quinta-feira, 14 de maio de 2020

Eleitores neuróticos também deliram?






Maria me procurou consciente de que se continuasse com suas crises de ciúmes acabaria por destruir seu casamento. Rapidamente percebi que sua auto crítica restringia-se a forma agressiva e disruptiva através da qual expressava seus argumentos, não ao seu conteúdo supostamente comprobatório. Seu marido tinha um alto cargo comercial que exigia muita exposição em congressos e eventos profissionais com o objetivo de fazer net work e vender os eficientes serviços e produtos de sua empresa. Ela estava convencida que ele usava estas oportunidades para seduzir mulheres com as quais pretendia manter relações sexuais extra conjugais. Quais seriam as provas desta hipótese? Após estes eventos ele sempre recebia mensagens de WhatsApp de mulheres não cadastradas nos seus contatos. Ele contra argumentava que eram pessoas de todos os sexos para as quais ele teria entregue cartões de visita profissional. Exigiu do marido a senha do celular para realizar blitzen surpresas e o autuar em flagrante delito.

Obviamente todas as vezes que checou o celular do suposto traidor só encontrou trocas de mensagens com conteúdos estritamente profissionais.

Então ela criou uma nova teoria explicativa: a troca de mensagens comprometedoras ocorreria quando, mesmo em casa, ele saía de perto dela e levava consigo o celular.

Certo episódio, Maria percebeu que seu marido receberá novamente uma mensagem de um contato não salvo, respondeu e foi ao banheiro mas desta vez deixou o celular no sofá ao alcance dela, ela concluiu: “Sabendo que eu acharia suspeito o fato dele levar o celular, ele o deixou propositalmente para que eu não desconfiasse dele!”

Mas o que isso tem haver com política?

Alguns eleitores se comportam em relação ao seus políticos preferidos de forma análoga: fatos não tem para eles poder de comprovar ou refutar suas hipóteses.

Hugo Bleichmar chamava essa modalidade de análise e interpretação da realidade de discurso totalizante. Sujeitos capturados por esse tipo de percepção e apreensão da realidade selecionam dados que corroboram suas crenças e excluem seletivamente aqueles que as refutam. Ou ainda, fatos diametralmente opostos servem ambos, paradoxalmente, de comprovação de uma mesma e única hipótese.

Numa primeira versão do discurso bolsonarista a nomeação de Moro para o Ministério da Justiça era a prova do cumprimento de duas promessas de campanha: compor um ministério de notáveis a partir de critérios estritamente técnicos e combater a corrupção com o mesmo rigor e imparcialidade da admirável Operação Lava Jato. Moro era percebido como a personificação dos ideais de justiça e competência técnica.

Após seu pedido de demissão em depoimento o ex-ministro manteve a sua narrativa sobre o desejo de Bolsonaro pela mudança da Superintendência da Polícia Federal do Rio de Janeiro que sustentaria a versão de que o presidente teria tentado interferir em investigações conduzidas pela PF. As investigações agora tem como objetivo descobrir se há ou não evidências que sustentariam uma denúncia pelos crimes de coação no curso do processo, advocacia administrativa e obstrução de justiça.

Ao contrário do discurso jurídico, que trabalha com a formulação de hipóteses que após uma investigação podem ser comprovadas ou refutadas a partir de provas e evidências, o discurso do marketing político não precisa necessariamente contrastar sua interpretação dos fatos com qualquer realidade exterior. Numa analogia com as explicações delirantes de minha paciente, tanto a nomeação de Moro quanto sua saída do Ministério da Justiça são provas de que Bolsonaro continua sendo o líder que representa a mais perfeita encarnação dos ideais de seus eleitores.

Um eleitor fascinado pelo seu político idealizado não toma a realidade como ponto de constraste. Um dos métodos utilizados para realizar tal operação seria:

“Rejeitar os intercâmbios entre discurso e realidade. Certamente, não se trata de que a realidade por si só refute um discurso - empirismo ingênuo - mas que o real, ao ser captado sempre através de um discurso aumenta as possibilidades de incompatibilidade entre discursos.” (Bleichmar, H.1985)

Por que essa forma de interpretar a realidade é considerada delirante?

Porque não existem dúvidas, existem convicções, certezas que não precisam da análise científica dos fatos para adquirirem status de verdade. Essas verdades dogmáticas por sua vez geram sentimentos apaixonados e é essa combinação de cognição e afetos que orientam o processo de tomada de decisão. “(…) na extremidade sensorial se encontra um sistema que recebe as percepções; na extremidade motora, outro que abre as comportas da motilidade” (Freud in “A Regressão”). Dito de outro modo: nosso comportamento depende da percepção que temos da realidade. E apesar de toda nossa resistência em admitirmos, votar é um comportamento tão previsível e passivo de manipulação quanto o processo de compra de um produto através de um site de internet. Os grupos bolsonaristas descobriram que através de mídias digitais é possível estimular versões mais ou menos delirantes de interpretação dos fatos políticos. Um eleitor que idealiza seu candidato está extremamente suscetível a criar ele mesmo um discurso que elimina a necessidade de investigação. Logo, esta complementariedade entre uma tendência delirante individual - confirmation bias - e um discurso publicitário construído a partir de algoritmos digitais é um laço social perfeito, porque eficaz. Essa tendência de interpretar, recorrer ou pesquisar por informações de maneira a confirmar ou fortalecer crenças ou hipóteses pessoais pré existentes já era analisada por Freud há um século atrás. No seu texto sobre o Homem dos Ratos ao analisar as supertições de seu paciente explica:

“Ele agia por meio de visão e leitura periféricas, esquecimento e sobretudo, erros de memória.” (Freud, 1909)

Todo eleitor é potencialmente capaz de criar crenças a respeito do seu candidato idealizado semelhantes a neo realidade delirante que um psicótico constrói para substituir a realidade que ele precisa desesperadamente recusar.

Mas por que é tão difícil diante de novos fatos e evidências abandonar antigas narrativas? Existe uma vasta gama de forças inconscientes que atuam contra isso mas certamente uma delas é: teríamos que admitir que nos deixamos enganar, nos deixamos iludir e nem todos lidam bem com o arrependimento: “O que o ressentido não arrisca, acima de tudo, é seu narcisismo. (…) O arrependimento seria uma saída possível do ressentimento: aquele que se responsabiliza por uma escolha que redundou em fracasso ou sofrimento pode arrepender-se, sem precisar culpar ou acusar alguém pelo prejuízo.” (Kehl, M. R. in “Ressentimento”)

Mas cuidado! Não são só os eleitores de extrema direita que tem dificuldades de se arrepender após a revelação de novos fatos…



Julio Cesar Nascimento
Psicanalista



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