domingo, 31 de março de 2019

pequeno esboço de um autorretrato




não sei de quem partiu a ideia
de se autodefinir na vida

se bem que a falta de definição
já seria a própria

ainda a pouco me perguntaram
o que esperava da vida

ora bolas preciso refletir
confesso nunca pensei sobre isso

assim como nunca pensei
o que espero da morte

talvez me falte espírito filosófico
como disse Jasper se não me engano

ando tão desatento que sequer
tenho reparado as coisas do universo

é isso mesmo

disseram-me que o homem foi à lua
fiquei ouvindo sem nada responder

julgando que eu não acreditava
arremataram dizendo que isto era fichinha

há até a possibilidade
de uma guerra nas estrelas

e dispararam a falar
um amontoado de coisas:

mísseis energia nuclear laser satélites
conquista do espaço vídeo-cassete

aquilo tudo foi entrando em meus ouvidos
sem que eu tivesse pedido

deixei os caras falando
acho que não notaram minha saída

como é? você acredita em deus?
pra qual time você torce?
vê a novela das oito?
massa! e a seleção?
a constituinte vai mudar nossas vidas
o senado vota uma nova lei do uso do solo

um moço lia um jornal exposto em uma banca
parei observando:

ele está se informando...

quando saí toquei em seu ombro e perguntei:

moço me explique uma coisa
porque não se resolve o problema da fome?
diante de tantas proezas por que há fome?

ele me olhou com olhos arregalados
e respondeu: sei lá! você é doido?

e me deixou plantado sem resposta

quando conversamos com amigos é natural
que todos expressem seus pontos de vistas
sobre variados assuntos:
política sexo religião amor arte e ...
aí não temos como fugir

pego meu copo de cerveja
com a maior seriedade falo
procurando não chocar ninguém
[afinal esta conversa vai dar em nada]
e acabo não falando o que penso:
é que nestas horas chego à conclusão que não reparo
nas coisas e a minha opinião não vem ao caso,,,

quando disse a uma menina sensível tudo isso
ela observou:
deve ser muito triste viver assim

J Estanislau Filho


Do livro Três Estações-edição do autor-1987






sexta-feira, 29 de março de 2019

Nuvem Branca

                                                                    Imagem: jef


Uma nuvem branca como algodão habita o céu de minha infância.
Eu a trago comigo na lembrança, como em sonho lembro dela
voando sob o azul infinito, fazendo evolução,
transformando-se em pássaro, em figura humana, numa ovelha
ou num monstro.
Vejo a criança olhando-a, encantada, imaginando coisas que,
em geral, só passam pelas cabeças de crianças, de poetas
ou de loucos:
sentado no colo da nuvem, desafiando a lei de gravidade,
voando, enquanto da terra as pessoas de bom senso
assistem horrorizadas.
Outras crianças, loucos, poetas e a prostituta Lurdinha,
aplaudem entusiasmadas.
A nuvem branca mora comigo.
Ainda hoje, embora adulto e os adultos quase sempre são sem graça,
saí para vê-la:
olhei o céu, mas só havia algumas nuvens cinzentas, sem a beleza
da nuvem branca de minha infância.
Triste como uma criança quando lhe tiram o doce,
senti as lágrimas rolarem em minha face.
Foi só por um momento, pois criança se distrai facilmente e
a cara triste fica alegre ao ver um brinquedo.
Nesse momento foi saindo do bolso de minha camisa, uma nuvem.
No começo era apenas uma fumacinha.
À medida em que ganhava o espaço ia crescendo...
Fazia evoluções incríveis:
Ora um coelhinho; ora um pássaro, um monstro, gato...
Vi, inclusive meu avô Pascoal, sorrindo.
Confesso que nestas horas esqueço uma série de obrigações,
mas conservo a capacidade de sonhar.
Assim, todos os dias saio para vê-la, feliz,
sentado no tronco de uma árvore.
Passo horas contemplando os números esplêndidos
que ela faz só para mim.
Digo só para mim, não por egoísmo.
Até convidei alguns amigos, mas eles não conseguem vê-la,
riem e me chamam de louco, visionário.
Algumas crianças têm me procurado ultimamente
e passamos momentos agradáveis.
Eles gostam principalmente de vê saindo do meu bolso,
dão risadas estrondosas e ficam tristes quando a chamo de volta.
Pensam que sou mágico.
E se vão contentes, pois prometo-lhes,
dando pipocas, que no dia seguinte voltaremos a vê-la.


                                                               Imagem: ml


25-04-1989

Do livro O Comedor de Livros - 1991


quinta-feira, 28 de março de 2019

As Dúvidas de Fátima

                                                                    Imagem: jef


Fátima de Albuquerque só tomou consciência de que era solteira e livre ao comemorar cinquenta e cinco anos de vida. Estava sob fogo cerrado das amigas há mais de oito anos, para que saísse da abstinência sexual desde que separara de Claudionor, aos quarenta e cinco. Portanto comemorava os cinquenta e cinco anos de idade e dez de separação. Dez anos de tortura, afora, pelo menos, mais dez de vida a dois. Porque no começo eles até que se davam bem e tiveram três filhos, ou melhor: um filho e duas filhas: Flávio, Ana Clara e Lúcia. Flávio, o caçula, morava com ela. Parece não ter conseguido superar a fase edipiana. 

Brindaram, com espumante francês! Mas Fátima estava insegura e não queria fazer sexo com qualquer um. Não se lembrava de como era um orgasmo. Nem tinha certeza se tivera algum. Depois de ter saído de uma relação dramática, só não entrou em profunda depressão por causa dos filhos. Sublimou-se. 

Voltou a pensar em fazer sexo. A ideia foi crescendo e se desenvolvendo mais rápido do que ela pensava. Começou a sentir arrepios repentinos. A suar sem mais nem menos e sentir um calor gostoso entre as coxas. Até que um dia não suportou e se masturbou. Mas sentia-se insegura, não sabia como abordar um homem, ela que recebera uma educação conservadora.

- Fátima, os tempos mudaram. As mulheres estão no comando - diziam-lhe as amigas, em conluio.

Foi então que Flávio convidou o amigo João Batista a ir à sua casa, para mostrar-lhe sua parafernália eletrônica. Mas João se encantou mesmo foi com a mãe. Olhou-a de soslaio e ela sentiu um arrepio. Aproveitou o instante em que o outro foi ao banheiro e disse para Fátima, assim na lata:

- Estou afim de você. Posso te ver uma hora dessas?

- Pode vir amanhã, às dez. Aqui em casa! Flavinho não estará - respondeu sem pestanejar. Em seguida se arrependeu, "ai, Fátima, sua tonta, não seja tão fácil". Era tarde para voltar atrás. Também não queria.

Batista se fez de difícil: chegou às dez e trinta e foi logo agarrando Fátima com leveza. Ela amoleceu. Beijou-a de língua. Fátima sentia o ar sumir. Arrancaram as roupas e fizeram sexo na cozinha, em pé, contra a parede. Depois do amor, saborearam um delicioso bolinho de chuva. Durante cerca de um ano encontraram-se ao menos uma vez por semana para fazerem sexo. Gostavam de gozar olhando-se nos olhos, que ficavam mágicos nestes momentos. Ela dava longos suspiros quando ele sussurrava em seu ouvido a palavra gostosa. Fátima se transformou em outra mulher. Foram dias felizes até João entender ter chegado a hora de romper os laços. Deu adeus a Fátima, que retribuiu com um aceno e um sorriso. 



J Estanislau Filho





terça-feira, 26 de março de 2019

Toda Felicidade do Mundo

                                                               Imagem: google

Ao receber o convite para o casamento da prima que morava em uma cidade do interior de Minas, João Batista sentiu-se feliz por ela. Recordou com nostalgia o primeiro beijo. Era o início de suas adolescências e se beijavam sentindo o calor um do outro, sem entender exatamente o que estava acontecendo. Gostaram tanto e tacitamente encontravam-se às escondidas sob o porão da antiga casa de fazenda. Ambos filhos de famílias conservadoras, não receberam educação sexual. Aprenderam como todos aprendiam naquele tempo: observando os animais no cio, cães e cadelas, bois e vacas, cavalos e éguas, porcos e porcas, entre outros.

Quer dizer que Valquíria vai se casar, dizia para seus botões, enquanto observava a paisagem rural da janela do ônibus, puxa vida! Ah, se nossos pais soubessem o quanto aprontamos. O primeiro beijo a gente nunca esquece! O primeiro orgasmo também - lembrava-se esboçando um leve sorriso.

Estava tão distraído com a paisagem da janela e com os pensamentos em Valquíria, que não percebeu uma mulher sentar-se ao seu lado em uma parada. Viajava à noite, para chegar na parte da manhã ao pequeno município. Reclinou a poltrona para dormir, pois precisava chegar descansado para aproveitar o dia visitando amigos e parentes. As luzes do ônibus estavam apagadas. De repente as luzes se acenderam e ele acordou pensando ter chegado ao seu destino. Tratava-se de mais uma parada. Reparou então a mulher do lado e sorriu-lhe educadamente. Convidou-a para um lanche e ela aceitou. Conversaram sobre amenidades. Quando a viagem foi retomada, mal as luzes foram apagadas, João enfiou a mão entre as coxas da companheira de viagem, que ficou quieta. Deslizou a mão até a calcinha, após umedecer a ponta do indicador com saliva e masturbou-a com delicadeza. Enquanto ela respirava com sofreguidão, puxou a mão dela até seu pênis e ela também o masturbou. Beijaram-se e se agarraram e só se soltaram, quando se aproximavam da cidade, com o dia despontando. Ela ajeitou os cabelos com as pontas dos dedos, abotoou a blusa. Ao chegarem, cada um tomou seu rumo. Nunca mais se viram.

Chegou à casa de Valquíria. Ela não se encontrava, preparava-se para o casamento à noite em uma casa especializada. Como estava muito cansado, caiu na cama e dormiu. Foi Valquíria quem o acordou para o almoço. Abraçaram-se e sorriram. Valquíria estava feliz, amava o noivo. João desejou-lhe felicidades.

A igreja estava lotada. Foi uma cerimônia belíssima. Ele conduziu Valquíria e a entregou ao futuro marido, pois ela era órfã há cerca de dois anos e meio. Sentiu-se honrado em substituir o pai. À noite teve baile, comida e bebida com fartura. Os noivos viajaram para a luz de mel em Poços de Caldas. Tudo por conta de João Batista.

Voltou à Capital no dia seguinte, recordando a infância e a adolescência vivida com a prima. Desejou-lhe toda felicidade do mundo.



J Estanislau Filho


               Imagem de meu mais recente lançamento

domingo, 24 de março de 2019

Paraíso

                                                          Imagem: zéfiro-via Chico Sá

Sueli não mais amava Otávio, que se transformou em um decrépito chato a fazer algumas exigências a todos em casa. A principal: abstinência de carne vermelha. Suas duas belas filhas e os dois belos filhos já não eram mais crianças e ansiavam por liberdades que Otávio insistia em interditar. Sueli casou-se com ele, quando tinha apenas dezessete anos e ele trinta e oito. Otávio estava agora com sessenta e Sueli com trinta e nove, cheia de energia. A diferença de idade não constitui obstáculo ao amor, mas a implicância destrói relações. A vida de Sueli virou um inferno, pois Otávio vigiava os seus passos, os gestos, sua fala e colocou gravador no telefone. Sueli bem que tentou ajudar Otávio, mas machista como era, não quis procurar tratamento para a sua disfunção erétil.

Enquanto Sueli cuidava da casa e fazia artesanato, para ajudar nas despesas domésticas, Otávio se contentava com a aposentadoria irrisória. Sueli era uma mulher de sentimentos opostos: queria manter-se fiel, mas seu corpo ardia em chamas. Sentia-se insegura. Sofria. Lembrava com nostalgia dos tempos em que Otávio a tratava com respeito e carinho. A autoestima estava tão baixa, que nenhum homem... Bem, até surgir João Batista em sua vida. O safado tinha um forte instinto em localizar mulheres carentes. Sueli era uma presa fácil. Começou então o assédio. Tudo com muita discrição, para tranquilizar Sueli e despistar Otávio.

                                                                  Imagem: google

Sueli estava a ponto de explodir aos assédios. João estava atento aos passos de Otávio. No dia em que ele se ausentou, aproveitou e foi à casa de Sueli. Tudo fora tacitamente combinado. Nem bem abriu a porta eles se abraçaram e se beijaram. João perguntou pelos filhos, Sueli o acalmou, fique tranquilo, não estão em casa. E foi ela quem tomou a iniciativa: arrancou a roupa de João, deixando-o como veio ao mundo. Em seguida despiu-se com desenvoltura: venha para a minha cama, fique aí, deitado... Sueli sentou-se suavemente sobre seu membro ereto, deixando-se penetrar, em movimentos frenéticos, subindo e descendo, emitindo grunhidos lascivos. Depois do orgasmo ela se debruçou sobre os ombros de João, abrindo um sorriso de felicidade. Tornaram-se amigos, amantes e confidentes. Três meses depois Sueli dispensou Otávio de sua vida. João, com receios de criar vínculos mais fortes, afastou-se discretamente. Meses depois a viu entre beijos e abraços com um jovem, na fila do cinema.
Adeus bolinhos de chuva, lamentou.


J Estanislau Filho




sexta-feira, 22 de março de 2019

A Lei é Dura

                                                                      Imagem: jef



Não era uma mulher bonita, mas tinha lá o seu charme, além do mais, cercada dos perigos, que excitavam João Batista: era casada com um policial. João quase enlouqueceu. Foi precavido, sondou o terreno, avaliou os prós, mais os prós, e os contras. Para ele, policial e bandido não tinha diferença: se vacilar, vai comer capim pela raiz.

Vira Neuza algumas vezes, "a mulher da bunda grande e seios fartos" como gostava de chamá-la, fazendo compras no supermercado do bairro, tendo, inclusive se aproximado dela com uma conversa mole.

Finalmente encontrou uma alternativa razoável: apresentar-se ao casal como profissional de serviços gerais, marido de aluguel.

Improvisou um uniforme, confeccionou um crachá, muniu-se de uma caixa de ferramentas e tocou o interfone. O policial, vestido apenas com um short apertado, um cara e-nor-me, abriu a porta:

- Pois não!

- Sou profissional autônomo, conserto fogões, geladeira, chuveiro, ferro de passar (disse ferro de passar com ar irônico), tomadas com defeito e até gatos se o freguês se responsabilizar, porque sabe, a lei é dura...

- Fique tranquilo, respondeu o policial, não estou de serviço, mas você chegou em boa hora. Acabei de tomar banho frio, pois o chuveiro pifou. Eu vou colocar a farda e aí sim, estarei de serviço, para correr atrás de vagabundo. Faça o conserto, combina com Neuza.

Tirou as ferramentas, cutucou aqui e ali, ganhou tempo. Quando Claudionor saiu, o serviço estava pronto: era apenas um fio solto. Ao tentar seduzir Neuza, foi colocado para fora da casa aos socos e coronhadas de um revólver.

- Desgraçado, porco-chauvinista, não preciso de homem para me defender. E se dê por satisfeito  de eu não contar ao Claudionor, idiota.


J Estanislau Filho



quinta-feira, 21 de março de 2019

A Mulher do Patrão




Não passava pela cabeça de João Batista, caso se casasse um dia, receberia o troco. Mas ele não pensava em se casar, talvez devido a um processo complexo de consciência. O fato: não resistia em assediar mulheres casadas, em especial as carentes. "Esses maridos que não dão assistência às suas mulheres, merecem", pensava.

Também podia ser considerado um irresponsável, juntamente com algumas destas, que o recebiam sem se incomodarem com a ausência de preservativos. Quanto à beleza, não se incomodava. "A beleza de uma mulher está na alma", era o seu bordão.

Durante um tempo, trabalhou em uma grande empresa metalúrgica como torneiro mecânico. Uma mulher bonita fez uma visita à fábrica, acompanhada por seguranças. Ao vê-lo sujo de graxa torneando uma peça, parou curiosa. Perguntou-lhe sobre o funcionamento da mesma. Pacientemente, após retirar a máscara e os óculos de segurança, explicou detalhadamente para a bela loura de olhos azuis e pele hidratada, como se manuseia um torno. Foi ao notar a aliança e-nor-me nos dedos da madame, que ele arriscou:

- Posso lhe telefonar? Ela forneceu-lhe um cartão com o número do celular.

Uma semana depois ela o pegou em um carro luxuoso, em local seguro, e foram ao um motel distante da capital. No sétimo encontro, João e a Madame encontraram-se pela última vez. João se demitiu, profundamente feliz por ter trepado com a mulher do patrão, e triste por ter sido dispensado por ela.



J Estanislau Filho



quarta-feira, 20 de março de 2019

Alma Gêmea



João Batista tinha algumas qualidades que as mulheres com as quais saíam gostavam:

Primeiro, era discreto. Não alardeava suas conquistas. Segundo, sabia ouvir, falava pouco e tinha uma intuição forte em dizer o que elas queriam ouvir. Terceiro, era um amigo. Tornou-se amigo de todas, exceto de Luzia, que exigia fidelidade. Ficou amigo inclusive de algumas em que o sexo não rolou. E finalmente, sabia esperar e tinha sempre uma palavra de consolo, quando desabafavam suas tristezas e mágoas. Levava uma lembrança à amada: Uma muda de planta, uma peça de decoração doméstica, uma peça íntima, que elas exibiam para os maridos tontos
.
Maura era uma mulher esplêndida. Casada com funcionário público que só chegava em casa embriagado, ela não pensava duas vezes: ia se encontrar com João Batista, na casa dele. Quando voltava, por volta das vinte e três horas, o marido estava roncando ou ainda não tinha chegado.

Quando não está bêbado, está reclamando de alguma coisa, dizia para sim mesma, talvez para justificar a sua traição. O traste nem me procura mais. Mas tem suas qualidades, não deixa faltar nada em casa, tem um bom salário.

Maura iniciava o ritual erótico diante do espelho, enquanto Batista permanecia deitado, olhando-a tirando peça por peça, dançando ao som de uma música imaginária. Inteiramente nua, rebolava sensualmente, mordendo os lábios. João, nu, excitado, não tirava os olhos de cima dela. Tudo maravilhoso durante quase um ano, quando a coisa começou a desandar. Primeiro Maura contou-lhe que o marido tinha outra mulher. E ao contar, chorou copiosamente. João propôs pararem com os encontros, afinal, Maura estava dividida.

Ficaram quase quinze dias sem se ver, quando o telefone tocou: era Maura, queria vê-lo. O marido saíra de casa e tinha ido morar com a outra, lamentou.

- Mas há males que vem pra bem, consolou ele, agora você está livre, a gente pode sair da clandestinidade. Quem sabe a gente possa morar junto. Penso em construir um lar.

- Se você frequentar a minha igreja, prometo pensar. E farei deliciosos bolinhos de chuva...


J Estanislau Filho



segunda-feira, 18 de março de 2019

O Poeta e a Paisagem



Para Carlos Drummond de Andrade




Um homem sentado
           acorrentado
em uma cadeira de vime
           pousa os olhos
num ponto

Seu olhar perdido
                aturdido
     suas mãos cruzadas
     parecem correntes atadas
num canto

Além da janela, um tanto triste,
      a paisagem enferma implora
              ao poeta sentado
            atenção e cuidado
num pranto

O homem levanta
             se espanta
com lágrimas de sangue, descrucifica a paisagem
            e a envolve
num manto


J Estanislau Filho




Poema do livro Três Estações - Edição do autor - 1987





sexta-feira, 1 de março de 2019

Suzana





Suzana trouxe alegria e leveza aos seus dias outrora desordenados. Ela afirma, categoricamente, que rir é o melhor remédio. Contraditoriamente leva isso a sério. Segue à risca esse princípio, a ponto de rir das próprias trapalhadas, como pedir ao vizinho casado, para abotoar o seu vestido cheio de botões nas costas, depois de uma noite etílica. Quando a esposa aparece e vê a cena, imaginem a e-nor-me saia justa! Nesse caso, vestido justo. Acorda os moradores do prédio, por causa de uma horripilante, porém, inofensiva barata.
   Ele quer conhecer Suzana pessoalmente. Ela diz aceitar o encontro. Mas ele desconfia, receia ser alvo de seu humor satírico. Ou ficar com cara de tacho a espera da mulher sedutora, que não irá ao encontro. Desconfia, também, que por trás dos textos leves, soltos e hilários de Suzana, esconde uma mulher triste. Mas no fundo acredita que Suzana seja mesmo uma pessoa de bem com a vida, tal a sua transparência.
   Vai correr o risco do encontro. Imagina uma conversa acompanhada de um bom vinho nacional, pois o espumante francês não cabe em seu parco orçamento, assim como um vinho do Porto. Se ela preferir um suco natural, ou uma caipirinha, ele vai gostar. A não ser que ela banque a conta, o que seria deselegante. Nos tempos atuais, o correto é a divisão. Dirá a ela para que o encontro seja na Cantina do Lucas, no edifício Maleta. Se ela não comparecer, vai lembrar-se dos tempos em que Seu Olímpio servia-lhe doses generosas de uísque. A generosidade de Seu Olímpio era somente aos comunistas. Dose reduzida aos clientes capitalistas. Na concepção do garçom comunista, era uma forma de se fazer justiça. Como Robin Hood.
   Outra ideia é surpreender Suzana em sua caminhada matinal  na esplêndida Praça da Liberdade. Pensa levar-lhe uma rosa, cuja cor ainda não definiu. Se ela cair na gargalhada, será alvo de seu bom humor. Mas se lágrimas sutis brotarem, bom sinal. Sinal de que ela, além de bem humorada, tem sensibilidade à flor da pele.


J Estanislau Filho


Obs.: Esta crônica integra o livro Crônica do Amor Virtual e Outros Encontros - 2012 - Esgotado.