sábado, 3 de outubro de 2020

Cântico negro

 






"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio

5 comentários:

  1. Stan, conheço e adoro. Esse poema é para mim um dos melhores em língua portuguesa. Darta

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  2. Conheço o poema. Fiz uma poesia glosa a partir de um mote deste belo poema: meu, Canto da Vida. Abraço e obrigada por compartilhar.

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  3. Oi, J.! Não conhecia o poema inteiro (só a partir de do verso: "Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém" até o seu final), tampouco desconhecia a autoria. O poema é uma potência em expressividade. Nos invade desde o início e instiga a conhecer o que vem, verso após verso. É uma rebeldia linda, consciente e plena de autoconhecimento. Um desafio aos que querem imputar-nos regras com as quais discordamos, e precisamos apenas dizer que não, não vamos pelo seu caminho. É uma construção maravilhosa. Intensa e bela! Obrigada por compartilhar! Abraços

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    1. Quis Dizer: Tampouco conhecia a autoria...

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  4. Não conhecia a autoria, mas confesso que é de arrepiar. O autor no convida a refletir sobre o autoconhecimento. Somos únicos.

    Abraço, Stanislau.
    Corina Sátiro

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