quarta-feira, 28 de abril de 2021

Das Minhas Lembranças 6


A Rádio Peão* era a nossa forma de comunicar sobre o andamento da greve e os passos seguintes. Mantínhamos também contato permanente com o comando de greve, no sindicato. Recebemos orientações via Rádio Peão de aumentarmos a presença na Mannesman. Os ônibus especiais, que levavam os trabalhadores eram escoltados por viaturas policiais e seguiam diretos ao pátio interno das duas maiores fábricas, dificultando a abordagem.  Decidimos intervir à partir dos itinerários e dos pontos iniciais, porque depois da entrada na fábrica, a gente tinha dificuldades de saber o que o estava acontecendo. O nosso grupo se dividiu em dois: um se dirigiu ao Vale do Jatobá, de onde sairiam alguns ônibus e outro grupo ao Bairro Tirol.  Passamos correndo pela via férrea e o barulho que fazíamos assustou um outro grupo, que se escondeu debaixo de uma ponte. Anos depois eu viria saber, pelo Zé Geraldo, que ele integrava o grupo que se assustou conosco. Imaginaram ser a polícia em seus encalços. E como tinha policiais a serviço dos patrões! Foi uma noite tensa. A lua não apareceu.

A repressão violenta da polícia nos levou a uma ação radical: quebrar os ônibus. Numa rua semiescura do Tirol eu me coloquei no centro dela e deixei o ônibus se aproximar: arremessei uma pedra e acertei para-brisa, com o cuidado de atirá-la fora da área do motorista, que seguiu viagem.  Depois dessa ação nos dispersamos e retornamos cautelosamente  para nossas casas. Chegou-nos a notícia de vários ônibus com vidros quebrados, no pátio da Mannesman.

Enquanto isso, na Belgo-Mineira, os que entraram não conseguiram colocar as máquinas em funcionamento. Numa seção do ATC (alto teor de carbono), um operário ligou a máquina, mas foi desautorizado por outro.

* Rádio Peão era a comunicação que fazíamos face a face.




J Estanislau Filho



terça-feira, 20 de abril de 2021

Das Minhas Lembranças 5

Imagem: Fundação Perseu Abramo

Na medida em que reviro o baú da memória, vêm à tona lembranças que o tempo esmaeceu e que se fazem mais nítidas ao me situar no contexto da época. E por mais que me esforce, não consigo lembrar o nome destes heróis, que ousaram lutar contra a ordem opressora.


Em 1979 a greve dos metalúrgicos de BH e Contagem mexeu com os corações e mentes de muitos companheiros e companheiras. Houve a costura de um acordo em que os trabalhadores da Belgo iriam fazer piquetes nas portarias da Mannesman e os da Mannesman nas portarias da Belgo. Era uma forma de evitar que olheiros identificassem os grevistas, para nos protegermos de perseguições de demissões futuras. Mas os companheiros da Mannesman não se apresentaram em número suficiente nas portarias da Belgo-Mineira.


Certa noite, por volta das vinte e uma horas eu estava num piquete, na portaria da Mannesman que dá acesso ao Bairro das Industrias,  com a mochila de lanche e uma garrafa de café pendurada no ombro. Acho que era a portaria 4.  A polícia estava lá, para nos dispersar. Comecei o trabalho de convencer os companheiros a aderirem à greve. Policiais montados em cavalos e outros à pé,  com porretes, interditavam a passagem. De repente eu tive de correr para não ser pego. Corri em direção aos vagões de trem estacionados na via. Uma viatura me seguia. Estavam mesmo dispostos a me pegar. Não sei como atravessei os vagões e fui parar à beira de um córrego. Escapei das garras da polícia e quase caio nas garras de um cão. A lua estava uma beleza. Contemplei-a por alguns segundos. Tomei um gole de café, pensando como sairia daquela situação. Na correria nos dispersamos. Não sabia onde estava o Gonçalves. Depois ele me diria que seguiu pelo córrego até o sindicato, lá chegando, molhado até a cintura. Eu andava sob a luz do luar, quando cheguei próximo de um barraco à beira do córrego. Ao dar a volta, levei um susto: um cachorro dormia tranquilamente no pequeno terreiro. E agora? Tratei de sair de fininho.  O que tinha de ser feito, fora feito. Não me lembro de como retornei para casa. Foi uma noite complicada e mal dormida. No dia seguinte conversei com o companheiro Rui Barbosa e ele me contou que um trabalhador (não me recordo quem) do especial que levava os companheiros para o turno das 15h fez o motorista do ônibus parar na Praça da Cemig e convidou a todos para descerem, no que foi obedecido. Outro especial, passando pelo Bairro Industrial teve o seu itinerário interrompido por pneus furados por pregos colocados na via.  Assim como o companheiro que obrigou o motorista a parar na Praça da Cemig, outros personagens anônimos, formavam as lideranças  de seções da fábrica, que garantiram a paralisação.


Novas emoções aconteceriam na noite que se aproximava. 


 

J Estanislau Filho




sábado, 17 de abril de 2021

Das Minhas Lembranças 4

Imagem: Fundação Perseu Abramo


Toda ação gera consequências. Para a oposição sindical metalúrgica de BH e Contagem conquistar o sindicato, precisamos ter um olhar sobre o que aconteceu lá atrás. Desde 1976 muitos companheiros se organizavam dentro das fábricas. Eu me lembro bem da primeira reunião que participei. Estavam presentes alguns militantes  dos anos 60: Seu Joaquim Oliveira, Milton Freitas, Efigênia, e os novos militantes, Ignácio Hernandez, Ademir, Berzé, Maria Antonieta e eu. Maria nem tão novata assim. Depois nos transferimos para outro logradouro na Vila São Paulo.


A mobilização da campanha salarial de 1979 foi por fábrica. O dissídio era em outubro, porém, entre março ou abril, creio, houve a mobilização antecipada. A Belgo-Mineira foi a primeira. Em seguida a Mannesman e assim por diante. A ideia era começar pelas fábricas maiores. Na Belgo a gente já tinha construído, na prática, a comissão de fábrica. Estávamos relativamente organizados. A diretoria pelega, tendo à frente o presidente João Silveira, topou, apostando no fracasso. Como não confiávamos nos dirigentes interventores, imprimimos nosso boletim. Rui Barbosa e Seu Raimundo, que representavam o chão da fábrica, encarregaram de fazer o contato com os demais companheiros. Assim os  panfletos foram colocados no interior da fábrica, pendurados nos banheiros e em outros pontos, inclusive no relógio de ponto. Bingo.  Pela primeira vez, desde as greves de 1968, o sindicato lotou. Revezamos no microfone, com palavras de ordem. A que proferi:  "os patrões só entendem uma linguagem, máquinas paradas" foi reproduzida no jornal Companheiro. A pauta de reivindicações era: 20% de aumento; prêmio de retorno de férias equivalente ao da filial de João Monlevade e folga aos sábados para o pessoal da manutenção. Foram três assembleias, para  que os trabalhadores dos três turnos participassem. Zé Raimundo, o Vermelho, Ildeu, secretário do sindicato discursaram denunciando o nosso boletim apócrifo. O Sindicato também imprimiu e distribuiu a convocação, com muitos de nós ali, juntos, na cola. Eliana colocou um véu na cabeça e participou da distribuição do material do Sindicato.


Não houve greve, pois a patronal atendeu as nossas reivindicações e um pouco mais. Em vez de 20%, um valor em espécie, que ultrapassou os 20%, para os de salário mais baixo e em torno de 10% para os de salários mais alto.


E quais seriam as consequências da vitória dos trabalhadores da Belgo? A greve da Mannesman, que se negava atender as reivindicações e que duraria oito dias, projetando o Albênzio, mais conhecido por Boné. A principal palavra de ordem nas assembleias da Mannesman era: "Se a Belo deu, a Mannesman tem que dá!".


Depois viriam as outras fábricas!


J Estanislau Filho





 

sábado, 10 de abril de 2021

A Saudade

Imagem: Google - Itabirinha-MG


 A saudade é a ânsia
de atravessar a ponte
do rio de nossa infância,
beber a água da fonte,
saciar a sede da adolescência

A saudade é chama gigante
que arde o coração da gente,
a vontade de rever
com os olhos do agora
o que a memória traz de volta

A saudade chega marota,
trazendo alegria d'outrora,
para nos lembrar que a vida
passa num piscar d'olhos...

J Estanislau Filho


Imagem: Google - Jampruca-MG


sexta-feira, 9 de abril de 2021

Das Minhas Lembranças 3

 


Éramos sobreviventes da ditadura de 1964 e queríamos derruba-la. Energia não nos faltava. Atuávamos em várias frentes, sendo o movimento sindical de oposição à diretoria pelega e a construção de um partido político dos trabalhadores as principais.


A greve de 1979 dos metalúrgicos de BH e Contagem foi o batismo de fogo para muitos de nós, inclusive eu. Num piquete da portaria da Mannesmann, um policial se colocou ao meu lado. Discretamente ele me deu um choque nas coxas com um cassetete. Foi como se levasse um coice de mula. A vontade que tive foi de dar-lhe um murro. Segurei a raiva. Tinha consciência que era provocação. O que não aconteceu com um companheiro na portaria da Belgo, que revidou com um soco. Ele foi colocado num camburão. Ignácio Hernandez, Berzé e Sálvio Pena, que desciam a Avenida Babita Camargos, foram revistados.


O que mais me preocupava era as possíveis demissões que viriam depois da greve. Dois em especial: Seu Raimundo, morador de uma favela na região do Barreiro e Rui. Eles abriam suas casas para as reuniões de organização. Seu Raimundo, uma pessoa simples, com filhos, como tantos outros. "E se Seu Raimundo perdesse o emprego".  Para os parâmetros da época, o salário da Belgo era razoável.


Outro personagem enigmático foi o Zé Raimundo, o Vermelho. Ele fazia discursos inflamados nas assembleias, mas na hora de a onça beber água, o Vermelho amarelou: furou a greve! Para não passar pela portaria em que os poucos piqueteiros se encontravam, ele arrebentou a tela que dava acesso à fábrica.


Seis meses depois, já em 1980, às vésperas de maio, de duas datas significativas para mim, fui demitido. Dia primeiro, dia dos trabalhadores. Dia 12, data de nascimento de meu filho, Fernando.


J Estanislau Filho


quarta-feira, 7 de abril de 2021

Das Minhas Lembranças 2


 

No curto tempo em que militei no movimento sindical metalúrgico, conheci companheiras e companheiros que se se entregavam à causa com tamanha intensidade, que não era fácil acompanhar. Berzé e Maria Antonieta me arrastavam, mas de vez em quando eu escapulia para ver um filme ou para escrever A Construção da Estrada de Ferro.


Tinha um outro companheiro que não me sai da memória: Joaquim José de Oliveira, o Seu Joaquim. Tivesse vivo, completaria 100 anos nesse 2021 de pandemia e genocídio. Lembro dele com uma "capanga" preta pendurada no ombro, onde carregava boletins e panfletos. Ou ainda vendendo temperos de casa em casa, momento propício, para ele fazer a sua "pregação". Digo pregação por ele ser evangélico. Um evangélico, diria, diferente. Ele não se curvava diante dos adoradores do Deus Dinheiro. Contrapunha, e se os membros continuassem adorando o bezerro de ouro, ele rompia e ia à procura de outra igreja, arrastando consigo alguns fiéis.





Certa vez eu fora designado, para ser um espécie de assessor dele. Ajudá-lo a compreender a dialética; a luta de classes, enfim, dar-lhe um suporte teórico. Mas Seu Joaquim tinha convicção ideológica. Se algum rótulo lhe cabe, creio o de socialista cristão.


Me lembro bem dele, com sua voz de trovão ecoando nas assembleias do sindicato: "O trabalhador só come carne quando morde a língua". Uma frase que retrata bem os dias atuais, de desemprego, fome, corrupção e milícias.


Seu Joaquim foi o primeiro candidato negro e pobre a Senador por Minas Gerais. Ele merece um registro a altura de sua biografia: um livro, um documentário.





J Estanislau Filho


Obs.: As imagens de Seu Joaquim foram cedidas por Eugenio Lobo


terça-feira, 6 de abril de 2021

Das Minhas Lembranças 1


Em 1974 dei os meus primeiros passos, que culminariam no meu engajamento nos movimentos sociais e na política. Três situações foram decisivas: a literatura; a fábrica e o cinema.

A literatura, que praticava desde que fora alfabetizado descortinou um horizonte na minha capacidade de refletir sobre fatos históricos, além de me levar aos primeiros rabiscos.

A fábrica, na formação de minha consciência de classe, que me levaria à militância sindical e política.

O cinema,  me propiciou o contato com o movimento estudantil e a necessidade de me organizar em coletivos.

À partir dos oito anos de idade comecei a "devorar" livros. Lia tudo que tinha em mãos: história em quadrinhos, livros de bolso, fotonovelas, clássicos... Adulto, fui trabalhar numa fábrica, daí ao sindicato foi um pulo. Foi no Sindicato dos Metalúrgicos de BH e Contagem, em 1976, que deu início à minha participação, ao lado de muitos companheiros e companheiras, na organização da oposição sindical à diretoria da época, exercida por interventores nomeados pela ditadura. Em 1979 aconteceu a grande greve dos metalúrgicos, que não ocorria desde 1968. Foi o resultado de mais de dois anos de um trabalho clandestino de formiguinhas, pois a repressão não permitia uma militância transparente. De repente, diante da multidão de operários, com o microfone na mão, tive a consciência de que não poderia recuar. A diretoria nomeada pela ditadura ficou refém da presença de milhares de trabalhadores, em assembleia, para deliberar as reivindicações da categoria, que gritavam palavras de ordem.  E para a nossa surpresa, o presidente do sindicato e interventor participou ativamente da luta e se revelou um importante aliado. A diretoria pelega ficou dividida, abrindo caminho para a vitória da oposição.


O gosto pelo cinema me levou ao Cine Clube da Face da UFMG, onde os estudantes exibiam filmes alternativos, como Encouraçado Potemkin, Quando Voam as Cegonhas, A Balada do Soldado, entre outros. Depois da exibição das películas aconteciam os debates, verdadeiras aulas de formação política.

É nesse final da década de setenta (século 20), que a ideia da construção de um partido dos trabalhadores é idealizada. Entrei no movimento para a criação do partido, que tem o seu registro oficializado em 10 de fevereiro de 1980. Em 1982, com a ditadura dando sinais de esgotamento, o PT teve o seu batismo nas urnas.




 
J Estanislau Filho