domingo, 29 de janeiro de 2023

Das Minhas Lembranças 56

 



Da esquerda para a direita: Geraldo, Rubens, eu, Dayrel e Altair


Sem dúvida,  foi uma decisão corajosa lançar dois livros de uma tacada!

     Aconteceu em 2009 no Parque Ecológico do Eldorado, em Contagem, ao lançar Filhos da Terra (crônicas), com prefácio de Ignácio Hernandez e Todos os Dias são Úteis (poesias),  com prefácio de Clevane Lopes.  Filhos da Terra teve a capa criada por  Berzé e ilustrações internas de Eliana Belo. Mais uma vez as editorações eletrônicas ficaram por conta de meu filho Fernando, que também criou a capa de Todos os Dias são Úteis. Me lembro bem dos deliciosos caldos servidos aos convidados pelas mãos solidárias de minha nora,  Angélica Rodrigues e sua irmã Ailza,  ao som do violão e voz de Raimundo Pradino.  Geraldo Bernardes cuidava da venda dos livros.

Da esquerda para a direita: Geraldo, Cida, eu, Ciro e Lalá. No Parque Ecológico

 

     Enquanto escrevia as crônicas de Filhos da Terra,  que sugaram as  minhas energias, eu descansava escrevendo os poemas de Todos os Dias são Úteis.  E ao dizer sobre uma decisão corajosa, ou talvez, desafiadora lançando dois livros ao mesmo tempo é por conta de uma conjuntura desfavorável ao escritor alternativo e marginal, quando o perfil de leitoras e leitores migrava para a internet. O livro impresso me parecia com os dias contados.  Mas não foi por causa disso que Filhos da Terra consumiram minhas energias.  Foi por causa do meu envolvimento com os personagens da trama.  Em especial com Zenaide, a mais linda garota do bairro, destruída pelas drogas.  Logo no início do livro, um poeta e personagem declama na praça do bairro esses versos: 


prazer

quero me perder
nas ondulações sensuais do teu corpo
cegar-me com o brilho dos teus olhos


quero seguir
o teu hábito
achar-me em teus passos


quero sentir
o teu hálito
embriagar-me em teus braços


como as ondas do mar beijando a areia
quero beijar teu corpo
em cada curva estacionar meu sonho


quero ser atrevido
violar os teus sentidos
afogar-me em tuas águas
mar de delícias
envolver-me em carícias


roçar meu corpo em tua pele
sentir o calor
brotar em nossos poros


quero me atazanar me estrepar
em teus espinhos
conquistar palmo por palmo errante
tua selva misteriosa
eleger-me teu bandeirante


quero teu corpo molhado suado
a formar vapor subindo
virando nuvens no céu


chuva caindo sem assombro
sobre a terra fértil
quero-te ave de múltiplas cores
pousada sobre meu ombro.


Ilustração: Eliana Belo



     O início promissor da garota indicava um fim trágico.  Mas estas lembranças não são para revelar o livro, e sim, como aconteceram  os lançamento no Parque e no  Usina Cine Belas Artes,  naquele novembro de 2009.




     O erro que eu cometera em publicações anteriores aconteceu com Filhos da Terra, talvez pela ânsia de publicar: falha na revisão ortográfica, que viria descobrir após leitura posterior.  E assim que considerei o livro pronto , não quis passar pelo sofrimento da releitura. Eu me sentia extenuado. Mas é um filho de papel muito especial. Se houver a chance de uma segunda edição, estas falhas serão corrigidas, que diga-se de passagem, não interferem no conteúdo. Não me lembro exatamente o número de exemplares, mas foi por volta de quatrocentos, duzentos de cada título. 

     Pouco tempo depois do lançamento no Parque Ecológico, fiz um segundo no Usina Cine  Belas Artes de Belo Horizonte, com a participação musical das bandas Taxmann e Negume. Trata-se de um espaço mantido pela Usiminas. O local, diria, cult, tem um pequeno palco para apresentações musicais, café, livraria e lógico, cinema.



     Creio que o sonho de todo escritor e escritora é ver seus livros, em primeiro lugar sendo lidos e/ou expostos em bibliotecas e livrarias.  Na medida do possível, doei exemplares para algumas bibliotecas.  De novo é preciso "fazer poeira", ou seja, levar os livros até os leitores.  Conheci escritores e escritoras criativos na divulgação de seus filhos de papel.  Teve um, para chamar a atenção da mídia, enviou às redações mensagem de que pularia de um edifício às tantas horas. TV, rádios, jornais e revistas impressas enviaram repórteres ao local.  Outros e outras fazem performances em locais públicos.  Fiz apenas um ensaio de um  projeto cultura sobre rodas, em Tiradentes, durante um festival de cinema.  A ideia era ter dois ou mais títulos e viajar num carro aos municípios, no meu caso, de Minas Gerais,  para apresentar e vende.  O cultural sobre rodas não andou.  Depois descobri a livraria do Edson Drumond, no bairro JK, em Contagem, que acolhia e vendia os livros de autores independentes.  Vinicius Cardoso, jornalista, foi quem me apresentou ao Edson.  Meu lançamento duplo, além de Crônicas do Cotidiano Popular foram expostos nas vitrines da Livraria Leitura do Big Shopping e do Itaú Power, também em Contagem, pela intermediação de meu amigo João Basílio.





quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Das Minhas Lembranças 55

Casa Azul - Contagem-MG


Quinze anos após o lançamento de O Comedor de Livros, lancei, em 2006 o meu primeiro livro de crônicas, sendo que algumas delas foram extraídas do  boletim Intercâmbio, do Grupo Oficina de Sonhos.

     Crônicas do Cotidiano Popular, com cento e dez páginas,  edição de bolso, recebeu uma atenção especial. Não poderia cometer os mesmos erros de publicações anteriores.  A professora Cristina Almeida fez uma revisão primorosa. O jornalista e militante das causas socioambientais, Elian Guimarães de Oliveira escreveu o prefácio. Convidei o grafiteiro Maizena para ilustrar a capa e algumas crônicas.  Maizena  recebeu cinquenta exemplares, como forma de pagamento. 


Ilustração: Maizena
 

     Não fossem os mecenas da cultura popular, não seria possível  publicar  meus livros, sendo que alguns  adquiriram pacotes de dez e até cinquenta exemplares.  Na minha trajetória de escritor e poeta alternativo, tive a solidariedade e o talento de  Berzé (ilustrações),  Tânia Orsi (revisão), Roberto e Fernando, meus filhos (ilustrações e editoração eletrônica), Eliana Belo (ilustração). Regina Rodrigues e Nayara Bernardes (recepção e vendas), José Prado e Guinho (apresentação musical), Ronaldo Freitas e Aninha Viola (apresentação musical),  Clevane Lopes (prefácio), Marcio Almeida (poeta e crítico literário), Carlos Lúcio Gontijo (prefácio),  os professores Vicente de Paulo e Geraldo Batista, da escola Municipal Jonas Barcelos, de BH (prefácio e divulgação),  Claudia Buffet e Decorações (coquetel), Tax Man Blues e Grupo Negume (apresentação musical), Edson Drummond (livreiro), Claret (Pizzaria Jones), Usina Belas Artes, Palácio das Artes, Prefeitura Municipal de Contagem, As rádios Inconfidência e Itatiaia, TV Minas.  Geraldo Bernardes, que faleceu precocemente, a minha eterna gratidão, solidário em todos momentos bons e difíceis de minha vida.

      Crônicas do Cotidiano Popular,  com mil e quinhentos exemplares, foi a minha maior tiragem,  esgotada rapidamente. O lançamento aconteceu na Casa Azul, do Centro Cultural de Contagem.




      Em 2007 me conectei à internet, onde encontrei novos leitores e leitoras.


J Estanislau Filho

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Das Minhas Lembranças 54

Ilustração: Roberto Caio - meu filho


Não me lembro se tive alguma ilusão de ganhar dinheiro com a venda de meus livros.  Cobrindo os custos, já me dava por satisfeito, ou seja, do ponto de vista  financeiro, trocar seis por meia dúzia.  Se pudesse, as tiragens seriam maiores e as distribuiria gratuitamente.  Como disse Lewis Hyde em seu livro A Dádiva, uma obra de arte não se enquadra como mercadoria, uma vez que é fruto do dom, que o artista recebe de graça.

     Dito isto, lancei em 1991, teimosamente, O Comedor de Livros em mais uma edição do autor.  Foram mil exemplares, sendo que o empresário Lúcio Costa, adquiriu  algumas dezenas.  De novo contei com a solidariedade caseira de meus filhos Roberto e Fernando. O primeiro desenhou a capa e o segundo fez a editoração eletrônica. O lançamento aconteceu no Palácio das Artes.  Teve também um lançamento no Circo Voador, instalado na praça da estação, em Belo Horizonte.  Entre os lançamentos, creio ter sido o mais elaborado até então.


Fernando(meu filho) com minha nora Angélica e meu neto Raul


O Comedor de Livros


Lia livros e mais livros
Com olhos e boca
A cada livro que lia
Em seguida o comia
Comia com olhos – que a terra há de comer
Com boca e dentes para melhor entender
Comia-os como sanduíches
Com mostarda e catchup
Tragédias dramas
Qualquer trama
Para compreendê-los
Bom mesmo era comê-los
Sentiu forte emoção
Em Cem Anos de Solidão
Com Ulisses ficou aturdido
Em Busca do Tempo Perdido
Sentiu um misto de tristeza e alegria
O que não aconteceu em A Escolha de Sofia
Comendo Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
Sentiu-se farto satisfeito
Com Orlando – metade homem metade mulher
Despediu-se com um aceno
Para comer A consciência de Zeno
E comeu com regozijo Enquanto Agonizo
Ao comer o Deserto dos Tártaros chorou
Comeu Poema Sujo
De Pessoa comeu os heterônimos
Comeu autores anônimos
Com As Flores do Mal
Sentiu um apelo um sinal
E comeu Lima Barreto Bandeira Sartre e Machado
Castro Alves Maiacoviski e Callado
E comeu Rimbaud Sthendal Camus e Afonso Romano
Comeu por engano discos do Chico e do Caetano
E comeu Saramago Cecília Amado Dikhinson e Adélia Prado
Becket Dos Passos Chaucer Kafka Verlaine e Arrabal
E comeu toda biblioteca municipal
Devorou as livrarias da cidade
E após uma certa idade
Sentindo-se mal
Foi levado às pressas ao hospital...

Morreu na fila por falta de atendimento.


Uma das dificuldades do autor marginal é fazer o livro chegar aos leitores. É preciso fazer poeira, como me diria anos depois a amiga e parceira de letras Edna Lopes.  Distribuir em livrarias, sem chances. Mas eu até tentei a mídia algumas vezes.  A TV Minas, que é pública,  divulgou o lançamento. Por ter sido lançado no Palácio das Artes, houve divulgação, tanto deste, quanto de Três Estações, no Jornal Estado de Minas, no qual o poeta Márcio Almeida tinha uma coluna de crítica literária. Enviei ao colunista um exemplar de O Comedor de Livros e de Três Estações. A crítica dele foi dura, me sugerindo, inclusive a tentar a prosa. Acatei, em parte, a sugestão, lançando em 2006, Crônicas do Cotidiano Popular, tema do próximo capítulo. 


Raio em Céu Azul*


na cabeça do homem na cabeça da vaca
na cabeça de quem quer que seja
seja Deus seja santo
seja eu sejam tantos...
quantas flores
quantas dores
quanta guerra
quanta era de aquário...
quanto luto quanta luta
“quantas barricadas por seis sardinhas infelizes” (Jacques Prévert).
tanto alto quanto salto quanto assalto no escuro
eu tanto procuro
este “obscuro objeto do desejo” (L. Bunel).
quanta cópula quanta cúpula
quanta coisa esdrúxula:
mariposa cheia de tetas
ideias repletas de tretas
“tiranos fazendo planos para dez mil anos” (Bertolt Brecht).
e que me vale
e que me serve este sexo
este plexo complexo de édipo
eu perplexo enquanto
“elétrons deificam uma gilete em macroescala” (T. S. Eliot).
minha mãe
santa criatura
hermética partitura
nesse meu inconsciente do inconsciente coletivo
vendo “minha cabeça servida numa travessa” (T.S. Eliot).
que me vale que me valha
“duas mãos e o sentimento do mundo” (Carlos Drummond de Andrade).
“o dono da tabacaria” (Fernando Pessoa).
procissão romaria:
“É de sonho e de pó o destino de um só” (Renato Teixeira).
com uma faca na garganta
uma molécula uma tarântula:
“quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos me ouviria?” (Rilke).
mesmo que ouvisse de que adiantaria?
“tem piedade, Satã, desta longa miséria!” (Charles Baudelaire).
nem anjos nem demônios
arcanjos querubins
protegerão meus neurônios
“allons! Seja você quem for, venha comigo viajar” (Walt Whitiman)
“sem medo de ser feliz” (Hilton Accioly)
neste tom neste som
que fornalha em meus ouvidos
este caco este saco este asco fiasco sustenido
este corte esta morte
este amor inconcebível
“troço de louco, corações trocando rosas e socos” (Paulo Leminsk)
ainda assim a gente grita a gente corre
“atrás da mesma alegria fatal” (Konstantino Kaváfis).

* Poema premiado e publicado em uma antologia poética do Miramar Shopping

 J Estanislau Filho

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Das Minhas Lembranças 53



 Em 1987 editei e publiquei Três Estações, com o prefácio de Francisco Marques, o Chico dos Bonecos:

AS TRÊS ESTAÇÕES DO POETA NO MUNDO

No seu primeiro livro, NAS ÁGUAS DO ARRUDAS,  Estanislau  já anunciava a sua poesia com momentos brilhantes como este:

ROBERTO

menino disperso
cabeça nas nuvens
pensamento no vento
olhar que não vê
sorriso distraído

menino atento
cabeça azáfama
pensamento ao léu
teu olhar é arte
teu sorriso inventa


em qual estória em quadrinhos pensas
quando esqueces o para casa?
que estória inventaste pelo caminho
que te fez esquecer o recado?


menino, invente estórias
deixe a imaginação tomar conta de tua cabeça
continue assim te amo assim
distraído, sensível, cabeça nas nuvens
coração na mão.


É importante reler este poema, porque é a síntese do seu olhar comovido e indignado, mas acima de tudo mágico. E este seu novo livro, TRÊS ESTAÇÕES, vai aprofundar esta visão mágica de forma especial: o poeta busca a companhia do leitor, para atravessar, de mãos dadas, as três estações de sua experiência poética, que é, fundamentalmente, no caso de Estanislau, a sua experiência de vida. Sua e nossa também, de muitos, poetas com ou sem palavras.

Na PRIMEIRA ESTAÇÃO, o poeta - ao mesmo tempo autor, personagem metáfora - está amarrado, retorcido num amaranhado de dúvidas e impasses. E declara:


"prefiro pescar até o cansaço tomar conta do meu corpo" (A Pescaria).


Na SEGUNDA ESTAÇÃO, descobre os traços de luz revelando novos objetos e pessoas. A luz ajuda a se revelar na revelação do outro. O poeta já fabrica a sua própria luz:


"era preciso encontrar, não o seu passado, mas o momento presente, o novo homem que surgira." (O Viajante II).

Aqui ele anuncia, sereno e "indomável": "o que fizeram do amor é tudo mentira." (O Amor).


Na TERCEIRA ESTAÇÃO, o poeta abraça a vida, descobre o seu lugar no mundo, no "deslugar" dos que ousam ser estranhos e teimosos. Transfigura a realidade porque agora, o "novo homem" refaz o trágico e o amargo através do olhar mágico do poesia. Exemplo maravilhoso e maravilhado desta sua nova visão de mundo: o poema O Consertador de Guarda-Chuvas". E outros: "Espetáculo Pirotécnico", e "A Praça".

Ilustração: Eliana Belo


Eu, você, nós leitores, de mãos dadas com o poeta Estanislau, somos convidados a atravessar estas TRÊS ESTAÇÕES e ser capazes, agora como nunca, de reparar "o que quase ninguém repara "como daquelas mãos trêmulas ele consegue dar pontos, prender barbatanas..." (O Consertador de Guarda-Chuvas).

O convite está feito. Vamos?


*Francisco Marques*

Escritor, poeta, ventríloquo, manipulador de bonecos e diabolô.


Imagem: Google - Chico dos Bonecos



     O meu segundo livro teve uma edição mais caprichada que o anterior, com capa colorida e ilustrada por Eliana.  O miolo acolheu ilustrações de meu filho Roberto Caio.  O lançamento aconteceu no Sindicato dos Jornalistas. Houve também um segundo lançamento no Palácio das Artes.  Ambos em Belo Horizonte. Lúcio Costa, dono da empresa Suggar,


Imagem: Google - Lúcio Costa


onde trabalhei por quase dez anos, adquiriu cerca de cem exemplares e distribui aos funcionários, o que praticamente me garantiu o pagamento da edição de mil exemplares. 


Primeira Estação


Seu olhar percorre a paisagem,
observando os locais...
Leva consigo lembranças de cidades,
pessoas e cais

Segunda Estação


Você tem a profundidade do oceano,
mistérios que não ousa revelar,
quero mergulhar em suas águas
e os seus segredos desvendar


Terceira Estação


Quando seu coração se abrir
para o mundo
seus olhos serão sementes
germinando luz


J Estanislau Filho

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Das Minhas Lembranças 52







1980 é o início do fim da ditadura militar. Era impossível conter o grito de liberdade, que brotava em todos os lugares.  As greves de 1979 sacudiram o país e abalaram os alicerces do sistema opressor.

     Nos anos oitenta várias manifestações artísticas e culturais ganhavam as ruas e as mentes das pessoas. Na música, destaque para o rock nacional.  Surgiam várias bandas. MPB, cinema, teatro, entre outros movimentos, indicavam que a ditadura estava acuada.

     A literatura também soltou a voz, ou melhor, os textos. A poesia circulava nas mesas dos bares, ruas e praças. A criatividade de escritores e escritoras  provocava agito.  A necessidade de comunicar era intensa. Conheci alguns artistas de rua e de bares. O edifício comercial do Maleta, no centro de Belo Horizonte era o ponto de encontro de artistas famosos e outros nem tanto.  E de alguns políticos, como José Aparecido.  Milton Nascimento era outro que vez em quando marcava presença. Evaldo Martins ia de mesa em mesa oferecendo seus cartazes, com seus poemas ilustrados. Biel, que já era meu amigo e que morreria anos depois num acidente de trânsito numa rodovia do Espírito Santo, também oferecia seu livro de poemas aos clientes nos diversos bares e restaurantes do Maleta e de toda BH e região metropolitana.

     Frequentador do Maleta desde 1975, onde conheci o Seu Olímpio, o garçom comunista, que viria  receber o título de cidadão honorário de Belo Horizonte alguns anos depois e  que me servia doses generosas de uísque, certa noite me mostrou o livro de Pablo Neruda, Confesso que Vivi, autografado.

     A poesia veio ao encontro de novos autores e autoras na década de oitenta.  Um boom como se dizia. As formas de imprimir eram muitas. Na maioria em mimeógrafos, que acabou sendo rotulada de geração mimeógrafo.  Poetas marginais.  Havia impressão em papel higiênico, calendários,  artesanatos de madeiras,  por meio de  pirógrafos.  A criatividade entalada se soltava de várias formas. Outro autor que deixou sua marca nos anos oitenta em Belo Horizonte foi Rogério Salgado. 

     O movimento nascido nos anos oitenta me levou a reunir alguns poemas escritos à partir, principalmente, da segunda metade da década de setenta, acrescidos por alguns já no início dos oitenta e imprimir o livro Nas Águas do Arrudas. Uma edição precária, com erros de digitação, porém com um pouco mais de qualidade que os mimeógrafos.  Berzé fez a ilustração da capa, além de uma charge irônica em que eu carrego às costas  um lápis, simbolizando as dificuldades de um escritor publicar seu livro fora da indústria cultural.




     O lançamento, com uma tiragem de mil exemplares aconteceu na Pizzaria Jones, à Rua Tiradentes, no Bairro Industrial, em 1984 e varou a madrugada. Quem animou o lançamento, ao som do violão e voz, foram José Prado e José Maria, o Guinho. Claret, o dono da pizzaria me disse que foi a noite mais movimentada da casa. Depositou sobre a mesa em que eu autografava, uma garrafa de uísque, como brinde, além dos petiscos. 

     A primeira e única edição de Nas Águas do Arrudas, praticamente esgotou-se nessa noite inesquecível. 


Nas águas do arrudas


nas águas do ribeirão arrudas
muda
a ideologia
muda
o canto torto
o rato morto
o sonho do poeta
sem rima
sem métrica
a paz eterna
o esperma
o amor
o odor
o grito
sufocado
engasgado
do esmagado
explorado
nas águas do ribeirão arrudas

d

e

s

c

e

m

os bolos

cais
do executivo
executivo
do patrão
da madame
(a madame caga no arrudas)
o corpo
morto
de um morador das adjacências
que sem paciência

c

a

i

u

nu

n

o

arru

d

a

s

sem esperar
a época das chuvas
pois no arrudas
pode morrer
em tempos de
encheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnnttteeeeesssssssssss
oh poeta incompetente
onde está o ritmo
a rima
a cadência
a tônica tônica
atônica
atônito
atômico
autônimo
autômato
antônimo
autonomia
onde está?
?
já não se fazem poetas como antigamente...
o estilo
ah o estilo
(há o estilo)
afinal que paí...
digo, estilo é este?
é um estilo
à imagem e semelhança
dos dias em que viVemos
julgados
condenadoSOS
culpados
(até que nunca provem que são inocentes)
exilado
cagado
mijado
ado ado ado do do
dor dor dor dor dor dor dor
(não me condenem: eis aí a rima (apreciadores) estética)
ia me esquecendo
nas águas do arrudas

d

e

s

c

e

m

os bolos fecais
do operário
do mendigo
do homem
do menino
que canta com outros meninos de mãos dadas em frente
a televisão
“liberdade é uma calça azul e desbotada”
(este é um poema que vai pra frente
nas
águas
do arrudas)
livremente
calmamente
(rima pobre)
transportando os anseios
os não-anseios
de um povo
(“povo é abstração”)
nas águas do arrudas
(“lugar de estudante é na escola”)
(“pra pensar pensamos nós”)
(“o Brasil é feito por nós”)
(“é hora de confiar”)
(“é hora de mudar”)
nas águas do arrudas
nas águas do arrudas
por
onde
descem
os bolos
fecais
(“ame-o ou deixe-o”)
da meretrizes
da grã-fina
dos zeferinos
dos infelizes
dos psicólogos
dos filósofos
dos sociólogos
dos ideólogos
ogos
ogos
ogos
do masoquistas
dos fascistas
do padre
do camelô
do gigolô
do doto
do inquisidor
(“revogo as disposições em contrário”)
nas águas do arrudas
onde

d

e

s

c

e

os bo

los

fe

cais

(dos colunáveis,
dos presidenciáveis)
do marginal
do desempregado
(“o futuro a Deus pertence”)
adeus futuro
nas águas do Ribeirão Arrudas
onde há igualdade social
(ou a deles é melhor?)

J Estanislau Filho