segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Onze Prosas Poéticas Selecionadas

A MULHER E A FLOR






Nas ruas do Jardim do Prado, uma mulher caminha, desfiando com as pontas dos dedos, os cabelos. Seus olhos parecem ver apenas onde pisam os pés. Vez ou outra sacode os cabelos, para espantar o calor. Passa para o outro lado da rua, a fim de se resguardar do sol da tarde. Caminha devagar. Cambaleia, dando a impressão de que vai cair. Mas se apruma e segue com passos leves, sem parar de desfiar os cabelos. Encosta-se na parede de uma casa, respira fundo enquanto olha para o alto. O sol avermelhado projeta fios de luz, produzidos pelas folhas das árvores, no rosto da mulher, que esboça um sorriso.

Nas ruas do Jardim do Prado a mulher caminha. Recolhe uma flor, que decidiu romper as grades de uma casa e se mostrar à passante. Ela prende a flor no cabelo, uma alamanda amarela e prossegue a caminhada em direção a ... Em seguida abre os braços, para abraçar a brisa, que acaricia seu rosto, o corpo. A flor despenca de seus cabelos. Ela tenta recolher, mas uma rajada de vento fustiga a alamanda para um bueiro.

A mulher decide fazer o caminho de volta. Caminha com passos rápidos, sem olhar para trás. Tem os olhos cheios de lágrimas.




A espera do barco



"O céu desmoronou-se em tempestade de estrupício e o Norte mandava furacões que destelhavam casas, derrubando as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações". Gabriel Garcia Márquez - Cem anos de solidão.


Você disse que seria meu porto seguro e me esperaria a vida inteira, quando eu quisesse ancorar meu barco. Resistiria aos estrupícios dos furacões e dos naufrágios. Ancorei meu barco em inúmeros portos desnorteados, onde a bruma embaçava a visão. Portos abandonados, carcomidos pela maresia. Tristes portos. Ancorei e neles deixei um pouco de vida. Contudo me impregnei um pouco de suas agonias.
      Este é o preço a pagar por navegar em águas obscuras. Por isso meu barco navega com a carga da solidão dos portos abandonados, mas feliz por ter proporcionado alegrias. Portanto, ainda que venha ancorar meu barco em seu porto seguro, haverá dentro de mim as brumas de outros portos e as luzes tênues dos círios que romperam as brumas dos amores desnorteados.







Delírios de Rosas



Fabrício Valdéz esfregou os olhos com os punhos cerrados, naquela manhã em que o cheiro de rosas brancas invadira seu valhacouto, serpenteou sob a manta de estampas coloridas, presente dos ciganos, que a cada quatro anos, no verão torrencial, armavam barracas de lonas puídas em suas terras, para vender tachos de cobre aos moradores do vilarejo, cavalos e burros decrépitos como se fossem jovens, graças a artimanha de colori-los com tintas extraídas de plantas. O cheiro das rosas penetrou em suas narinas, expulsando de vez o sono de uma noite premonitória.
   Sentou-se com dificuldades, tateou o chão com os pés à procura das pantufas de cetim rotas, única lembrança de Catarina Flor, que o abandonara naquela noite de tempestade desmesurada, com as andorinhas em algaravias, e que decidira, para colocar-se a salvo dos tormentos dos remorsos, revelar com quantas mulheres havia se deitado no transcorrer de vida a dois. Pela primeira vez ao longo dos trinta e três anos de solidão, praguejou que merda ao refletir sobre o sentido das palavras de Flor, seu desgraçado, réprobo, porque não carregou esta ignomínia para o túmulo!
   Às vésperas de completar noventa e oito anos, trinta e três de solidão em companhia de bêbados, drogados e prostitutas, não estava certo de alcançar a cocaína que o reanimava desde que Catarina Flor desaparecera naquela noite sob a chuva de granizo, que provocara uma desordem descomunal no vilarejo, matando porcos, cavalos, galinhas, cães e outros seres indefesos, destelhando casas, deixando por vários dias um odor putrefato.
   O cheiro de rosas brancas intensificou-se ao tentar tocar a aldrava e desta vez lamentou que merda, como pude magoar minha prófuga andorinha! Neste instante uma rajada de vento descerrou as janelas e pétalas de rosas, como aves migratórias invadiram o quarto, pousando suavemente sobre sua cama, no chão, nos móveis. Milhões de pétalas foram cobrindo o corpo caquético de Fabrício Valdéz e entre elas identificou Catarina Flor, vestida de branco, dançando com leveza, tendo nos lábios e nos gestos a pureza dos justos. As pétalas foram se amontoando placidamente no valhacouto até alcançar o teto. As que não conseguiram espaço interno foram amontoar-se ao redor da casa sob os olhares diáfanos de lírios, de rosas.





sob nuvens o sol se escondeu










Nuvens cobriram o sol que iluminava meus dias.
Dormiam pessoas sob a marquise de um empreendimento comercial, 
quando o fogo tomou conta do imóvel.
As nuvens que cobriam a luz, fizeram chover em boa hora.
Apagaram-se as chamas, salvando o imóvel,
enquanto as pessoas permaneciam imóveis.
Entre o fogo e a chuva preferiram se aquecer.






Julieta


O amor por Julieta fora a essência de tempestade que ele necessitava naqueles dias obscuros.Um turbilhão de sentimentos desordenados o levou até ela, que o acolheu como quem também precisa de estímulos, para despachar carências e medos.  A tempestade era só uma cobertura frágil, um glacê que se desmancha ao suave toque de mãos inocentes; vidro que se quebra com a aragem.
   Estava convencido que Julieta o tiraria daquela morbidez. Traçou tática e estratégia de conquista. Ela era poeta, a melhor poeta do planeta naqueles dias em que o sol começou a entrar pelas frestas do seu muro. Uma poeta! Poetisa não era a forma adequada para nomear aquela mulher encantadora. Acessava diariamente a página de sua musa inspiradora, só para ver suas fotos. Passava horas contemplando, imaginando um encontro... E se derretia como manteiga em frigideira, sob o fogo da paixão incomensurável. Tecia longos elogios aos poemas e à poeta distante. Contudo, Julieta não deu azo à sua fértil imaginação. Como Florentino Ariza jurou esperá-la enquanto lhe restasse um sopro de vida. Até o dia em que Julieta parou de responder as suas mensagens.Caiu em si. Doeu fundo a perda de seu primeiro amor virtual. Não, ele não a perdeu, pois nunca a teve.



O Amor II



Estaremos juntos sempre sempre
Garanto que o nosso amor não sofrerá reveses
Mesmo na doença
Mesmo no momento em que tudo parece vazio
Mesmo com a face cansada
E até mesmo na morte

Nosso amor será eterno
Pegarei tua mão enrugada
E a beijarei com amor profundo
E quando teus passos vacilarem sobre o chão
Te darei confiança segurando tua mão
Serei teu terno guia quando sentires as vistas turvas

E quando te sentires fraca
Quando me sentir fraco
Sentaremos em algum banco de jardim
Onde rosas dálias e passarinhos nos trarão brilho no olhar
Contaremos causos – nossos sonhos –
Pois em amor eterno os sonhos não têm fim

Com mãos suaves secarei as lágrimas rolando em tua face
Pois bem sei elas rolam de emoção
Tu me lembrarás como fui outrora
Teimoso intolerante e por vezes sectário
Mas de uma dignidade imensa
Dirás que lutei em defesa dos oprimidos
Que defendi os humilhados e ofendidos
Que participei de piquetes enfrentei a polícia
E que fiz alguns poemas maravilhosos
Dirás que defendi corajosamente
O direito à liberdade
A igualdade
O direito de sermos todos felizes

Ouvirei cheio de orgulho
Então farei um discurso comovente sobre a dialética
Tu baterás palmas e me darás um abraço
Em seguida falarei de ti
Como era tão carente de afeto
Insegura e por vezes ranzinza
Mas de um coração edificante
Incapaz de matar uma mosca e sempre disposta ao perdão
Falarei dos teus desatinos teus gestos tresloucados
Mas sempre buscando a perfeição lutando contra a maré
Te direi como acreditavas na evolução
Na imortalidade da alma

Com palavras suaves e convictas me dirás
Somos apenas um grão no deserto estamos apenas no começo
A morte não existe
Então te abraçarei dizendo em pensamento
Tomara tomara










o amor em vários tons


amor não se esgota
clichês que se renovam
flor roxa sempre brota
dor de cotovelo
o mesmo novelo
a mesma novela
que se desenrola
em finas pérolas...

amor
serei sempre
um coração trouxa
grato por amor
por deus por nós
clamarei no deserto minha voz
com olhos baços
em suas sendas me embaraço...

misturo alhos com bugalhos
e espalho fagulhas
para incendiar vulcões
piquenique no jardim
em meio a multidões
em seus lábios carmim
pousarei os meus e
sob abajur e luz de velas
nossos gemidos
estremecerão a terra...

sol de primavera
amor quimera
amor de toques
nos olhos sensíveis
fotografando colinas
viagem fantástica
de meninos e meninas
velhinhos velhinhas
princesas rainhas
[amor de monarquia)
imã irmã
amor incandescente
uma senhorinha
perto daqui
ou bem distante...



Neste dia


Neste dia sentou-se de costa para a porta.
Bastou este dia.
Nunca se esquecia de detalhes que colocassem sua vida por um fio.
As pessoas que andavam ocupadas com a vida dos outros diziam que ele era um paranoico.
Diziam ainda coisas absurdas, imponderáveis.
Que ele se transformava em cão em noites sem lua.
Que desaparecia por dias e dias no fundo do mar.
Ou simplesmente evaporava, virando nuvens no ar.
Neste dia fatídico ele sentou-se de costa para a porta que se encontrava aberta.
Um vento forte entrou e arrastou tudo: tábuas tamancos tambores tamboretes...
Levou os lembretes anotados em pedacinhos de papéis, que ganharam as alturas.
Caíram, talvez na Faixa de Gaza ou no mar...
Neste dia, ele que era tão atento, distraiu-se e o chão ruiu sob seus pés.
E ainda pensou estar entrando no paraíso




Como flor do cerrado


Quero te emocionar,
levar-te às lágrimas,
para que cometas loucuras de amor...
Que percas o juízo
e como ondas de mar agitado,
erodas os barrancos que interditam a passagem de teus desejos.
Sejas como ave migratória em busca de nova estação.
Como flor do cerrado, que resplandece sob as intempéries
e se transforma em frutos de sabor alvoroçado.
A noite seja uma algaravia sobre a rede armada em troncos frondosos
e os dias de sol doire tua pele e aqueça o teu coração,
ou ainda, quando a chuva chegar, fazer o amor se renovar como as sementes espalhadas pela brisa outonal e pelas aves de arribação, transformando a paisagem em dádivas da Criação.
Assim, como flor do cerrado, que não se deixa arrancar por mãos predatórias, teu coração permaneça firme na direção do amor










Clevane


“A salamandra saiu do fogo azulado para marcar meu ventre”.
Clevane Pessoa


Clevane ele a conheceu, primeiro, pessoalmente em um encontro casual sobre cultura em movimento. Uma Pessoa de prosa e verso saudáveis. Estava debilitado, com o juízo desajustado. Não sabia a distância que separava metáforas e metonímias, vivia no mínimo. O máximo era pesadelo. Clevane foi gentil, comprou seu livro. Num momento de rara sabedoria, pediu-lhe o endereço eletrônico, pediu telefone. Mulher generosa, não tinha Pessoa no nome à toa, deu-lhe além de palavras de incentivo, o coração e a alma em plenilúnio.
     Não contente com a troca de mensagens virtuais, quis vê-la pessoalmente uma vez mais. Combinaram data, horário e local. Mas se desencontraram. Ficou triste, decepcionado por ela não ter comparecido naquela tarde em que os últimos raios de sol reverberavam nos vidros plácidos do Palácio das Artes. Nesta tarde mágica desejou saber pintar, para transferir à tela a beleza ali presente. O tormento da espera por Clevane se dissipou, quando um arcanjo pousou em seu ombro e disse: Ela não veio porque está ocupada em mais um parto, mas pensa em você diariamente, ela é uma “parteira antiga que testemunha uma vida dada à luz”. Mas espera encontrá-la, para que ela o veja segurando “as pontas da grande pipa” colorida, que enfeita o espaço, o seu mundo.




CUMPLICIDADE 2



Quando a folha caiu, o pássaro convidou a companheira e, juntos beijaram o solo úmido na manhã tépida...
Recolheram folhas mortas e construíram o ninho onde passariam o inverno.
Foi assim...
Lá, onde seus descendentes continuam a espécie.

Não quero tornar o meu amor público. Reservo as carícias à penumbra do quarto, à cumplicidade das paredes.
Como os pássaros que constroem seus ninhos construo meu afeto, minha ternura. Na cumplicidade do amor




J Estanislau Filho

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