terça-feira, 29 de junho de 2021

Eu também vou reclamar 2







Meu ouvido virou paiol
de estocar reclamações
não sou luz nem farol
a indicar as direções

reclamam da Previdência
e da falta de providência
que o trânsito é caótico
e as estradas esburacadas
tento mudar o foco
com uma boa risada
e me chamam de debochado
para lá de alienado

as reclamações são tantas
e eu acabo ficando tonto
reclamam do ônibus e do metrô
de motoristas mal educados
e das ruas lotadas de camelôs
até mesmo do pobre coitado:
uma esmola por amor de Deus
reclamam cristãos e ateus

na polícia só tem crápula
a extorquir o rico dinheiro
de pessoas sem máculas
que trabalham o ano inteiro

e assim caem em contradição
pois somos todos canalhas
não há como abrir exceção
a nossa fala é como navalha
que de tão afiada corta
fundo pessoas vivas e mortas

nem mesmo o que morreu
em seu túmulo tem sossego
reclamam de tudo a esmo
ah morreu? antes ele do que eu!

quanto ao tal homem do campo
dizem ser um grande mentiroso
que não trabalha assim tanto
na verdade é um preguiçoso
que se trabalhasse direito
que se suasse no eito
sobre a mesa teria mais alimento
e sobremesa de complemento

reclamam disso e daquilo
de fulano sicrano e coisa e tal
que comida vendida a quilo
não é lá muito legal

mas tem uma reclamação
para levar-se em consideração
ela é mesmo sensacional
quando falam de poluição
e do aquecimento global
e das multinacionais

reclamam de incêndio nas matas
e atiram cigarros acesos em beira de estrada
em casa não separam cascas das latas
latem para o motorista de táxi
reclamam dos moto-boys
de ciclistas e das taxas
falam feito maritacas

xingam policiais e bandidos
reclamam de drogas e dragas
que os humanos são vendidos
e nos sem-tetos jogam pragas

motorista berrando com pedestre
como se fosse extra-terrestre
que só pode andar no passeio
pois o carro perde o freio

então, “ta lá um corpo estendido no chão”
não foi o motorista que perdeu a direção
e tome reclamação
morreu um songamonga andando na contra-mão
porque se tivesse pegado uma ponga
talvez morresse não

as ruas são para os carros
aceleram buzinam tiram sarro
do cara que anda a pé
sai daí ô barnabé!

eu que tenho os pés como meio de locomoção
tomei a minha decisão
vou me juntar aos loucos
e reclamar do muito e do pouco
reclamar também do médio
já que não existe remédio
de curar reclamação

onde já se viu coisa tão vil?
quero já meu rivotril
e para ficar de vez tantã
também vou de lexotan!
e... segura o tchã amarra o tchã!

J Estanislau Filho


Do livro Palavras de Amor - primeira edição 2010 - Editora 24 horas

Onde encontrar:

www.livrariacultura.com.br e www.biblioteca24horas.com




 

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Das Minhas Lembranças 10

Imagem: Google


Parecia uma disputa de egos e Pedro não era afeito a reuniões de cúpula. Queria ação e as reuniões de estudo e planejamento eram demoradas, cansativas.

Quando foi se encontrar pela primeira vez com o Grande, ainda não era Pedro. Sentiu então, que fazia parte de um movimento revolucionário e o Grande era o nosso comandante. A Ó, como diziam, era uma rede de revolucionários de várias partes do país, principalmente nas capitais.

Os encontros com o Grande eram preparados com a máxima segurança, afim de despistar os agentes da repressão. Foi à partir desse primeiro contato, que recebi o codinome Pedro. Numa ocasião, fui informado de que um grupo de sindicalistas de São Bernardo do Campo e região iniciara um debate sobre a criação de um partido dos trabalhadores e que a Ó se engajaria nesta luta.  Iniciávamos um debate interno se o partido seria de massa ou de quadros. Estávamos em 1978 e a ditadura dava sinais de esgotamento.

Pedro compreendeu a necessidade de reuniões preparatórias. Não era disputa de egos, o debate era de ideias.


J Estanislau Filho


Imagem: Google


terça-feira, 22 de junho de 2021

Das Minhas Lembranças 9

Imagem: Google


Em 1987 retornei à categoria metalúrgica. Mas não à militância sindical. Até o dia em que os companheiros Juvenil Francisco e o Cachorrão, distribuindo boletim na portaria da fábrica, me abordaram. Eu não pretendia voltar à militância sindical. Trabalhava no escritório, o sindicato estava em boas mãos. Mas a consciência me cutucava. Em outra ocasião, numa campanha salarial, Juvenil e Cachorrão me convidaram a escrever algo para o Suggata, boletim especial dirigido às trabalhadoras e e aos trabalhadores da Suggar, empresa que me possibilitou retornar à categoria. A diretoria do Sindicato decidira criar um material específico para cada fábrica. Escrevi o poema abaixo, sob o pseudônimo de Bigode, que foi publicado no Suggata:


mulheres na linha de montagem


tão belo tão bom
tão sexy vê-las de mãos ágeis
mãos hábeis
as mulheres na linha de montagem...
lábios e bocas
levezas
plumas belezas
entre alicates
parafusos e parafinas
as mulheres na linha de montagem...
fazendo riquezas
construindo lucros
que sonham um dia ser dividido
repartido.
tecendo as mudanças
balançando as tranças
na linha de montagem.
sonhos e manhas nas manhãs
nas tardes que não tardam
e nas noites do País.
mulheres na linha de montagem
com sorriso doce
com pisar leve
com amor
preparam um amanhã
de luz e cor


Ao contrário da Belgo Mineira em que trabalhavam poucas mulheres, todas no escritório, na Suggar eram várias na linha de montagem. O poema acima foi escrito em homenagem a estas guerreiras.



 J Estanislau Filho




segunda-feira, 21 de junho de 2021

Eu também vou reclamar


não aguento mais ouvir tanta reclamação
prestem bem atenção
reclamam dos impostos
da saúde pública e privada
reclamam da educação
da juventude desviada
reclamam da aposentadoria que veio
da que virá
e da que não veio
reclamam por reclamar
reclamam da coleta de lixo
reclamam da biblioteca
que o salário é uma merreca...
reclamam da fila para pagar
da fila para receber
reclamam de lá e de cá
reclamam de não sei de quê
que frio e calor são irritantes
reclamam dos livros nas estantes
reclamam de quem pede esmolas
e até dos que andam com sacolas
que as pessoas são frívolas...
reclamam do vizinho
do cocô de passarinho
a chuva é um tormento
a seca insuportável
reclamam dos alimentos
reclamam do automóvel
ora do preço ora da qualidade
reclamam da vida na cidade
mas viver na roça
picado por muriçoca
presta não
que é ruim a solidão...
reclamam da cemig
reclamam da copasa
reclamam comigo
e com a dona de casa
reclamam do computador
do televisor de plasma
até mesmo de uma pobre lesma
do telefone fixo e do celular
não param de reclamar
que em minas não tem mar...
até o vento incomoda
são chatos desfiles de moda
o cachorro que não para de latir
o gato o peru e o pavão
para tudo que existir
tem reclamação
e até o que não existe
nem sequer foi inventado
alguém sempre insiste
isso ficará logo estragado
dor de cabeça e nó nas tripas
bem melhor que tulipas
que horror pimba na gorduchinha
ripa na chulipa...
tudo ataca os nervos
o sangue ferve
as pernas doem
os rins corroem
reclamam do prefeito
reclamam dos vendedores
todos têm defeitos
corruptos e corruptores
empresários são sonegadores
reclamam do futebol
das cartas e dos cartolas
que a nossa seleção não decola...
reclamam das cartomantes
das escadarias
dos elevadores
dos fumantes e das tabacarias
dos andaimes
dos andares e andores
reclamam senhoras e senhores
reclamam alunos e professores
reclamam do médico
dos odontólogos e ornitólogos
que somos carentes de ética e de psicólogos...
filhos reclamam dos pais
pais reclamam dos filhos
que a culpa é do País
e das balas que furam vidros
reclamam dos netos e da buchada de bode
reclamam de quem fode
da macaxeira e até da erva-cidreira
como reclama esse povo
que a maconha é uma porqueira...
reclamam da cadeira de balanço
e do balanço das empresas
a fazer dos clientes suas presas
ouço e isso e me canso
o marido não presta
a mulher não trepa
o galo canta na hora errada
o sapo com a mesma toada
o grilo enche o saco
o vaga-lume ilumina o vácuo
o colchão é duro mole
e está mofado
que todo mundo está magoado...
diacho o cachorro fez xixi
reclama-se de tudo por aqui
reclamam da queda na bolsa
reclamam do furo no bolso
dólar subiu o dólar caiu
que o petróleo não é nosso
que hugo chavez é imbecil
onde já se viu?
a grande mídia não gosta do moço
reclama do presidente deputados e senadores
ah são todos impostores
e se fazem de valentes
com os tais vereadores...
a imprensa é mentirosa
só noticia coisas horrorosas
reclamam dos assaltos
reclamam de muros altos
que os sapatos não têm saltos
a previdência é morosa
reclamam do sutiã e das cuecas
reclamam dos carecas
dos cabeludos e sem pelos
que a vida é um novelo
novelas não têm zelos
reclamam da tinta de cabelos
que a vida virou uma novela...
e apelam para a ignorância
reclamam da abstinência
alimentar e sexual
reclamam da inteligência
reclamam da falta dela
tudo muito vulgar e banal
reclamam dos astutos
reclamam de João e Manoela
reclamam dos prostitutos e das prostitutas
que somos todos filhos da fruta...
eu também vou reclamar
faço questão de anotar
registrar em meu diário
estou falando sério
como é injusto o judiciário
de juízes misteriosos
feita as exceções de praxe
sejamos práticos
não proferem sentenças
entrar com ação na justiça não compensa
os juízes são apáticos
o que se espera de suas decisões
são sentenças à luz da constituição
que a justiça seja justa
com a cidadã e o cidadão


J Estanislau Filho



Poema do livro Palavras de Amor - página 12 - primeira edição 2010 - editora Biblioteca 24 horas


quinta-feira, 17 de junho de 2021

Marcela e Crisóstomo

Imagem: Google


Montada em seu cavalo, Marcela galopava pelas planícies do planalto. Era de uma beleza exuberante. Os cabelos longos e perolados esvoaçavam sob a carícia do vento. Era de uma candura, que seduzia a todos. Trazia nos lábios rosados um sorriso esplêndido, deixando à mostra os dentes brancos como leite. Os que a viam perdiam-se de amor e desejo. Marcela declinava os inumeráveis pretendentes, pois queria preservar sua liberdade. Sua beleza ganhou o mundo. De todas as partes vinham homens e mulheres, para ver e se encantar por Marcela.

Eis que um dia o jovem Crisóstomo a intercepta em sua cavalgada nas planícies do planalto central, com a suave melodia vinda de sua flauta. Marcela freia a montaria, para ouvir a canção. Ouve e observa ao redor, até visualizar o jovem, no topo de um morro, sentado sobre o tronco de uma árvore. Crisóstomo continua a melodia, interrompida pelos aplausos de Marcela. Desce o morro com a agilidade que a juventude premia. Marcela desce da montaria e, movidos por uma força interior incontrolável, o jovem casal se abraça. Marcela e Crisóstomo não veem o tempo passar. Sobre a relva, declaram seu amor. Quando a noite chega e as primeiras estrelas jogam luz sobre o amor nascente, testemunhas das juras e promessas de amor eterno. Os encontros se tornam rotina, sempre às escondidas, distante dos olhares da legião de seguidores de Marcela.

Surgem comentários maliciosos. Marcela e Crisóstomo são alvos da inveja. Suas vidas, ameaçadas. Por outro lado, os que apoiam, também se manifestam e fazem um escudo protetor em volta desse amor puro. Os pais aprovam, felizes, o romance e começam os preparativos ao enlace matrimonial. Agora Marcela cavalga pelos páramos em companhia de seu amor.

Aproxima-se o dia de núpcias. Tudo preparado com requinte. O lugarejo está em festa, ruas enfeitadas; os invejosos vigiam pelas frestas das janelas, remoendo de ódio. Crisóstomo aguarda no altar a entrada de Marcela. Os sinos tocam, o maestro aguarda a entrada triunfal da noiva, a mais bela e cobiçada de toda a região do planalto central, para iniciar o repertório musical escolhido pelos jovens noivos.

Marcela está atrasada. Os convidados esperam. Alguns consultam o relógio. O padre mostra-se inquieto. Comenta-se em voz baixa, que as mulheres sempre atrasam, por vaidade ou perfeccionismo. O tempo passa. Os sinos silenciam. Porquê Marcela demora? É o que cada convidado pergunta em seu íntimo.

Um mensageiro entra e conversa ao pé do ouvido do pai da noiva, que em seguida, dirigi-se ao padre. Os convidados cochicham entre si.

Marcela optou pela liberdade, anuncia o vigário, completando: - Voltem para suas casas, mas se preferirem, vamos todos comemorar. Afinal, o banquete e os músicos esperam. Quanto a você, Crisóstomo, que cara é esta?

- Cara de alegria, seu vigário. Se Marcela é feliz assim, porquê prendê-la? Voltarei aos páramos com minha flauta, livre!

Consta que Marcela e Crisóstomo continuam se encontrando nos campos, sob as carícias das águas dos rios, lagos e cachoeiras, longe dos olhares amestrados pelas normas artificiais.


J Estanislau Filho


Inspirado em uma passagem de Dom Quixote.