domingo, 15 de janeiro de 2023

Das Minhas Lembranças 54

Ilustração: Roberto Caio - meu filho


Não me lembro se tive alguma ilusão de ganhar dinheiro com a venda de meus livros.  Cobrindo os custos, já me dava por satisfeito, ou seja, do ponto de vista  financeiro, trocar seis por meia dúzia.  Se pudesse, as tiragens seriam maiores e as distribuiria gratuitamente.  Como disse Lewis Hyde em seu livro A Dádiva, uma obra de arte não se enquadra como mercadoria, uma vez que é fruto do dom, que o artista recebe de graça.

     Dito isto, lancei em 1991, teimosamente, O Comedor de Livros em mais uma edição do autor.  Foram mil exemplares, sendo que o empresário Lúcio Costa, adquiriu  algumas dezenas.  De novo contei com a solidariedade caseira de meus filhos Roberto e Fernando. O primeiro desenhou a capa e o segundo fez a editoração eletrônica. O lançamento aconteceu no Palácio das Artes.  Teve também um lançamento no Circo Voador, instalado na praça da estação, em Belo Horizonte.  Entre os lançamentos, creio ter sido o mais elaborado até então.


Fernando(meu filho) com minha nora Angélica e meu neto Raul


O Comedor de Livros


Lia livros e mais livros
Com olhos e boca
A cada livro que lia
Em seguida o comia
Comia com olhos – que a terra há de comer
Com boca e dentes para melhor entender
Comia-os como sanduíches
Com mostarda e catchup
Tragédias dramas
Qualquer trama
Para compreendê-los
Bom mesmo era comê-los
Sentiu forte emoção
Em Cem Anos de Solidão
Com Ulisses ficou aturdido
Em Busca do Tempo Perdido
Sentiu um misto de tristeza e alegria
O que não aconteceu em A Escolha de Sofia
Comendo Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos
Sentiu-se farto satisfeito
Com Orlando – metade homem metade mulher
Despediu-se com um aceno
Para comer A consciência de Zeno
E comeu com regozijo Enquanto Agonizo
Ao comer o Deserto dos Tártaros chorou
Comeu Poema Sujo
De Pessoa comeu os heterônimos
Comeu autores anônimos
Com As Flores do Mal
Sentiu um apelo um sinal
E comeu Lima Barreto Bandeira Sartre e Machado
Castro Alves Maiacoviski e Callado
E comeu Rimbaud Sthendal Camus e Afonso Romano
Comeu por engano discos do Chico e do Caetano
E comeu Saramago Cecília Amado Dikhinson e Adélia Prado
Becket Dos Passos Chaucer Kafka Verlaine e Arrabal
E comeu toda biblioteca municipal
Devorou as livrarias da cidade
E após uma certa idade
Sentindo-se mal
Foi levado às pressas ao hospital...

Morreu na fila por falta de atendimento.


Uma das dificuldades do autor marginal é fazer o livro chegar aos leitores. É preciso fazer poeira, como me diria anos depois a amiga e parceira de letras Edna Lopes.  Distribuir em livrarias, sem chances. Mas eu até tentei a mídia algumas vezes.  A TV Minas, que é pública,  divulgou o lançamento. Por ter sido lançado no Palácio das Artes, houve divulgação, tanto deste, quanto de Três Estações, no Jornal Estado de Minas, no qual o poeta Márcio Almeida tinha uma coluna de crítica literária. Enviei ao colunista um exemplar de O Comedor de Livros e de Três Estações. A crítica dele foi dura, me sugerindo, inclusive a tentar a prosa. Acatei, em parte, a sugestão, lançando em 2006, Crônicas do Cotidiano Popular, tema do próximo capítulo. 


Raio em Céu Azul*


na cabeça do homem na cabeça da vaca
na cabeça de quem quer que seja
seja Deus seja santo
seja eu sejam tantos...
quantas flores
quantas dores
quanta guerra
quanta era de aquário...
quanto luto quanta luta
“quantas barricadas por seis sardinhas infelizes” (Jacques Prévert).
tanto alto quanto salto quanto assalto no escuro
eu tanto procuro
este “obscuro objeto do desejo” (L. Bunel).
quanta cópula quanta cúpula
quanta coisa esdrúxula:
mariposa cheia de tetas
ideias repletas de tretas
“tiranos fazendo planos para dez mil anos” (Bertolt Brecht).
e que me vale
e que me serve este sexo
este plexo complexo de édipo
eu perplexo enquanto
“elétrons deificam uma gilete em macroescala” (T. S. Eliot).
minha mãe
santa criatura
hermética partitura
nesse meu inconsciente do inconsciente coletivo
vendo “minha cabeça servida numa travessa” (T.S. Eliot).
que me vale que me valha
“duas mãos e o sentimento do mundo” (Carlos Drummond de Andrade).
“o dono da tabacaria” (Fernando Pessoa).
procissão romaria:
“É de sonho e de pó o destino de um só” (Renato Teixeira).
com uma faca na garganta
uma molécula uma tarântula:
“quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos me ouviria?” (Rilke).
mesmo que ouvisse de que adiantaria?
“tem piedade, Satã, desta longa miséria!” (Charles Baudelaire).
nem anjos nem demônios
arcanjos querubins
protegerão meus neurônios
“allons! Seja você quem for, venha comigo viajar” (Walt Whitiman)
“sem medo de ser feliz” (Hilton Accioly)
neste tom neste som
que fornalha em meus ouvidos
este caco este saco este asco fiasco sustenido
este corte esta morte
este amor inconcebível
“troço de louco, corações trocando rosas e socos” (Paulo Leminsk)
ainda assim a gente grita a gente corre
“atrás da mesma alegria fatal” (Konstantino Kaváfis).

* Poema premiado e publicado em uma antologia poética do Miramar Shopping

 J Estanislau Filho

8 comentários:

  1. Agora a tarde tirei um tempo pra ler ,foi tão bom ler que li umas três vezes.meu abraço no coração .Maria Luiza Bremide.

    ResponderExcluir
  2. Seus poemas são muito interessantes! Ler, escrever e ser lido! São esses os sonhos e ações de nós, os escritores! Parabéns, persistência sempre!

    ResponderExcluir
  3. Parabéns. Obrigada por dividir conosco

    ResponderExcluir
  4. Maravilhosos poemas. Magistralmente reflexivos. Aplausos mil

    ResponderExcluir