quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Das Minhas Lembranças 52







1980 é o início do fim da ditadura militar. Era impossível conter o grito de liberdade, que brotava em todos os lugares.  As greves de 1979 sacudiram o país e abalaram os alicerces do sistema opressor.

     Nos anos oitenta várias manifestações artísticas e culturais ganhavam as ruas e as mentes das pessoas. Na música, destaque para o rock nacional.  Surgiam várias bandas. MPB, cinema, teatro, entre outros movimentos, indicavam que a ditadura estava acuada.

     A literatura também soltou a voz, ou melhor, os textos. A poesia circulava nas mesas dos bares, ruas e praças. A criatividade de escritores e escritoras  provocava agito.  A necessidade de comunicar era intensa. Conheci alguns artistas de rua e de bares. O edifício comercial do Maleta, no centro de Belo Horizonte era o ponto de encontro de artistas famosos e outros nem tanto.  E de alguns políticos, como José Aparecido.  Milton Nascimento era outro que vez em quando marcava presença. Evaldo Martins ia de mesa em mesa oferecendo seus cartazes, com seus poemas ilustrados. Biel, que já era meu amigo e que morreria anos depois num acidente de trânsito numa rodovia do Espírito Santo, também oferecia seu livro de poemas aos clientes nos diversos bares e restaurantes do Maleta e de toda BH e região metropolitana.

     Frequentador do Maleta desde 1975, onde conheci o Seu Olímpio, o garçom comunista, que viria  receber o título de cidadão honorário de Belo Horizonte alguns anos depois e  que me servia doses generosas de uísque, certa noite me mostrou o livro de Pablo Neruda, Confesso que Vivi, autografado.

     A poesia veio ao encontro de novos autores e autoras na década de oitenta.  Um boom como se dizia. As formas de imprimir eram muitas. Na maioria em mimeógrafos, que acabou sendo rotulada de geração mimeógrafo.  Poetas marginais.  Havia impressão em papel higiênico, calendários,  artesanatos de madeiras,  por meio de  pirógrafos.  A criatividade entalada se soltava de várias formas. Outro autor que deixou sua marca nos anos oitenta em Belo Horizonte foi Rogério Salgado. 

     O movimento nascido nos anos oitenta me levou a reunir alguns poemas escritos à partir, principalmente, da segunda metade da década de setenta, acrescidos por alguns já no início dos oitenta e imprimir o livro Nas Águas do Arrudas. Uma edição precária, com erros de digitação, porém com um pouco mais de qualidade que os mimeógrafos.  Berzé fez a ilustração da capa, além de uma charge irônica em que eu carrego às costas  um lápis, simbolizando as dificuldades de um escritor publicar seu livro fora da indústria cultural.




     O lançamento, com uma tiragem de mil exemplares aconteceu na Pizzaria Jones, à Rua Tiradentes, no Bairro Industrial, em 1984 e varou a madrugada. Quem animou o lançamento, ao som do violão e voz, foram José Prado e José Maria, o Guinho. Claret, o dono da pizzaria me disse que foi a noite mais movimentada da casa. Depositou sobre a mesa em que eu autografava, uma garrafa de uísque, como brinde, além dos petiscos. 

     A primeira e única edição de Nas Águas do Arrudas, praticamente esgotou-se nessa noite inesquecível. 


Nas águas do arrudas


nas águas do ribeirão arrudas
muda
a ideologia
muda
o canto torto
o rato morto
o sonho do poeta
sem rima
sem métrica
a paz eterna
o esperma
o amor
o odor
o grito
sufocado
engasgado
do esmagado
explorado
nas águas do ribeirão arrudas

d

e

s

c

e

m

os bolos

cais
do executivo
executivo
do patrão
da madame
(a madame caga no arrudas)
o corpo
morto
de um morador das adjacências
que sem paciência

c

a

i

u

nu

n

o

arru

d

a

s

sem esperar
a época das chuvas
pois no arrudas
pode morrer
em tempos de
encheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnnttteeeeesssssssssss
oh poeta incompetente
onde está o ritmo
a rima
a cadência
a tônica tônica
atônica
atônito
atômico
autônimo
autômato
antônimo
autonomia
onde está?
?
já não se fazem poetas como antigamente...
o estilo
ah o estilo
(há o estilo)
afinal que paí...
digo, estilo é este?
é um estilo
à imagem e semelhança
dos dias em que viVemos
julgados
condenadoSOS
culpados
(até que nunca provem que são inocentes)
exilado
cagado
mijado
ado ado ado do do
dor dor dor dor dor dor dor
(não me condenem: eis aí a rima (apreciadores) estética)
ia me esquecendo
nas águas do arrudas

d

e

s

c

e

m

os bolos fecais
do operário
do mendigo
do homem
do menino
que canta com outros meninos de mãos dadas em frente
a televisão
“liberdade é uma calça azul e desbotada”
(este é um poema que vai pra frente
nas
águas
do arrudas)
livremente
calmamente
(rima pobre)
transportando os anseios
os não-anseios
de um povo
(“povo é abstração”)
nas águas do arrudas
(“lugar de estudante é na escola”)
(“pra pensar pensamos nós”)
(“o Brasil é feito por nós”)
(“é hora de confiar”)
(“é hora de mudar”)
nas águas do arrudas
nas águas do arrudas
por
onde
descem
os bolos
fecais
(“ame-o ou deixe-o”)
da meretrizes
da grã-fina
dos zeferinos
dos infelizes
dos psicólogos
dos filósofos
dos sociólogos
dos ideólogos
ogos
ogos
ogos
do masoquistas
dos fascistas
do padre
do camelô
do gigolô
do doto
do inquisidor
(“revogo as disposições em contrário”)
nas águas do arrudas
onde

d

e

s

c

e

os bo

los

fe

cais

(dos colunáveis,
dos presidenciáveis)
do marginal
do desempregado
(“o futuro a Deus pertence”)
adeus futuro
nas águas do Ribeirão Arrudas
onde há igualdade social
(ou a deles é melhor?)

J Estanislau Filho

8 comentários:

  1. Adorei ler sobre o cenário cultural de BH nos anos 80. Fiquei feliz de ver uma citação ao meu pai, Tubiel, que infelizmente nos deixou cedo demais! Grande abraço. Brisa Marina

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    1. Obrigado, Brisa, que ser lido pela filha de meu amigo Tubiel. Volte mais vezes!

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  2. Histórias e lembranças bem traçadas. Parabéns 👏🏽

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  3. Período difícil para a cultura, contudo as criações artísticas amenizavam a realidade. Lindo demais o teu escrever neste contexto político - cultural.

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  4. Excelente seu poema, Stanislau! E os relatos sempre surpreendentes! Abç Suzana

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