quarta-feira, 26 de agosto de 2015

o prazer e a dor do parto




filha ou filho
livro de folhas
a gente não olha
a gente come
e se farta
em cada página
viva
morta

personagens
trama
enredo
drama
humor
e dor
apego

amor !

não falha...


a gente lê
a gente conta
em cada folha
o filho a filha
palavra que calha
face exposta
o prazer e a dor
do parto importa.

J Estanislau Filho.
Em novembro: A Moça do Violoncelo - Estrelas - 2 em 1


quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Prisioneiro de Axolotle








Despertei sob o olhar de ouro de axolotle, fixado diretamente aos meus olhos, como se pretendesse vazá-los. Ainda entorpecido, não o percebi de imediato. Esfreguei os olhos com os punhos cerrados e perguntei, o que está fazendo aqui?. Senti, obscuramente, que ele se esforçava para me passar uma mensagem. 
     Inteiramente desperto, vi-o se afastar, com andar desengonçado. Então me lembrei de tê-lo visto no aquário da rua Bahia, com os olhos e bocas colados ao vidro, pedindo-me para libertá-lo daquela prisão.
Talvez tenha vindo para me agradecer. Compreendi a necessidade de sair da minha clausura.


J Estanislau Filho

Vem aí: A Moça do Violoncelo (contos de suspense) - Estrelas Dois livros em um (Poemas). Textos inéditos. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Pardais Carnívoros



O homem encontrava-se encostado a um poste de luz, quando um bando de pardais o amarrou com fios resistentes de fibra de sisal.
     Com uma rapidez inominável, o bando volteou os fios ao poste, imobilizando o cidadão. Em seguida puseram-se a bicá-lo. Primeiro devoraram seus pés. E o homem respirava. Em seguida as pernas e os braços.
     Aos poucos foi se formando uma multidão de pessoas, que observavam o espetáculo. 
     Enquanto bicavam o corpo do homem, os pardais cantavam, atraindo mais pardais. O homem continuava respirando, mesmo quando os pardais começaram a abrir sua barriga com bicadas cada vez mais famintas e ferozes. A sua respiração enfraquecia. A multidão observava com o misto de prazer e compaixão.
     Mesmo depois de ter o olho perfurado e comido, o homem continuava respirando, mas baixinho.
     Quando se imaginava o homem em seus últimos estertores, pois os pardais arrancaram-lhe o coração e fugiram com ele no bico, o homem se desvencilhou dos fios que o prendia e caminhou silenciosamente pelas ruas com destino a...

J Estanislau Filho

A Vaca do Leite de Ouro




     Havia trinta e cinco anos que Altamiro Vaqueiro levantava às três horas da madrugada, lavava o rosto na bica, pegava Lenço Branco no pasto, arreava e ia tocar as vacas para dentro do currar e tirar o leite.
     Trinta e cinco anos enfrentando o orvalho das pastagens e monologando com as vacas do Coronel Fagundes. As vacas e os bezerros com seus berros; o cavalo Lenço Branco; o curral; as pastagens, tudo ao redor estava impregnado de Altamiro Vaqueiro, como se fosse um pedaço dele. Todas as madrugadas, às três em ponto, Altamiro se levantava e cumpria o mesmo ritual, que durava trinta e cinco anos.
     Certa noite o Coronel Fagundes fora acordado pelos latidos raivosos de seus trinta e dois cães. O Coronel sempre dormia sossegado, protegido por estas feras, nenhum bandido se atreveria transpor o limiar da tela, que cercava o terreiro de tamanho descomunal. Muitos fazendeiros e colonos vizinhos achavam um exagero e até mesmo um perigo manter estes ferozes animais. Sem contar os custos no trato, pois os cães do Coronel alimentavam-se de carne da melhor qualidade. Contudo, com exceção de Dona Anastácia, esposa fiel de quem não iria se separar nem mesmo após a morte, Fagundes tinha motivos de se proteger. Ninguém podia conhecer o seu segredo.
     Todas as noites os cachorros latiam, ora para afugentar um gambá que atacava o galinheiro, ora por farejar algo estranho no terreiro, ou latir por latir. Para o Coronel era uma canção de adormecer. Porém, nesta noite os latidos soavam no ouvido do fazendeiro de forma estranha. Ficou atento. Inicialmente os cães fizeram um barulho ensurdecedor, todos eles como se tomados de cólera, para logo em seguida diminuírem lentamente e ficarem rosnando, como se estivessem sendo domados por força maior. O Coronel Fagundes perscrutou com atenção e concluiu que os cachorros acariciavam com as línguas alguma coisa.
     Colocou a capa sobre o pijama, calçou as botinas e com a lanterna em mãos, foi ao terreiro certificar-se dos fatos.
"Falcão, Mineiro, Jardineira, já, vão deitar", gritou o Coronel. Os cães se retiraram, obedientes, e Fagundes vislumbrou uma cesta. Aproximou-se cautelosamente com a lanterna acesa e para seu espanto, dentro dela havia uma criança. O Coronel pegou a cesta e retornou ao quarto, enquanto Dona Anastácia dormia um sono profundo. Sacudiu a velha, que abriu os olhos, assustada. O Coronel mostrou-lhe a cesta com a criança, dizendo que suas promessas foram atendidas. Finalmente tinham um filho. A bem da verdade não era um filho de seu sangue, pensando bem, tratava-se de um rejeitado. decidiram criá-lo, pois, além de um dever de cristão, ele poderia ser útil na fazenda.
Batizaram a criança com o nome de Altamiro Aparecido, e só. Altamiro Aparecido, mais tarde conhecido como Altamiro Vaqueiro, um quase preto criado pelo Coronel Fagundes e Dona Anastácia, que percorria os quatro cantos da Fazenda Bela Vista, tangendo boi, consertando tapumes e chupando cana há trinta e cinco anos. Trabalhando e temendo a Deus, conforme os ensinamentos de Dona Anastácia. Levando castigo até decorar os Dez Mandamentos.  Descendo-lhe a palmatória, salpicando-lhe as palmas das mãos, para aprender a não dormir na hora dos rosários.
     Altamiro colocava em dúvida aquele modo de criação. Trinta e cinco anos de vida esquisita. Pensava nas surras. Só trabalhava e dormia junto de balaios, arreios, misturado a mantimentos. Sexo, praticamente só conhecia com éguas e mulas, nunca beijara uma mulher. Lembrou do dia em que, arretado, arrebentara a égua de estimação do Coronel, após obrigá-la a correr sem parar. O indefeso animal deitou e nunca mais se levantou.  Lembrou do dia em que meteu uma bala na cabeça da cachorra parideira do Coronel Fagundes. Para cada ato descoberto, uma surra de ter de se lavar em água com sal. Dona Anastácia era ruim de doer, para ele, nem comida igual a dos cachorros. Depois, as surras sem explicação. Qualquer mal malfeito era culpa de Altamiro.
     Altamiro Vaqueiro lembrou, com revolta, do dia em que o Coronel dissera que já era hora dele começar a trabalhar, para compensá-los das horas de sono perdidas, que tiveram, para dar a ele um berço.^Você já é um homem feito e está na hora de retribuir o que fizemos ao pegá-lo no terreiro, quando os cães poderiam ter te devorado, como fazem com os gambás". Ele, Altamiro Aparecido, rejeitado, aos oito anos de idade enfrentando o eito, prendendo bezerros, moendo cana no engenho, apanhando e sofrendo todo tipo de humilhação, dormindo no meio de xixi de vaca, cara suja de carvão e a alma desamparada. Antes, naquela noite trágica sido devorado pelos cães, ou que sua desconhecida mãe o tivesse enterrado vivo. Lembrou ainda das palavras de Dona Anastácia "comerás o pão com o suor do teu rosto", quando o Coronel lhe dissera para não entrar pela casa sem autorização, ele, com apenas 11 anos, pelos cálculos de Jeremias, amigo e colono da Fazenda Bela Vista.
     Todas estas lembranças deixavam Altamiro Vaqueiro com um misto de revolta e confusão. Pensava em sumir, mas antes haveria de fazer justiça. Lembrou, com o semblante carregado, do dia em que Fagundes, na praça da igreja, dera-lhe uma surra de chicote na presença dos fiéis, que acabavam de assistir a missa. As chicotadas desciam impiedosamente sobre suas costas, com o apoio do Padre Anselmo, que dizia "é isso mesmo Coronel, é preciso educar este negrinho no temor a Deus". Movido pelo ódio, a cada chicotada, Altamiro gritava "odeio Deus, odeio todos vocês, prefiro me queimar no inferno". Quanto mais blasfemava mais apanhava, até que, não suportando as dores, caiu por terra de boca no chão e lá ficou estendido várias horas.
     Altamiro Aparecido, mais conhecido por Altamiro Vaqueiro, só agora aos trinta e cinco anos tomava uma decisão. Lembrou com desdém da noite em que penetrara no quarto da filha bastarda do Coronel e despiu-a. Era apenas uma criança de sete anos e dormia profundamente. Fechou o semblante ao recordar o dia em que Dona Anastácia não permitira que ele almoçasse mais na varanda, que daquele dia em diante se virasse para conseguir alimento. Aproveitou a ausência do Coronel e, num dia de nuvens negras esmagou o crânio de um dos cães, deixando-o estendido na entrada da casa. Sentiu alegria vendo a dor da perda nos olhos do pai adotivo. Lembrou com prazer o dia em que deixou de ordenhar as vacas, pois passara a noite em um pagode e enrabara, pela primeira vez uma mulher, a negra Isaura. Esta atitude levou o Coronel a tomar o único presente que lhe dera em um dia de coração mole: a vaca Malhada, prestes a dar cria. Sorriu, lembrando da vingança, ao dar veneno aos porcos, matando vinte e sete cabeças, para desespero do Coronel Fagundes e de Dona Anastácia. Subiu-lhe um ódio ao recordar a primeira surra que levara e das palavras do patrão "abaixe as calças e vire a bunda, para apanhar". A cada surra era obrigado a se joelhar, rezar e pedir ao Pai do Céu, que fizesse dele uma criatura honrada, temente a Deus.
     E na madrugada dos trinta e cinco anos, conhecedor do segredo do Coronel, Altamiro saiu do rancho, quando o galo cantou pela primeira vez. Três da madrugada, em ponto. Nunca falhara: hora de cumprir com a sua obrigação. Altamiro intuía que aquele seria o dia de sua libertação. Outro galo respondeu com um canto triste, agourento. Lembrou-se das palavras proféticas de Jesus a Pedro: "Quando o galo cantar...". Foi até a bica, lavou o rosto, foi ao pasto, assobiou e Lenço Branco atendeu. Arreou o cavalo e foi buscar o rebanho, parar tirar o leite. O capim parecia estar com menos orvalho, apesar da chuva do dia anterior e estava alto, verde, bonito. De cima do cavalo, Altamiro dava pontapés no capim, na tentativa de molhar a barra da calça. Lenço Branco estava inquieto, anunciando mau presságio. Altamiro dava leves chicotadas em suas clinas, dizendo "calma Lenço Branco, hoje é o dia da nossa libertação, claro, você vai comigo, não é velho companheiro?". O cavalo que sim, balançando o pescoço.
     Tudo estava quieto. As vacas soltavam berros agourentos e os bezerros respondiam com berros longos e monótonos. Os cães ganiam no terreiro e os gatos se engalfinhavam no telhado da sede da fazenda, como canção de ninar para o casal da fazenda. Altamiro juntou as vacas no curral, amarrou o tamborete na cintura e abriu a porteira, a cancela dos bezerros, para iniciar a ordenha. Cada um sabia a sua hora, não se antecipava. Primeiro era Mimosa, depois Graúna e em seguida Bolacha, até chegar a última a ser ordenhada, Pinta Preta. Porém neste dia, Mimosa se recusou a sair. Altamiro não ligou, estendeu a mão ao bezerro, que lambeu-a olhando os olhos do vaqueiro. Altamiro, sempre carinhoso com os animais, abraçou-o dizendo: "o que há meu bichinho? Não tem importância. Hoje vou te deixar por último". Deu um tapinha em sua bunda e o animal se retirou para um canto do curral. Chamou Graúna, que como sempre, veio lenta. Jogou a corda em suas pernas traseiras e amarrou a bezerra na dianteira, para tirar o leite. Assim como o resto do rebanho, Graúna parecia diferente, triste.
     Aparecido preparava-se para ordenhar Mimosa, a última vaca. Era desnecessário amarrar-lhe as pernas, pois ela era extremamente mansa. Rompia a aurora, quando apertou suas tetas. Ergueu os olhos e divisou o Coronel Fagundes sobre a cerca do curral, segurando o chapéu e cofiando o bigode. O vaqueiro olhou-o com ódio, ao ouvi-lo dizer: "Não quero saber de alteração na ordem das coisas, Mimosa deve ser a primeira a ser ordenhada".  Altamiro explicou os motivos e o fazendeiro retrucou: Vaca minha não tem querer e que isto não se repita". O vaqueiro respondeu com firmeza: "Pode ter certeza, não vai mais acontecer" e continuou o trabalho.
     Altamiro, a princípio não entendeu o  que estava acontecendo. Apertou novamente as tetas de Mimosa e o leite continuou saindo amarelo, feito ouro. Sim, era ouro mesmo. Gritou: Mimosa está dando ouro!". Fagundes pulou ao chão, berrando: "Você está louco, onde já se viu ouro líquido em ubre de vaca!", Contudo, era ouro.
    Altamiro Aparecido, conhecido por Altamiro Vaqueiro, um quase negro, rejeitado pela mãe, continuou tirando o leite de Mimosa. Era ouro de verdade. Dez litros, que solidificaram no interior do latão. Aparecido, que conhecia o segredo do Coronel, percebeu que o velho sovina ficaria mais rico. Porém uma surpresa, um trágico evento estava prestes  de acontecer. O plano do vaqueiro seria executado.
     O Coronel ficou possesso e queria mais ouro, mas o ouro não saía mais. Sacou o revólver e deu um tiro na cabeça da vaca e ordenou que Altamiro abrisse a barriga da mesma, para ver se encontrava mais ouro. Altamiro, mais conhecido por Altamiro Vaqueiro, trinta e cinco anos trabalhando na Fazenda Bela Vista, agarrou o fazendeiro e deferiu-lhe uma facada na barriga. O velho caiu. Altamiro abriu-lhe o ventre e jogou todo o ouro dentro, costurando em seguida. O rebanho, em uníssono, berrava e os cães latiam desarvorados. Em seguida Aparecido foi ao quarto e arrancou Dona Anastácia da cama, pegou o colchão e rasgou, revelando o segredo: lá estavam milhares de cédulas, muito dinheiro. Arrastou a velha até o curral, mostrando-lhe o defunto, antes de atear fogo. O coração de Dona Anastácia não suportou e parou de bater. Seu corpo tombou sobre o fogo em que seu marido ardia.
     Altamiro Aparecido montou em seu cavalo e desapareceu, levando para sempre consigo o berro triste de Mimosa. No cemitério da Fazenda Bela Vista, Coronel Fagundes e Dona Anastácia jazem. Na lápide está escrito:

     Aqui jazem Coronel Fagundes e sua fiel esposa, Dona Anastácia!

Dizem que Altamiro Aparecido, mais conhecido por Altamiro Vaqueiro continua percorrendo fazendas, montado em Lenço Branco, protegendo os animais da fúria humana.



J Estanislau Filho.

Este conto foi escrito no ano 2000 e integra a antologia da Academia Dorense de Letras. Premiado no III Concurso de Contos de 2001, com o apoio do Bradesco e da Casa da Cultura.




quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Os Metalúrgicos




À memória do líder sindical Joaquim José de Oliveira



     "O Velho - assim era chamado um antigo militante do Sindicato dos Metalúrgicos - estava segurando o microfone enquanto percorria a plenária com um olhar cinematográfico. Suas mãos tremiam e o coração batia descompassado. O Sindicato estava lotado e os aplausos soaram fortes como há muitos anos não acontecia. Um grito isolado ecoou no plenário:
     - Vai firme, companheiro!
     Antes de começar a falar com sua voz de trovão, os pensamentos povoaram a cabeça do Velho, cabeça de onde surgiam fios brancos de cabelo. Milhares de lembranças, em questão de segundos, como relâmpagos, tomaram conta de seus pensamentos. Lembrou dos anos ferozes de repressão; sindicato sob intervenção; dos companheiros mortos, mutilados, exilados; um tempo de agonia e medo. Um tempo de silêncio, de grito reprimido. O Sindicato dos Metalúrgicos, palco de muitas lutas e conquistas, de debates, depois esvaziado por bombas e traidores. Ele indo para casa desolado. Depois vendendo tempero de porta em porta e na igreja evangélica, pregando a libertação da classe trabalhadora.
     O Sindicato estava novamente lotado. Começava a voltar para as mãos de seus legítimos construtores. Difícil esconder a emoção, diante de uma nova geração de metalúrgicos que desconhecia o longo período de silêncio e medo que se abateu sobre as lideranças sindicais. Poucos sabiam que todos os dias "O Velho" percorria os caminhos solitários que levavam ao sindicato, certo que "não há derrota definitiva para a classe operária". Sob o silêncio da repressão, ele continuava o seu trabalho de levar consciência e organização aos humilhados e ofendidos, na certeza de que um dia veria novamente a casa cheia. Sofrera humilhações, muitos riram em sua cara, fizeram deboches diante do sindicato vazio e do silêncio da classe operária. Contudo, como a aranha que pacientemente tece a sua rede, para apanhar a sua presa, "O Velho" tecia a organização sindical.
     Ele permaneceu por mais alguns segundos em silêncio, observando os companheiros ocupando todos os espaços do salão e da quadra do sindicato. Estava feliz e precisava falar. A voz estava embargada pela emoção e algumas lágrimas caíram sobre o microfone em sinal de cumplicidade.
     - O que está acontecendo com "O Velho"? - perguntou um companheiro no ouvido do outro.
     - Estranho... parece que perdeu a voz.
    - Companheiros, - vencendo o nó na garganta "O Velho" iniciou seu discurso - devo confessar que estou emocionado. Depois de muitos anos que o nosso sindicato só não criou teias de aranha porque os faxineiros não permitiram, estou feliz vendo a casa cheia, vendo os companheiros assumindo os seus lugares, pois as paredes e os alicerces desta casa foram erguidos com o suor e o sangue dos trabalhadores. Só não digo que os metalúrgicos são como o filho pródigo que retornou à casa do pai, porque o filho pródigo saiu por vontade própria, enquanto muitos brasileiros foram expulsos. A casa que nos pertence voltou às nossas mãos e vamos cuidar dela com zelo, com organização e muita união, para que nunca mais nenhum aventureiro se aposse dela. Durante todos estes anos fomos humilhados por generais traidores, que tiraram a vida de muitos companheiros; que nos expulsaram de nossas casas com seus tanques de guerra, com seus cães amestrados, para garantir os monopólios. Generais que nos impuseram o arrocho salarial, enquanto o custo de vida disparava.
     Parou por um instante, observando a multidão que o ouvia em silêncio. Suas mãos tremiam, mas, as palavras saíam lúcidas, e como balas iam diretas ao coração do capitalismo. A multidão aplaudiu aos gritos de "trabalhador unido, jamais será vencido!"
     - Companheiros e companheiras, - continuou, limpando o suor da testa com a mão - assim como o boi tem os chifres e o burro tem os cascos para se defenderem, os trabalhadores têm a greve!
     Fez um breve intervalo, para sentir o efeito das palavras. O sindicato quase veio a baixo e continuou:
     "Nós somos o pivô da riqueza, mas também somos o para-raio, pois tudo arrebenta nas costas dos trabalhadores. Nós produzimos a riqueza, mas o lucro fica com os patrões. Um trabalhador só come carne quando morde a língua. O poder é como uma árvore, quando nós sacudimos o tronco, a copa balança. Vamos sacudir as bases que sustentam a exploração, para derrubar o topo da pirâmide e distribuir a riqueza concentrada. No momento estamos conquistando a liberdade de organização e de expressão, ainda não conquistamos a justiça. Ainda temos um longo caminho pela frente. Só alcançaremos a verdadeira vitória, que é a igualdade social, se acreditarmos em nossa força e em nossa união. Precisamos nos organizar diante da nova conjuntura que estamos construindo. Nós sacudimos a árvore da ditadura e seus galhos estão caindo, mas não se iludam, outras árvores virão, com novos métodos, para manter a mentira e a exploração. Demos um passo importante. Estamos vencendo uma batalha, mas a guerra pela liberdade e por justiça continua. Estou feliz. Vamos compartilhar este momento, contem comigo, sempre."
     Aos gritos de "trabalhador unido, jamais será vencido", os peões carregaram "O Velho" pelas dependências do Sindicato dos Metalúrgicos.



J Estanislau Filho

Está crônica integra o meu livro de bolso Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do autor - 2006.

Seu Joaquim foi um militante sindical nas décadas de 60, 70 e 80. Operário, pobre e negro, incorruptível. Militou no Sindicado dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem e nos movimentos populares, como associações de bairro.