
tanto quanto a lua,
sem me importar se está fixa ou se flutua,
assim como o sol a girar,
sem deixar de brilhar,
pois se aqui há escuridão,
ele ilumina o Japão.
Amo os sem-teto e os sem-terra,
amo tudo em evolução:
comunistas e até alguns capitalistas,
católicos, muçulmanos e evangélicos,
eu os amo igualmente aos psicodélicos...
E aos aprisionados pelos grilhões da intolerância,
procuro amá-los com paciência,
pois que o amor não discrimina
opção sexual ou religiosa,
nem o negro, o branco e o cor-de-rosa.
Amo amar todas as coisas,
a feiura e a beleza
porque somos todos natureza.


J Estanislau Filho - Do livro Palavras de Amor - 2010.

Adquira-o em: www.livrariacultura.com.br ou em
www.biblioteca24horas.com 

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Uma Mulher Gorda




Era uma mulher gorda, que de tão gorda não podia pegar o lotação por causa da roleta. Ela ficava envergonhada, pois sempre havia olhares e comentários maldosos. Quando vinha um ônibus grande, ela arriscava, pois podia entrar e sair pela porta da frente, porém, quando vinha um micro-ônibus, ela virava o rosto, fingindo não vê-lo e seguia a pé. Alguns amigos diziam que era bom fazer caminhadas, pois perderia peso, além de economizar uma grana, afinal a tarifa está custando o olho da cara - completava outro.
     Ela colocava a mão no rosto e chorava um choro do tamanho de seu corpo descomunal. Ela era mãe solteira e a filha a razão de sua vida. A casa teve as portas adaptadas para que ela pudesse passar, porém, a cada ano, as paredes eram derrubadas para ampliar ainda mais as portas. Havia dificuldades de encontrar marcos e portas, pois o mercado impunha modelos pré-estabelecidos. O mesmo acontecia com outros móveis. A cama dela era enorme, feita de madeiras grossas e resistentes a fim de suportar o seu peso. Toda vez em que ia se deitar, ela olhava antes debaixo da cama, para se certificar que a cadela cooker não se encontrava dormindo ali. Receava quebrar a cama e esmagar o pobre animal. Puxava-a para cima e dormia abraçada com ela.
     O homem que a emprenhara desapareceu assim que ela começou a engordar. "Se tem vergonha de mim, suma e vá para a puta que o pariu!". Estas foram suas últimas palavras para o homem com o qual vivera quatorze anos, sete meses e onze dias, que não quis ficar no povoado nem mesmo em consideração à filha. Depois ela caiu num pranto que durou três dias e três noites, sem dormir, sem comer, sem tomar banho e, no fim do terceiro dia, para seu maior desgosto, após pesar na balança do armazém de Seu Onório, descobriu que engordara nove quilos e duzentos e cinquenta gramas. Ao descer da balança, disse olhando nos olhos de cada um e cada uma presentes no armazém:
     - Caralho de vida, se meu destino é engordar, vamos ver aonde isso vai. Levarei a minha tristeza blasfemando contra este destino infundado, que uma hora há de ter um fim, nem que seja com a minha morte. Quanto a vocês, que fiquem bebendo suas alegrias que também findarão, de um modo ou de outro. Venha meu talismã. Pegou a filha pela mão e foi ao supermercado fazer compras, antes, porém, foi ao shopping e na praça de alimentação fartou-se de tortas, quitutes e doces. 
     Os dias passavam e ela não parava de engordar. Já não sabia onde colocar seu corpo desproporcional. A filha caíra num silêncio enigmático e não a defendia mais das pilhérias irrefreáveis dos transeuntes, nem sobrava tempo de fazer-lhe companhia. Passava horas a fio brincando com as colegas. Onde está a sua mãe, perguntavam as colegas, contudo Rosita nada respondia e continuava brincando, alheia às perguntas logo logo esquecidas em jogos lúdicos.
     Chegou um tempo em que Adelita não saia mais da cama. Apesar de fofoqueiros e maledicentes, os cidadãos de Noretthy e região eram solidários. Um exército ficou de prontidão para atender as necessidades de Adelita, que eram muitas. Davam-lhe banhos e a perfumavam; recolhiam tudo que ela expelia pelas vias naturais; alimentavam-na e até mesmo algumas carícias fugazes eram-lhe destinadas. Além da solidariedade, os moradores demonstraram capacidade de organização: havia revezamento com escala de horário para não deixar Adelita desamparada tanto nas noites tempestuosas, quanto nos dias ensolarados.
     Ao pôr do sol de janeiro, o mês mais abrasador do povoado, quando pernilongos ocupam as casas como se necessitassem de tetos mais que de sangue; quando a atmosfera exala um aroma insuportável que empesteia o ambiente; com toda espécie de insetos: coleópteros, himenópteros, isópteros, ortópteros, entre outros pestilentos obstruindo o tráfego aéreo e terrestre, um homem estranho chegou ao lugarejo perguntando onde morava Adelita. As mulheres de Noretty, carentes de homens, pois os que não morreram em guerras voltaram mutilados, ficaram alvoraçadas, abanando-se com folhas de taiobas, a fim de espantar o calor que se apossava de seus corpos como em climatério, queriam de todo jeito conhecer o cavaleiro de fina estampa.  Era um homem alto, musculoso, de cabelos longos, olhar lânguido e pele bronzeada. Vestia uma jaqueta de couro desabotoada, exibindo peitos largos e que deixava à mostra uma tatuagem de tubarão, que a população concluiu tratar-se de um pescador, mais provavelmente um marinheiro, embora sua roupa fosse imprópria. Ele caminhava com passos decididos pela única rua do povoado, arrancando suspiros das mulheres e o desprezo dos homens. Ele cumprimentava a todos, com um breve inclinar de cabeça para os homens e com um sorriso para as mulheres, que afinava seus lábios grossos, deixando à mostra um dente de ouro reverberando sob a luz dos últimos raios de sol. Todas queriam conduzi-lo à casa de Adelita, todavia ele dispensou educadamente.
     Ao se aproximar da casa, antes de entrar olhou atrás de si e viu toda a população feminina do povoado se acotovelando, com exceção das plantonistas que teriam de se retirar, para que ele pudesse conversar a sós com a mulher mais gorda que os moradores de Noretty viram em todas as suas vidas pretéritas, presentes e que não seria vista no futuro. O cavalheiro de fina estampa inclinou-se ligeiramente para a multidão feminina em sinal de licença para fechar a porta. Queria reviver os momentos de intimidade que passara com Adelita desde o dia em que fugira há mais de quatorze anos, por não suportar os orgasmos múltiplos que ele proporcionara a ela. Durante uma semana e meia os moradores de Noretty ouviram os gritos e sussurros de prazer que vinham de dentro da casa.Isto fez com que a moral dos mutilados de guerra se reerguesse e as mulheres encontrassem novamente o prazer de abraçar seus homens. Desde então a felicidade se estampou nos rostos até então tristes dos cidadãos do povoado.
     Rosita, a esta altura exibindo dois lindos botões,  que o vestido não conseguia mais ocultar, pulava e gritava pela única rua, outrora silenciosa e triste, mas que agora explodia em cores nos muros cobertos de rosas, alamandas e buganvílias, dizia a todos que finalmente teria um irmão para protegê-la contra os maníacos e pedófilos, pois desejava casar-se virgem. 
     Assim, depois de uma semana e meia, todos viram a casa de Adelita se encher de luz. Ao abrir as janelas e as portas, Rosalvo e Adelita viram o céu do povoado iluminado pelo espetáculo pirotécnico que os moradores ofereciam em homenagem ao mais recente casal.
     Rosalvo pegou com destreza sua doce Adelita e a carregou no colo, sob os aplausos da multidão. Então todo o povoado percebeu a transformação da mulher. Adelita tinha os cabelos longos, soltos e um corpo de Vênus. Era a mulher mais bonita que os moradores de Noretty conheceram. Em seguida, silenciosamente e de mãos dadas o casal, acompanhado por Rosita, foi se afastando da cidade em direção ao cais, onde um enorme navio estava atracado.
     A multidão permaneceu no cais acenando para o casal até o momento em que o navio era apenas um ponto luminoso no oceano.

J Estanislau Filho

Esta crônica está em meu livro de bolso Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do Autor - 2006


sexta-feira, 15 de agosto de 2014




À espera de Marina, campanhas de PT e PSDB analisam novas estratégias
quinta-feira, 14 de agosto de 2014 18:36 BRT Imprimir [-] Texto [+]

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Por Jeferson Ribeiro

Ainda no aguardo do que ocorrerá com a candidatura presidencial do PSB, que deve indicar Marina Silva para a cabeça de chapa, integrantes das campanhas do PT e do PSDB já começam a analisar que mudanças farão na estratégia diante de um quadro que consideram completamente novo.

Estrategistas ouvidos pela Reuters avaliam, no entanto, que é cedo para fazer prognósticos claros e que a nova configuração da disputa não zera o jogo, mas vai exigir mudanças cuja amplitude só será conhecida após a decisão oficial do PSB e algumas rodadas de pesquisas eleitorais.

A presidente Dilma Rousseff, que concorre à reeleição pelo PT, foi ministra a seu lado no governo Lula e se aproximou de Campos e sua família. Aécio Neves, candidato do PSB, tinha identificação pessoal com o pernambucano, porque os dois eram netos de políticos conhecidos nacionalmente, tinham sido governadores estaduais no mesmo período e chegaram a traçar estratégias eleitorais juntos nos meses iniciais da disputa presidencial.

“Não mudou tudo, mas muda muita coisa”, disse à Reuters um dos estrategistas do tucano Aécio Neves.

Ele chegou a comparar que o impacto é semelhante a substituir Aécio por José Serra na disputa ou Dilma pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hipóteses que chegaram a ser ventiladas no PSDB e no PT, respectivamente.

No ninho tucano, a ordem é manter a estratégia do programa eleitoral no rádio e na TV nos primeiros dias, apresentando Aécio ao eleitorado, mostrando suas realizações no governo de Minas Gerais e sua capacidade de gestão. Pelo menos por enquanto, segundo essa fonte.

“Nosso desafio não muda, temos que apresentar o candidato e torná-lo conhecido. Mas o programa é fruto de avaliação cotidiana”, disse o estrategista do PSDB.

No PT, não há dúvidas de que Marina assumirá a candidatura e a avaliação é que mesmo com esse novo quadro, que precisa ser pesquisado e analisado com mais calma, Dilma segue sendo a favorita para vencer a disputa.

“Estamos num momento de paralisia nas campanhas”, disse um dos petistas ouvidos pela Reuters.

Um outro integrante do comitê da campanha petista afirmou que nesse primeiro momento “tudo ficou mais confuso para todos”.

Mas essa fonte acredita que Aécio tem mais a perder numa análise imediata, porque ficou sem uma linha auxiliar do discurso que tentava emplacar contra Dilma, apontando-a como má gestora.

Essa fonte avalia, porém, que Dilma ganharia uma adversária com língua mais afiada e mais disposta a fazer críticas mais duras a ela e ao ex-presidente Lula, que Campos poupava.


Fonte: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/a-espera-de-marina-campanhas-de-pt-e-psdb-analisam-novas-estrategias/

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Ninguém Acende a Lâmpada


   A iluminação da sala não está boa, prejudicando as vistas - disse um funcionário.
       Esta reclamação foi repetida diversas vezes pelos funcionários do Departamento de Contabilidade da Inber - Indústria de Produtos de Beleza Realce.
       Contudo, o Chefe do Departamento, o Sr. Rinoceronte, jamais levava em consideração tal reclamação. Para ele tudo aquilo não passava de artimanha de funcionários relapsos e preguiçosos, para justificar os trabalhos atrasados, coisa terminantemente proibida pelo Dr. Hipopótomo, gerente geral.
       "Se vocês trabalhassem mais e reclamassem menos as coisas não estariam como estão", repetia o Chefe todas as vezes que alguém insistia em reclamar de alguma coisa. Mesmo a precária iluminação do escritório, que era sentida por todos, não escapava à terrível observação do Sr. Rinoceronte. Os funcionários voltavam calados e resignados aos seus postos, pois, diante de tal argumento, ficava impossível provar ao Dr. Hipopótomo a necessidade de melhorar a iluminação e as precárias condições de trabalho a que estavam submetidos. Ele só aceitava argumentos sólidos, seguidos de relatórios.
      Cada um analisava do seu modo o significado do que seriam "as coisas" a que o Chefe se referia. Até chegar o dia em que ninguém ousou mais reclamar da iluminação. Indiferente, a lâmpada continuava o seu trabalho de iluminar o ambiente da forma que sempre fizera. Todos se adaptavam como podiam às condições de trabalho. Cabeça baixa, olhos colados nos papéis. Alguns compraram lupas, mas foram proibidos de usá-las, pois, segundo o Sr. Rinoceronte, elas depunham contra o seu Departamento. Vez por outra alguém erguia os olhos em direção à lâmpada, na esperança de vê-la brilhar.
      Chegou um tempo em que desistiram de levantar as vistas, pois, a Chefia, impaciente com as cabeças erguidas, mandou instalar próximo à lâmpada a seguinte frase:


      "Se todos trabalhassem mais e reclamassem menos, as coisas não estariam como estão".



       Chegou um tempo em que a sala mergulhou em completa escuridão e ninguém ousava levantar-se para acender a lâmpada ou ir ao Sr. Rinoceronte expor a realidade. Procuravam executar as tarefas, usando o tato, para localizar documentos. Por sorte ou por experiência de longos anos de trabalho, as tarefas eram executadas com perfeição, mas sempre insatisfatórias aos olhos do Chefe. 

       Ainda assim, dentro de cada um havia a esperança de que a lâmpada voltasse a acender, mas ninguém tomava uma atitude ousada, como verificar se ela estava com mau contato, ou com a tecla desligada. Mesmo quando um funcionário erguia da cadeira para tentar algo, a frase "se todos trabalhassem mais e reclamassem menos, as coisas não estariam como estão"  vinha à mente, fazendo com que o funcionário retornasse ao seu lugar.
      Depois de alguns anos de trabalho ininterrupto, o Sr. Rinoceronte entrou pelo escritório, acompanhado pelo Dr. Hipopótomo, anunciando  que a lâmpada tinha sido substituída.
      Foi assim que os funcionários da Inber descobriram que não precisavam da lâmpada, pois estavam todos cegos.



J Estanislau Filho



Do meu livro de crônicas Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do autor - 2006 - 
       

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A Arte de Espantar Pardais





Ave tinhosa. Finalmente entendi o dito popular "manso que nem pardal de rodoviária". Atrevida, também.
     O pardal é uma ave que gosta da zoeira das metrópoles. Pousa nas mesas dos restaurantes e, se o freguês se distrair, surrupia-lhe um pouco da sua ração. Invade quintais, telhados, cozinhas. Por onde passa deixa um rastro de bosta; uma gosma grudenta, que só sai depois de muito esfregar com bucha e sabão. Senti isso nas mãos. Onde tem pardais, outras espécies têm dificuldades de reprodução. Destroem ninhos alheios; atiram ovos e filhotinhos de outras espécies ao chão. São predadores vorazes e, arrisco afirmar, estão no topo da cadeia alimentar. Até o seu canto, raro, é irritante. Sinfonia de pardais, tenham dó! Perdoem-me os corações sensíveis: pardais são uma praga. Não os aceito cagando sobre a minha cabeça. Entre o telhado e o teto do meu tugúrio eles pintavam e bordavam, digo, cagavam e procriavam. Mas tudo tem um fim. Resolvi agir. Com todas as armas que disponho. Guerra é guerra!
     Elaborei um plano maquiavélico: compraria uma lata de veneno spray e aplicaria nos vãos, mesmo sabendo que filhotes criavam penas nos ninhos. Melhor assim: Menos pardais sobre mim. Vão se ver comigo, deixa estar, pensei.Fui ao supermercado. Escolhi um veneno forte, com um sorriso sádico. Contei à vendedora as minhas intenções. Ela me aconselhou a não fazer isso. Acho que me tirou de cabeça, por causa de seu instinto materno. Meu coração amoleceu. Desisti do veneno.
     Lembrei-me de um personagem de João Ubaldo Ribeiro, no livro O Sorriso do Lagarto: O personagem odiava tanto os pardais, que pagava um determinado valor por cada ave abatida a quem lhe trouxesse. Ali começou minha ojeriza por esta espécie. Convenhamos, a natureza produz coisa ruim, também, não é mesmo? Vai me dizer, meu caro leitor, que você ama as baratas; os pernilongos que zumbem em seu ouvido e sugam-lhe o sangue e o sono; aquelas ratazanas enormes... Então é preciso separar o joio do trigo, não é mesmo?
     Penalizado com esta praga, mudei o plano: ficaria de plantão, com uma vassoura, para não permitir a entrada deles. Foram dias cansativos. Eles e elas me olhavam; eu olhava para eles e para elas, que tiveram a petulância de fazer sexo sobre o muro, bem na minha frente. Lógico que não permiti. Uai, que é isso? Ainda por cima, pornográficos! Logo a consciência, esta danada, que quando se instala não nos larga mais, cutucou-me: - Isso é fruto da repressão sexual. Você não vive pregando a liberdade sexual? Leu e aprovou O Livro do Amor, da Regina Navarro Lins? Tudo bem, de boa, façam sexo, mas não permito procriarem em meu teto. Por quê não vão para as matas? Seus preguiçosos, querem moleza, tô ligado!
     Para melhorar meu conforto, peguei uma cadeira. Uma hora de pé, cansou-me as pernas. Para me distrair, comecei a ler Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Eles e elas perceberam a minha distração e alguns, ou algumas, sei lá, não sei quem é macho, quem é fêmea ( até com humanos, às vezes é difícil esta identificação) burlaram minha vigilância. Num voo rápido entraram no local, para levar alimento aos filhotes ou material de construção de ninhos. Desgraçados, vociferei. Nestas alturas havia colocado ao meu lado a garrafa de café e uma jarra d' água. Não arredaria pé. Mas precisava ir ao banheiro e aí... Quando voltava eles já tinham entrado, levado comida aos filhotes, etc. E ficavam sobre o muro, fios de poste próximo, grades. Piando, sei lá. Conversando entre si, traçando estratégias. Pensei em um estilingue. Não. Uma espingarda de chumbinhos... Fazia mira com uma espingarda imaginária. Não daria certo jogar pedras. Poderia acertar algum transeunte.
     No quinto dia (Esaú e Jacó estava no fim), vencido pelo cansaço, mudei de tática: Tapar as entradas. Com quê? Isopor! Tinha muito, da embalagem dos móveis que chegara, para mobiliar a casa nova. Mãos à obra. Vedei todas as entradas. Agora poderia terminar a leitura de Esaú e Jacó, confortavelmente em minha cama. Depois de umas duas horas, entre a leitura e um cafezinho, fui conferir. O piso do quintal estava branco de bolinhas de isopor. Parecia ter caído neve. Mas não conseguiram entrar. Ouvi um piado lá dentro. Piu, piu,piu... Ah, vai morrer asfixiado, foda-se! E gritei: Vão cagar em outra freguesia! Reforcei as entradas, pressionando os isopores. Tempos depois retornei. Eles ou elas conseguiram derrubar uma veda. Ah seus desgraçados, xinguei. Tapei de novo. Lá dentro o piado do filhote.  
      Fiquei com pena e deixei uma entrada. Seu pio era muito forte, certamente estava no ponto de abandonar o ninho, ou com fome, ou com sede. Amanhã verei o que posso fazer, pensei e fui cuidar de outras obrigações. E refletir sobre a leitura de Esaú e Jacó. Fique tranquila, cara leitora, não farei uma resenha do livro. Era noite. Dormi.
     Na manhã seguinte acordo com o barulho dos pardais. Porque pardal não canta, faz barulho. Não eram só os oito que habitavam o meu teto: Era um exército. Eles estavam mobilizados, para me enfrentar. Eu sim, no entendimento deles, era o invasor. Postaram-se estrategicamente em vários pontos. Fizeram um cerco. Eu atacava um grupo, outro vinha pelo flanco. Aí fiquei sabendo quem eram as fêmeas: Elas tentavam me atacar, irritadas. As fêmeas defendem mais suas crias. Os machos as estimulavam a trabalhar. Safados! A vassoura rodava no ar. Tropecei em um caco de telha, arrancando uma lasca no dedão. O leitor ou leitora, que torce para os pardais, deve ter adorado.
     A luta continuava. Eles e elas não desistiam. Passadas umas duas horas houve uma trégua. O exército de pardais simplesmente voo para longe. Silêncio. Comecei a ler Madalena, uma novela de Cristiane Dantas.
     Eles e elas que procurem outro teto. Aqui não. 
     "Nelson olhou bem para Madalena. Olhou como não tinha olhado até então: olhou como se fosse a primeira vez. Viu uma moça linda, forte, sonhadora..."
     Mais uma vez interrompi a leitura de Madalena, e corri com a vassoura em punho, tentei acertar um pardal que bicava a veda. Ele, ou ela, sei lá, pousou sobre o portão de entrada da casa, com o bico aberto. Cansado, né?  Atirei-lhe a vassoura. Quase acertei. Acertei sim, a lâmpada da entrada, que se espatifou. Espantar pardal dá trabalho. E prejuízo. Mais de uma semana. Eles não desistem. Eu também não. Terminei a leitura de Madalena e voltei à Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel, que estava parada desde o início da batalha de espantar pardais e substituída por outras leituras. Algumas no Recanto, inclusive.
     Não me distraí mesmo. Também sou persistente, quando quero. Toda tarde, na hora dos pardais dormirem, estava eu lá, de plantão. Aqui vocês não dormem mais, babacas!
     Parece que estou pronto pra comemorar a vitória. Mas um, agora não tenho dúvidas, é um macho. Tem uma marca branca no peito. É até bonito, notei. Insiste em permanecer na área, cantando seu canto agourento, como se convidasse as fêmeas a voltarem. Elas parecem ter desistidos, mas  o macho idiota fica lá, feito bobo. Eu o espanto e ele volta. Espanto e ele volta. Vá cantar em outra freguesia macho besta, grito pra ele, com a vassoura na mão. Não percebeu, seu bobo, que as fêmeas se encantaram com outro mais inteligente, que sabe escolher local seguro? Pergunto com um sorriso de vitória. Ele voa de lá pra cá. Perdeu, mano, perdeu, digo em êxtase. 
     Enfim, depois de quase um mês de batalha, eles parecem mesmo derrotados. Continuam pousando sobre meu telhado e muro. Creio que houve um armistício. Não cagam mais sobre minha cabeça, nem fazem ninhos. Tudo, bem. Assim a gente se entende. Mas por medida de segurança, inspeciono diariamente o local.
     Não sei porque, mas depois desta batalha me vem à memória O Adeus às Armas e Por quem os Sinos Dobram de Ernest Hemingway. Nenhuma guerra vale a pena. A vida é para ser vivida, há espaço para todas as espécies, etnias...
     Mas,baratas, ratazanas e pernilongos... Tenho dúvidas! Será que servem para alguma coisa?  


J Estanislau Filho

Esta crônica integra A Moça do Violoncelo



Olhar

Pelos olhos se conhece o coração das pessoas. Expressões como "fuzilou-me com os olhos"; "olhar bondoso"; "olhar assustado", etc., traduzem sentimentos e emoções. O olhar assustado do filho diante do olhar severo do pai.
     Os olhos brilham diante de uma obra de arte. Arregalamos os olhos sobre um prato saboroso e, se estamos a fim de alguém, estabelecemos contato através do flerte: olhar de desejo, olhar apaixonado.
     Os olhos fotografam belezas e horrores. Alguns dizem que as plantas secam com um mal olhado e o que os olhos vêem, o coração sente. 
    Lançando um olhar sobre o Brasil, enxergamos paisagens belas: rios, matas, pássaros, cidades com ruas limpas, praças e jardins bem cuidados, casas bonitas, crianças entrando e saindo das escolas em algazarras. São belezas.
     Porém, há o outro lado, que fere os olhos e dói o coração: ruas e estradas esburacadas, erosões, becos e corações sombrios, crianças abandonadas, gente catando comida no lixo, olhos no chão, tristes olhos no chão, a natureza sendo violada, poluição, incêndios nas matas.
     Olhar nossa casa, nossa rua, nossa cidade, o País, o mundo, o Universo: o céu , estrelado, a lua brilha!
     Olhar tudo, sem preconceito, pois o que os olhos vêem o coração sente e quando o coração sente... bem, aí é outra história.




J Estanislau Filho



Crônica que faz parte do meu livro Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do Autor página 69 




sábado, 2 de agosto de 2014

PRAZER



                Quero me perder
nas ondulações sensuais do teu corpo
cegar-me com o brilho dos teus olhos.

                Quero seguir
                o teu hábito
      achar-me em teus passos. 

                Quero sentir
                 o teu hálito
    embriagar-me em teus braços.

Como as ondas do mar beijando a areia
           quero beijar teu corpo
 em cada curva estacionar meu sonho.

               Quero ser atrevido
            violar os teus sentidos
         afogar-me em tuas águas
                mar de delícias
        e me envolver em carícias.

    Roçar meu corpo em tua pele
                 sentir o calor
          brotar em nossos poros.

   Quero me atazanar me estrepar
              em teus espinhos
  conquistar palmo a palmo errante
           tua selva misteriosa
     e me eleger teu bandeirante.

   Quero teu corpo molhado suado
         a formar vapor subindo
         virando nuvens no céu.

   Chuva caindo sem assombro
          sobre a terra fértil
 quero-te ave de múltiplas cores
    pousada sobre meu ombro.


J Estanislau Filho - do livro Todos os Dias são Úteis - Edição do autor - 2009