quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Construção

 

Estava deitado na rede da varanda de nossa casa, contemplando o jardim e as aves miúdas que brincavam e procuravam alimento na grama e nas folhas das palmeiras. O que era pra ser uma simples distração transformou-se em reflexão. Destruir o jardim que levara anos a se formar, bastaria algumas horas. Mesmo hoje, com tecnologias avançadas, construir uma escola, um hospital ou um condomínio residencial consome um bom tempo de trabalho e grana. Mas meus pensamentos se fixaram na construção de uma casa simples, básica, porém digna de ser habitada por uma família pequena. Afinal, hoje em dia as famílias não são numerosas. Pensei numa casa de três quartos, sala, cozinha, um banheiro, área de tanque, uma varanda. Cômodos pequenos. Pensei num quintal, onde tivesse espaço para uma cadela, ou um cão. Prático, também pensei numa pequena horta: uns pés de couve, cheiros, essas coisas.

     Para essa construção é necessário um planejamento. Um engenheiro desenha a planta; um pedreiro, que além de pedreiro é eletricista, telheiro, bombeiro hidráulico é contratado. Supondo que o dono da obra levara anos economizando e tenha a grana suficiente para bancar a construção. Beleza. Inicia-se os trabalhos. Tijolos, areia, cimento, ferragens, tinta, portas e janelas, enfim, tudo à disposição dos trabalhadores.

     Quanto tempo levarão pra concluir a obra? Considerando que os trabalhadores são feras, em algumas semanas já bateram a laje. Agora é necessário uma pausa, para a laje se firmar. Depois de alguns dias, podem retirar o escoramento. Nesse ínterim assentam marcos, portas e janelas. Para não alongar a narrativa, a casa está pronta pra ser habitada. A casa ficou pronta em cinco meses. É muito? Dois meses, menos que isso é improvável. Hora de mobiliar. Os moradores estão felizes. Eis que um outro personagem surge na história.

     Trata-se de um cidadão de posses. Ele gostou do local da construção. "Vou lucrar muito, comprando isso", pensa. E se apresenta interessado em adquirir o imóvel. Com seu faro especulativo, oferece xis. O dono recusa. Mas o empresário na verdade é lobista de uma grande construtora. Usa todos os "recursos" disponíveis para pressionar o proprietário, que não resiste. Vende a casa, duramente construída.

     O novo dono bota tudo abaixo. Em uma semana? Não, ele tem pressa. Em dois dias a construção é demolida, para dar lugar a um prédio de dez apartamentos.

     O pensamento, sim, estava apenas pensando, enquanto contemplava os passarinhos no jardim. Tudo isso me levou ao seguinte questionamento: quanto tempo e recursos foram necessários para construir a Petrobras? Para construir portos e aeroportos? Malha rodoviária e ferroviária? E o Sistema Único de Saúde, popularmente conhecido por SUS, quanto tempo e recursos foram necessários?

     Então conclui: construir demora. Destruir é rápido.


J Estanislau Filho





domingo, 25 de outubro de 2020

Sô Lalá, um simples e sábio cidadão

Imagem cedida por José Carlos



Nesta breve narrativa,
Vou contar a trajetória
Duma mente criativa
E sua incrível história.
Trata-se do mano Lair,
Ou Sô Lalá, em casa e aqui...

Foi no ano de 1936,
No interior de Minas Gerais,
Outubro do dia 26,
Para a alegria dos pais,
Nasceu um menino,
Primogênito do casal:
Umbelina Alves e José Estanislau...

O menino foi crescendo
E aos poucos aprendendo
Os valores dum bom cidadão:
Honestidade e amor no coração,
Mas aprontou poucas e boas,
Enquanto o tempo ia passando
Como um pássaro que voa...

Montado numa égua mansa,
Que se fingia de sonsa,
Lalá que ainda não era "Sô",
Muita gente ele "assustô",
Como se fosse um valentão
Pelas ruas de São João!
[São João do Oriente]

Pra roça voltou contente,
Pra levar uma bronca
E aprender que cara valente,
Com Seu Zé não se brinca...

E ao mudar pra Jampruca,
Lá ficou por poucos anos,
A roça era uma arapuca,
Ele tinha outros planos,
Se mandou pro Rio de Janeiro,
Queria ser ator, comediante,
Ou talvez um cancioneiro...

Mas a coisa não deu certo,
Difícil fazer cinema,
Voltou de novo pra perto
Da mãe e do pai,
Pra se casar com Helena...

No roçado não quis ficar,
Pra capital de Minas partiu
Que era o melhor lugar
De tornar-se guarda-civil...

Foi na capital mineira
Que ele tomou consciência
Que durante a vida inteira
A uma classe pertencia:
A dos trabalhadores...

Descobriu que os exploradores
Eram os patrões, burgueses,
Em busca de mais e mais dinheiro,
Só queriam lucro todos os meses...

Desta consciência crítica,
Emerge outro cidadão,
De consciência política,
Que almeja mais que pão...

Quer a riqueza dividida
Com quem a produz
Para ter qualidade de vida,
Como a queria Jesus...

Abraçou a militância
Das causas sociais
E sem arrogância
Caminha com seus iguais...

A consciência de classe pedia
Outra forma de engajamento,
Com paciência revolucionária refletia
O que decidir naquele momento...

No PT se filiou
No exato ano da fundação,
Empunhou a bandeira com amor
Com a paz em seu coração...

Bato no esquerdo do peito
E falo do orgulho que sinto,
Não pra qualquer sujeito
Ter um irmão distinto...

Um amigo e bom pai,
Sem ser paternalista,
Levanta quando cai,
Como um cristão socialista...

Meu amigo, meu irmão,
Pra você bato palmas, peço bis
E reitero minha admiração,
Juntos, sem medo ser feliz
Muitos aniversários seus virão...



J Estanislau Filho


Imagem: Eu e o mano Lalá

sábado, 17 de outubro de 2020

Itapema

Imagem: jef


O corpo ainda dorme,
fogo-apagou em alarme,
miquinhos com fome

Os pés tocam a lama
do mangue de Itapema,
para acordar a alma

Crianças catam mariscos,
maré baixa oferta petiscos,
que dizem excitantes

O mar está pra peixe
com a maré alta,
pescador espreita

Amendoeira de galhos
na calçada de Dona Celeste,
brisa balança as folhas


J Estanislau Filho



Imagem: jef



terça-feira, 13 de outubro de 2020

Uma simples visita

Imagem: Facebook
 

                   Encontrou-o no quarto, um tanto quanto encolhido na cama espaçosa, olhando aleatoriamente a televisão, com aquele tipo de olhar que dá a impressão de nada ver. O barulho da porta fez com que virasse levemente a cabeça e observasse a sua entrada. Um sorriso meio sem vontade apontou no rosto emagrecido.


                  – Vim te ver, meu tio.


                  O velhote acomodou-se nos travesseiros, entre desconfiado e surpreso. Ele, propriamente, não sabia o que dizer, a não ser fazer umas perguntas sobre a situação do tio, que terminara sozinho, naquela clínica acanhada. Lembrava-se bem da época em que ele arrotava grandeza. Lembrava-se bem do desdém que demonstrava em relação aos que não considerava vencedores, como ele.


                   –  Estão te tratando bem aqui?


                  Uma das mãos levantou-se num gesto vago, indefinido, os olhos meio que se fecharam, depois abriram-se lentamente. Aquele parente sempre o desconcertava, fosse no sucesso, fosse na decadência. Sim, era assim que o via agora, triste e esquecido.  Explicou-lhe que ia viajar em seguida, de volta para casa. Saiu pensativo, estaria ele captando algo, naquela altura dos acontecimentos?


                  Encontrou a dois passos da clínica uma casa de cestas de presente, cestas caprichosamente adornadas,  com conteúdos apetitosos: frutas, doces, mimos diversos. Comprou uma e pediu que entregassem no quarto do tio. Aquela iniciativa atenuou o desconforto que experimentava, enquanto se distanciava da cena que acabava de vivenciar.


Beatriz Mecking


Imagem: Facebook


Beatriz Mecking é pelotense, mestra em Teoria literária pela PUC-RS. Aposentou-se como professora do Departamento de Letras da UFPel. Tem quatro livros publicados: Tempo de Renascer (contos, 1997), Histórias do Cotidiano (contos, 2001), Os passos de Júlia (novela, 2008) e Curtas Histórias (minicontos, 2014).

Pertence a várias academias de Letras e participa do Recanto das Letras (Béti Mecking).



domingo, 4 de outubro de 2020

Coroa Imperial

Imagem: jef

No império dos sentidos
a visão leva um choque,
o cérebro num toque
apura os ouvidos.

Rendida afaga as pétalas,
aroma insólito
anunciando conflito
entre a sede e a fome.

J Estanislau Filho


Imagem: jef


Da série pra não dizer que não falei de flores


 

sábado, 3 de outubro de 2020

Cântico negro

 






"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Das Certezas de Sempre



O tempo, o vento e as muitas lembranças pesam, mas também trazem levezas.
As certezas estão minguantes, difíceis, quase etéreas, mas sei que ainda quero minha boca  suspirando sorrisos, murmúrios, poemas e canções de amor.
Ainda quero ser eu, com minhas contradições, minhas manias e minha fome de vida.
Ainda quero arrepio na pele, abraços de boas vindas, gargalhadas, acenos nas despedidas, saudades para acumular.
Ainda quero vida escorrendo nos olhos, estrelas no céu da boca, versos de bem querer e todas as surpresas que corações e almas ainda desejem e se permitam.
Não sei se ainda seremos nós, mas não vou abrir mão de viver, de sonhar os sonhos que me cabem e que luto por eles, diuturnamente.
O tempo, o vento e as muitas lembranças podem pesar, mas já aprendi que tem jeito de não doer nos ombros, no coração e na memória da pele.
Já aprendi e ainda quero ensinar.

Edna Lopes





Edna por Edna Lopes


Por dever de ofício, minha convivência diária é com a palavra escrita. Sou professora-pedagoga, casada e mãe de um lindo menino de doze anos. Por prazer e encantamento, a palavra escrita também é minha opção de vida. Escrever quase sempre é catarse, mas não se iludam: não é autobiografia.

Escrevo, principalmente, para afirmar quem sou o que penso e sinto em relação a situações de vida, vividas e/ou sonhadas. Posso contar ainda que já estive em algumas batalhas. E, se por um lado fizeram-me crescer, alargar meu horizonte de menina nascida no interior, acinzentaram, vez ou outra, o verde dos meus olhos. Hoje, mais do que nunca, minha militância é pela vida.

Enfim, desde que me acostumei a ouvir estrelas, sorriso nos lábios, nariz empinado e olhar na linha do horizonte além de ser marca registrada é atitude para enfrentar o que der e vier.

Tenho dito.