quarta-feira, 27 de maio de 2020

O catador de grãos de areia



Todos os dias ele caminhava pela orla marítima observando o ir e vir da maré. Metódico, fazia o mesmo percurso ao pôr do sol. Mesmo quando o astro se encontrava sob nuvens ou sob chuva.  Os moradores do vilarejo marcavam as horas quando ele saía e retornava.
     Sempre se sentava de frente ao mar em meditação. Depois retornava à cabana. Momento de abrir o bornal e despejar num tampo de vidro os grãos que catara durante a caminhada. Pacientemente selecionava os que considerava mais lapidados pelo tempo e os colocava numa gaveta, envoltos em papel crepom. Os excluídos devolvia à praia, para continuarem seus processos de burilamento pelas intempéries. Em seguida deitava-se na rede da varanda e ouvia o som da natureza. Vivia, portanto, em estado permanente de contemplação. 
  Contra a sua vontade tornara-se  personagem do vilarejo. O proprietário da única pousada, percebendo a oportunidade de atrair turistas, divulgou nas redes sociais:  "além de nossas belas paisagens, venham conhecer o nosso catador de grãos de areia". 
     Assim o vilarejo tornou-se uma atração turística.


J Estanislau Filho







Imagem: Diego Bravo via João Basília


Imagem: Google

Arquimedes é considerado pai da notação científica,pois ele desenvolveu um método de representação numérica para estimar quantos grãos de areia existiam no universo.O estimado por ele foi de de 1x1063 grãos.Mas para poder demonstrar sua tese,Arquimedes teve de se basear em estimativas de distâncias entre a terra e a lua e entre a terra e o sol




terça-feira, 26 de maio de 2020

Os Cegos


Imagem: Google

 
   Homens nas filas, alguns sérios, outros em algazarras comprando ingressos para uma partida de futebol.
    Casais sorridentes, casais distraídos na fila do teatro, para assistirem a uma peça divertidíssima.
       Nas filas, os cegos.
  Tumulto nos supermercados e em lojas de departamentos em busca de mercadorias em promoções; atropelo nos shopping's; nas ruas, máquinas envenenadas envenenam a atmosfera.
    Nas ruas, os cegos.
  Machões babam sobre seios de silicones; nas boates desejam a strep e se embebedam.
 Mulheres escolhem vestidos, calcinhas, sapatos, brincos e brincam de modelos, desfilam... Como se estivessem nas passarelas ou em novelas.
   Homens e mulheres não se entendem sobre a novela, o bem e o mal; as notícias do jornal. Se compram um carro novo ou se fazem uma viagem internacional.
    Garotos e garotas se acotovelam diante do hotel, para uma foto, um autógrafo, um aceno do novo ídolo pop, enquanto mascam chicletes e acessam a net em seus I pod's, not's.
      Moçoilas e moçoilos se sacodem ao som da nova dupla sertaneja.
      No show sertanejo universitário, cegueira coletiva.
    O krack, o kréu, o oxi sem oxigênio assustam os cegos. E os crédulos almejam o céu.
      O consumo e o suprassumo consomem os cegos.
   Além de cegos, surdos, mudos nas garras do absurdo.
J Estanislau Filho
Obs.: Esta crônica foi escrita em 1975.  Em 2013 a publiquei  no site Recanto das Letras, onde escrevo desde 2008, com algumas mudanças. Para minha surpresa ela teve quase 300 visualizações. 

domingo, 24 de maio de 2020

Misericórdia




Tentou gritar, mas o som rouco estancou-se na garganta.
Lágrimas escorreram desarticuladas, umedecendo o piso de terra batida do tugúrio derradeiro.
Esforçou-se em acender o pavio e dar cabo à solidão feroz e às reminiscências do contubérnio, que julgara enexcedível em sua vivência nos páramos.
O cincerro aziago anunciava seu cataclismo.
Colocou-se de joelhos e recitou Castro Alves:
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade...” *
As lágrimas tingiram o chão, que se avermelhou inteiro.
Seu grito ecoou nos páramos...
Um grito lancinante.
Ohohohohohoahaahaahaahaahahaah...
Não viu a noite chegar
Não viu luz
Não viu lua
Não viu estrelas!
Ditirambos frenéticos invadiram seus tímpanos em conluio com a turbamulta de seus ancestrais


J Estanislau Filho

* Passagem de Navio Negreiro

Poema do meu livro Estrelas - Editora O Lutador - Edição esgotada.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O Exército infecta-se da imagem da morte





POR FERNANDO BRITO


O Exército Brasileiro está sendo levado a uma armadilha que lhe será fatal por anos.

Virou “bucha de canhão” na guerra já perdida contra o novo coronavírus.

Não porque os militares sejam por natureza incapazes. Mas são incompetentes para este combate.

Nem mesmo durante a ditadura militar o Ministério da Saúde foi ocupado por um militar, como agora, com o general Edson Pazzuelo.

Aliás, como informa O Globo, o Ministério da Saúde está sendo, literalmente, ocupado por militares.

Nove deles foram nomeados hoje para os quadros de direção do órgão.

É um sinal inequívoco de que as equipes técnicas estão sendo desmontadas.

Os que ficam estão intimidados, procurando as sombras, os cantos, os desvãos para não serem eliminados.

Por mais que apareçam por toda a parte pessoas querendo se promover com “modelos estatísticos” que preveem para depois de amanhã o pico da epidemia, o fato concreto é que a baixa quantidade de testes e os precários registros de notificação que compõe a nossa contabilidade de contagiados e de mortos, impedem qualquer avaliação precisa.

Nosso mais confiável indicador infelizmente são as mortes e, sobre isso, o que temos é o recorde batido hoje em São Paulo, com 324 mortes, cem a mais que o recorde anterior, de 224 óbitos, também registrado numa terça-feira, 28 de abril.

A mancha que ficará no Exército pela ambição de generais medíocres que estão levando a corporação a fantasiar-se de “abre-alas” da cloroquina para agradar um psicopata.






Fonte>https://www.tijolaco.net/blog/o-exercito-infecta-se-da-imagem-da-morte/

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Eleitores neuróticos também deliram?






Maria me procurou consciente de que se continuasse com suas crises de ciúmes acabaria por destruir seu casamento. Rapidamente percebi que sua auto crítica restringia-se a forma agressiva e disruptiva através da qual expressava seus argumentos, não ao seu conteúdo supostamente comprobatório. Seu marido tinha um alto cargo comercial que exigia muita exposição em congressos e eventos profissionais com o objetivo de fazer net work e vender os eficientes serviços e produtos de sua empresa. Ela estava convencida que ele usava estas oportunidades para seduzir mulheres com as quais pretendia manter relações sexuais extra conjugais. Quais seriam as provas desta hipótese? Após estes eventos ele sempre recebia mensagens de WhatsApp de mulheres não cadastradas nos seus contatos. Ele contra argumentava que eram pessoas de todos os sexos para as quais ele teria entregue cartões de visita profissional. Exigiu do marido a senha do celular para realizar blitzen surpresas e o autuar em flagrante delito.

Obviamente todas as vezes que checou o celular do suposto traidor só encontrou trocas de mensagens com conteúdos estritamente profissionais.

Então ela criou uma nova teoria explicativa: a troca de mensagens comprometedoras ocorreria quando, mesmo em casa, ele saía de perto dela e levava consigo o celular.

Certo episódio, Maria percebeu que seu marido receberá novamente uma mensagem de um contato não salvo, respondeu e foi ao banheiro mas desta vez deixou o celular no sofá ao alcance dela, ela concluiu: “Sabendo que eu acharia suspeito o fato dele levar o celular, ele o deixou propositalmente para que eu não desconfiasse dele!”

Mas o que isso tem haver com política?

Alguns eleitores se comportam em relação ao seus políticos preferidos de forma análoga: fatos não tem para eles poder de comprovar ou refutar suas hipóteses.

Hugo Bleichmar chamava essa modalidade de análise e interpretação da realidade de discurso totalizante. Sujeitos capturados por esse tipo de percepção e apreensão da realidade selecionam dados que corroboram suas crenças e excluem seletivamente aqueles que as refutam. Ou ainda, fatos diametralmente opostos servem ambos, paradoxalmente, de comprovação de uma mesma e única hipótese.

Numa primeira versão do discurso bolsonarista a nomeação de Moro para o Ministério da Justiça era a prova do cumprimento de duas promessas de campanha: compor um ministério de notáveis a partir de critérios estritamente técnicos e combater a corrupção com o mesmo rigor e imparcialidade da admirável Operação Lava Jato. Moro era percebido como a personificação dos ideais de justiça e competência técnica.

Após seu pedido de demissão em depoimento o ex-ministro manteve a sua narrativa sobre o desejo de Bolsonaro pela mudança da Superintendência da Polícia Federal do Rio de Janeiro que sustentaria a versão de que o presidente teria tentado interferir em investigações conduzidas pela PF. As investigações agora tem como objetivo descobrir se há ou não evidências que sustentariam uma denúncia pelos crimes de coação no curso do processo, advocacia administrativa e obstrução de justiça.

Ao contrário do discurso jurídico, que trabalha com a formulação de hipóteses que após uma investigação podem ser comprovadas ou refutadas a partir de provas e evidências, o discurso do marketing político não precisa necessariamente contrastar sua interpretação dos fatos com qualquer realidade exterior. Numa analogia com as explicações delirantes de minha paciente, tanto a nomeação de Moro quanto sua saída do Ministério da Justiça são provas de que Bolsonaro continua sendo o líder que representa a mais perfeita encarnação dos ideais de seus eleitores.

Um eleitor fascinado pelo seu político idealizado não toma a realidade como ponto de constraste. Um dos métodos utilizados para realizar tal operação seria:

“Rejeitar os intercâmbios entre discurso e realidade. Certamente, não se trata de que a realidade por si só refute um discurso - empirismo ingênuo - mas que o real, ao ser captado sempre através de um discurso aumenta as possibilidades de incompatibilidade entre discursos.” (Bleichmar, H.1985)

Por que essa forma de interpretar a realidade é considerada delirante?

Porque não existem dúvidas, existem convicções, certezas que não precisam da análise científica dos fatos para adquirirem status de verdade. Essas verdades dogmáticas por sua vez geram sentimentos apaixonados e é essa combinação de cognição e afetos que orientam o processo de tomada de decisão. “(…) na extremidade sensorial se encontra um sistema que recebe as percepções; na extremidade motora, outro que abre as comportas da motilidade” (Freud in “A Regressão”). Dito de outro modo: nosso comportamento depende da percepção que temos da realidade. E apesar de toda nossa resistência em admitirmos, votar é um comportamento tão previsível e passivo de manipulação quanto o processo de compra de um produto através de um site de internet. Os grupos bolsonaristas descobriram que através de mídias digitais é possível estimular versões mais ou menos delirantes de interpretação dos fatos políticos. Um eleitor que idealiza seu candidato está extremamente suscetível a criar ele mesmo um discurso que elimina a necessidade de investigação. Logo, esta complementariedade entre uma tendência delirante individual - confirmation bias - e um discurso publicitário construído a partir de algoritmos digitais é um laço social perfeito, porque eficaz. Essa tendência de interpretar, recorrer ou pesquisar por informações de maneira a confirmar ou fortalecer crenças ou hipóteses pessoais pré existentes já era analisada por Freud há um século atrás. No seu texto sobre o Homem dos Ratos ao analisar as supertições de seu paciente explica:

“Ele agia por meio de visão e leitura periféricas, esquecimento e sobretudo, erros de memória.” (Freud, 1909)

Todo eleitor é potencialmente capaz de criar crenças a respeito do seu candidato idealizado semelhantes a neo realidade delirante que um psicótico constrói para substituir a realidade que ele precisa desesperadamente recusar.

Mas por que é tão difícil diante de novos fatos e evidências abandonar antigas narrativas? Existe uma vasta gama de forças inconscientes que atuam contra isso mas certamente uma delas é: teríamos que admitir que nos deixamos enganar, nos deixamos iludir e nem todos lidam bem com o arrependimento: “O que o ressentido não arrisca, acima de tudo, é seu narcisismo. (…) O arrependimento seria uma saída possível do ressentimento: aquele que se responsabiliza por uma escolha que redundou em fracasso ou sofrimento pode arrepender-se, sem precisar culpar ou acusar alguém pelo prejuízo.” (Kehl, M. R. in “Ressentimento”)

Mas cuidado! Não são só os eleitores de extrema direita que tem dificuldades de se arrepender após a revelação de novos fatos…



Julio Cesar Nascimento
Psicanalista



quarta-feira, 13 de maio de 2020

O Poema do Semelhante









O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza
em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,

Foi Ele quem arrancou deles
a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo
ainda maior, embora mais justa.

Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.

Esse Deus sabe que alguém é apenas
o singular da palavra multidão
Eh mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora
alguns por dentro
alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.

O Deus que cuida do
não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa
de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele
em atitude de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
a solidão do nexo.

O Deus soprador de carmas
deu de eu ser parecida
Aparecida
santa
puta
criança
deu de me fazer
diferente
pra que eu provasse
da alegria
de ser igual a toda gente

Esse Deus deu coletivo
ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.

Não fosse a inteligência
da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança

(madrugada onde fui acordada pelo poema no Rio de Janeiro, 10 de julho de 1994)

Elisa Lucinda


Fontehttps://www.escritas.org/pt/t/5762/o-poema-do-semelhante

sentimento

Imagem: jef



quantos olhos
um homem precisa ter
para ver o que o coração sente...

sombras dores mãos
os olhos fotografam
sonhos cores grãos.

quantos corações
um homem precisa ter
para ler o que os olhos vêm...

luzes flores chãos
o coração ouve
vozes risos nãos

J Estanislau Filho


16 de setembro de 1988 - Do livro O Comedor de Livros - Edição do Autor.



imagem: jef

terça-feira, 12 de maio de 2020

Quando fiz 40 anos meu filho tinha 11





Quando fiz 40 anos de idade não me lembro se houve comemoração. Talvez minha ex tenha feito um bolo e cantado parabéns. Fernando, meu filho estava com 11 anos.  Neste dia 12 de maio de 2020, é ele quem faz 40.  Como o tempo passa rápido! O moleque é pai de Raul, de 7 anos, alegria nossa, para continuar espalhando o nosso DNA. Mas não coloquemos responsabilidade nele, afinal somos pais e avós e não donos de suas vontades.
     Nos meus 40 anos a terra era redonda; nos 40 de meu filho, a terra é plana. Pelo menos para o presidente da república e seus fieis seguidores. Nos meus 40 a democracia fora recentemente instalada e o presidente era Fernando Collor; nos 40 de meu filho, o presidente é Jair Bolsonaro e a ditadura vai ganhando forma, com cerca de três mil milicos em cargos públicos. Nos meus 40 anos as notícias falsas eram transmitidas por rádios, tevês, mídias impressas e por cartas anônimas; nos de meu filho são espalhadas pelas internet por robôs e milícias digitais, além, é claro, das rádios, tevês e mídias impressas. No ano em que fiz 40 anos, morreu Freddie Mercury em decorrência da AIDS; nos 40 de Fernando, morreram milhares de pessoas em decorrência da pandemia do COVID-19. Quando eu fiz 40 anos as tropas estadunidense invadiram o Iraque; meu filho, aos 40 vive o contexto da guerra híbrida, sob a liderança dos Estados Unidos.
     Como intenção deste, vá lá, cronista, é festejar os 40 anos de meu filho,  mudemos o rumo da prosa. Fernando é um pai responsável, marido de Angélica, cá pra nós, uma mulher brava, mas de coração generoso. O Raul é um menino, como o pai, inteligente e bonito. Ambos puxaram o pai-avô. E são feras no vídeo-game. Termino dizendo que os amo demais e que em outros aniversários, livres do isolamento social, a gente possa comemorar num abraço real.



Imagens: arquivo jef
J Estanislau Filho

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Palavras de apoio a um jovem pai assustado




Meu filho, permita-me chama-lo assim, pois tenho idade de ser seu pai e avô de seu filho.
Há uma crise sim, filho. De desemprego; de precarização do trabalho; de perdas de conquistas sociais. Cenas de um filme já visto, num contexto diferente.
Há uma crise ética, também. Na política, nas instituições públicas e privadas. E em muitos de nós, cidadãos, que formam a sociedade. Esse é o país que nos foi dado viver. Mas não se iluda. A crise é, acima de tudo, do modelo de desenvolvimento, ou seja, do capitalismo mundial. Não que não existam países mais civilizados, menos injusto que o nosso. Mas lá, como aqui, o trabalhador honesto também anda assustado. Porque o sistema globalizou-se. Quando uma peça cai, outras vão caindo, num efeito dominó.
Mas que diabos, não estou sendo nada animador. E as palavras que desejo expressar são de ânimo. Mas filho, precisamos compreender o mundo em que vivemos, para modifica-lo. Sem mudança de paradigma viveremos esse eterno ciclo vicioso, essas díades: susto e ousadia; coragem e medo; algaravias e silêncios.
Mantenha acesa a chama da indignação, contra as injustiças sociais e prossiga, acima de tudo com amor à vida. Assim poderá superar obstáculos. Olhe os olhinhos de seu filho. Ele te fortalecerá. Lembre-se de outros pais nesse país em que uma classe dominante só pensa em dominar, egoisticamente as riquezas produzidas por mãos trabalhadoras. Sempre desferindo golpes nos sonhos do povo.
Não posso te oferecer uma receita pronta. Sei que sem luta não se muda nada. Portanto, filho, vá a luta. Mas sem cair na armadilha do sistema. Ele é sedutor. Pensa que o ter é ser. Cria instrumentos, para nos desviar do amor. Insufla ódio, pois o ódio é que sustenta o sistema. Caminhemos, filho, de mãos dadas, solidariamente, com o amor.


J Estanislau Filho




sábado, 9 de maio de 2020

Galinhas no terreiro



Imagem: Dona Bela-minha mãe-1915/1996


Dedicado à Dona Bela, minha mãe - 1915-1996


Agitadas galinhas
entre galos e pintos
cocoricó no terreiro

Pintadas pretas
amareladas e brancas
galinhas no terreiro

A galinha rajada
orgulhosa não se apavora
engolindo milho no terreiro

A galinha garnisé
bica um pinto amarelinho
que rouba-lhe o milho no terreiro

A galinha d'angola
arisca e desconfiada
joga no papo milho no terreiro

A galinha adoentada
com cocoricó desafinado
quer o milho da peneira

A galinha apaixonada
bica o milho que um galo
oferece-lhe todo galante

Dona Bela dona do terreiro
faz caminhos com milhos
conduzindo as galinhas ao galinheiro



J Estanislau Filho


Poema de 28.09.88 está em meu livro O Comedor de Livros - 1991

Imagem: Google



Menina de 10 anos usa maconha

G1




Há um ano e oito meses, Caroline Pereira da Silva, de 10 anos, usa o óleo natural extraído da maconha para controlar crises de epilepsia provocadas pela síndrome de Dravet, uma forma rara da doença. O cultivo da planta é feito no quintal da casa da família desde 2019 e tem autorização judicial.

“Nessa quarentena, com mais tempo, a gente está tendo tempo pra ver os avanços dela. Nos chama muito a atenção que ela está correndo, antes ela não brincava. Deu nome para as bonecas, tira febre, diz que não aguenta mais o coronavírus, que quer sair pra passear. Hoje, ela tem noção de tudo que está acontecendo. Jamais imaginamos isso”, conta a mãe Liane Pereira.

Antes do uso do Canabidiol, Carol chegou a ter 50 crises por dia. Para comemorar os 20 meses sem convulsões, Liane postou uma foto da filha nas redes sociais. Na imagem, a pequena moradora de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, segura uma muda de maconha e um cartaz onde explica como o uso diário do óleo artesanal mudou a sua vida.


“Com o óleo artesanal ela não tem mais crises. Teve muitos avanços, ela consegue se alimentar só pela boca. Nós doamos a cadeira de rodas dela porque não usa mais. Consegue caminhar, conseguimos tirar as fraldas também. Hoje em dia ela brinca, conversa, tudo o que não fazia antes.”




sexta-feira, 8 de maio de 2020

aos pais e ao país
















"Que o pai seja pelo menos o Universo e a mãe seja, no mínimo a Terra"
 (Maiakoviski)






Desejo aos pais o amor dos filhos e do país.
Aos filhos, futuros pais,
que o amor habite seus corações.
Aos pais, outrora ou ainda filhos,
que mantenham o brilho
nos olhos e a utopia,
para que o país,
lar e pátria viva em paz.

J Estanislau Filho

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Desabafos de Bonner, coerentes e eficazes, são oportunidade de ouro que Bolsonaro deu à Globo



Para quem não viveu a época, cabe esclarecer: o Jornal Nacional da TV Globo já marcou a hora no Brasil.

Quanto tocava a vinheta, sabíamos que eram oito da noite em ponto, nos longínquos anos 70.

De certa forma, o telejornal que a ditadura militar (1964-1985) escolheu para fazer parte essencial de seu projeto de integração nacional, fornecendo a infraestrutura enquanto Roberto Marinho providenciava o saber, sempre pretendeu ditar os limites de nossa “democracia consentida”.

Se os militares tinham um “compasso moral” da Nação, ele era exibido na Globo, na voz de Cid Moreira e Sergio Chapelin.

A menos que fosse uma epidemia de meningite, a simulação de “confronto” através da qual se eliminavam adversários do regime, o assalto aos cofres públicos na construção da ponte Rio-Niterói.

Estas notícias não cabiam no Jornal Nacional — razão pela qual se tornou famosa a frase que é mais importante o que o JN não noticia do que o que ele noticia.

Durante a ditadura e, mais adiante, no período da abertura política que precedeu a Constituição de 88, o Jornal Nacional era estudado da mesma forma com que especialistas se debruçavam sobre os sinais emitidos nos bastidores do Kremlin para entender o que se passava na fechada União Soviética.

Aqui, o foco era o Jardim Botânico e o humor que contava era o de Roberto Marinho. 

Dá-se nome de “espelho” ao roteiro das reportagens que serão apresentadas ao longo de um telejornal, que deve ter alguma coerência interna.

Porém, vez ou outra o doutor Roberto bagunçava o espelho com as aparições inesperadas de Antonio Carlos Magalhães, o Toninho Malvadeza, nomeado duas vezes governador da Bahia pela ditadura e amigo pessoal do dono da Globo.

Frequentemente entrevistado em sua sala de estar em Salvador, ACM não dava em si uma notícia, mas um recado de Marinho ou da própria ditadura a adversários: o limite havia sido ultrapassado e Malvadeza estava pronto para fazer alguma de suas maldades.

De lá para cá o Brasil mudou, o JN mais na aparência.

O telejornal continua sendo uma espécie de “modulador” dos limites do aceitável para o compacto de oligarquias regionais que ainda nos governa (o Centrão é a representação física delas e não é coincidência que existam no Congresso dezenas de parlamentares diretamente associados aos interesses econômicos dos Marinho).

A Globo segue sendo mais que um conglomerado de meios impressos e emissoras de rádio e TV.

Contrata milhares de artistas e intelectuais, promove eventos, gerencia museus — seu poder de determinar os limites do “aceitável” no campo da política e da cultura é imenso.

Para dar um exemplo atual, a Marielle da Globo será a negra favelada feminista que venceu na vida pelo próprio esforço — jamais a socialista interessada em taxar a fortuna e a herança dos Marinho. 

Com o PT no poder, a relação do Jornal Nacional foi peculiar.

 Entre o chamado mensalão e o petrolão, além das tubulações cuspindo dinheiro que o telespectador passou a associar todas as noites às notícias envolvendo o PT, o JN assumiu o papel de carro-chefe da oposição — conforme pregou a presidente da Associação Nacional dos Jornais, Maria Judith Brito, alegando que a oposição a Lula estava “profundamente fragilizada”.

Quatro derrotas eleitorais não tiraram da Globo o papel de cão de guarda da democracia consentida.

Um Conselho Nacional de Jornalistas, nos moldes da OAB e de tantas outras associações de classe — como proposto pelo PT — para fazer valer um conselho de ética na profissão? Não podia.

Cotas para negros em universidades, que tinham o potencial de resultar na formulação de um movimento negro fora do cercadinho cultural da própria Globo? Não podia.

Um encontro nacional de comunicação para debater a legislação arcaica do setor, da qual a Globo tira proveito justamente por ser arcaica e, portanto, inexistente? Não podia.

Com o advento das redes sociais e as profundas mudanças pelas quais passou a mídia, especialmente na última década, o poder do Jornal Nacional foi relativamente esvaziado.

A Globo só emplacou seu candidato nas eleições de 2018 por associação, quando o juiz federal tornado herói Sergio Moro aderiu ao projeto de Jair Bolsonaro.

Todos aqueles fascistas, cujos rostos a emissora hoje escancara no Jornal Nacional diante de milhões de telespectadores, para denunciá-los, já estavam lá durante o processo do impeachment de Dilma Rousseff.

Nas ruas, com as mesmas faixas e palavras de ordem.



Como é que é? A intervenção militar já estava nas ruas contra a Dilma e o Jornal Nacional não viu?


Sim, as manifestações do período do impeachment já reuniam muitas das mesmas pessoas que hoje fazem parte dos encontros “antidemocráticos” e “inconstitucionais” denunciados pelo Jornal Nacional.

Só que, quando Dilma ainda estava no poder, elas eram descritas como “famílias” que chegavam à avenida Paulista para fazer valer seus direitos — por repórteres da Globo que atuavam como animadores de concentrações.

Agora, o desembarque do ministro da casa, Sergio Moro, do governo Bolsonaro, ofereceu à Globo uma oportunidade de renovação do Jornal Nacional que vai além da cenografia.

Com os líderes de oposição trancados em casa e claramente de olho nas eleições de 2022, sobrou para William Bonner o papel de fazer o contraponto humanista a Bolsonaro, em meio a uma pandemia que vai destroçar a economia e desacreditar ainda mais a política.

Bonner agora nos conta, em tom quase confessional, que assim que acabar o telejornal vai vestir a máscara, como aliás vinha fazendo antes de assumir a bancada.

É só por um bocadinho, diz, como se estivesse na sala de nossa casa.

Renata confirma.

Além dos rostos e bocas de desconforto cada vez mais frequentes, o âncora passou a verbalizar o seu desgosto (importante notar aqui que nem uma linha vai ao ar no Jornal Nacional sem aprovação de instâncias superiores).

Bonner faz desabafos.

Não são propriamente uma novidade na História da TV.

Âncoras tradicionais da TV americana, na qual a Globo sempre se mirou, já fizeram o mesmo papel no passado, talvez de forma mais sutil e menos caricatural: Edward Morrow, Walter Cronkite e Dan Rather, para lembrar só de alguns.

Foram elevados, por isso, ao papel de bússola moral dos norte-americanos.

É irônico que, ao eleger a TV Globo como seu principal adversário, agora, Jair Bolsonaro tenha transformado Bonner numa espécie de “consciência da Nação”.

A emissora que ajudou a produzir Bolsonaro pode se descolar dele — como que num passe de mágica.

Os desabafos do âncora, além de coerentes e emocionalmente eficazes, inscrevem-se num novo jeito de fazer TV, mais próximo do telespectador, no molde da linguagem informal do You Tube.

Ironicamente, isso acontece quando os militares estão de volta ao poder, não tão vistosamente como nos anos de chumbo, mas com um claro papel de tutelar Bolsonaro e a “democracia da Globo”. Tudo a ver?

Revigorado em seu papel histórico, o Jornal Nacional agradece. Até 2022.

Por Luiz Carlos Azenha





quarta-feira, 6 de maio de 2020

O ovo e a galinha - conto de Clarice Lispector














De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.

O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.

Ao ovo dedico a nação chinesa.

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.

O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.

O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.

Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.

Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.

E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.

É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.

“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.

A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.

Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.

De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.

A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.

Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.

E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.

Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.

A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.

Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.

Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.

Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.

Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.

Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.