domingo, 30 de agosto de 2020

A Ponte

Imagem: Goolge



Eu era rígido e frio, eu era uma ponte; estendido sobre um precipício eu estava. Aquém estavam as pontas dos pés, além, as mãos, encravadas; no lodo quebradiço mordi, firmando-me. As pontas da minha casaca ondeavam aos meus lados. No fundo rumorejava o gelado arroio das trutas. Nenhum turista se extraviava até estas alturas intransitáveis, a ponte não figurava ainda nos mapas. Assim jazia eu e esperava; devia esperar. Nenhuma ponte que tenha sido construída alguma vez, pode deixar de ser ponte sem destruir-me. Foi certa vez, para o entardecer – se foi o primeiro, se foi o milésimo, não o sei – meus pensamentos andavam sempre confusos, giravam, sempre em círculo. Para o entardecer, no verão, obscuramente murmurava o arroio, quando ouvi o passo de um homem. A mim, a mim. Estira-te, ponte, coloca-te em posição, viga órfã de balaústres, sustém aquele que te foi confiado. Nivela imperceptivelmente a incerteza de seu passo, mas se cambaleia, dá-te a conhecer e, como um deus da montanha, atira-o à terra firme. Veio, golpeou-me com a ponta férrea de seu bastão, depois ergueu com ela as pontas de minha casaca e arrumou-as sobre mim. Com a ponta andou entre meu cabelo emaranhado e a deixou longo tempo ali dentro, olhando provavelmente com olhos selvagens ao seu redor. Mas então – quando eu sonhava atrás dele sobre montanhas e vales – saltou, caindo com ambos os pés na metade de meu corpo. Estremeci-me em meio da dor selvagem, ignorante de tudo o mais. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um assaltante de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me para vê-lo. A ponta de volta! Não me voltara ainda, e já me precipitava, precipitava-me e já estava dilacerado e varado nos pontiagudos calhaus que sempre me tinham olhado tão aprazivelmente da água veloz

Franz Kafka



11 comentários:

  1. Que viagem no mistério, de arrepiar, gosto da imaginação fértil, essa superou às espectativas. Parabéns!!!
    Grande abraço e feliz domingo.

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    1. Obrigado, sempre, Liduina, por prestigiar meus alfarrábios. Volte sempre.

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  2. Bom dia. Todo mistério é deslumbrante. Ótimo domingo caro amigo.

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    1. Olá, meu amigo e ex-colega de internato, hoje um professor dos bons. Prazer ler seu comentário aqui. Volte mais vezes.

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  3. Colocar em palavras a rica imaginação. Grande escritor

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  4. O estilo Kafkiano que pouco explica mas escancara a dúvida e o absurdo em forma visceral. A ponte que leva do nada a lugar nenhum que destrói ao invés de conectar... A expressão de um ego perdido em dúvida. Foi um mestre...

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    1. Obrigado pela leitura e comentário, Max, talentoso parceiro de letras. Está convidado a publicar aqui. Será uma honra.

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  5. Obrigado, Maria. Kafka é genial. Sugiro ler A Metamorfose, em seguida O Processo. E muitos contos curtos, são bons. Abraço fraterno.

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  6. Que pesadelo! Tão original. O Mundo nos sufoca, nos esmaga. Pensamos estar bem, porque às vezes estamos. Mas o nosso subconsciente é marcado e se manifesta. Cleoborges

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    1. Que alegria ler seu registro aqui, Cleo. Bem-vinda. Grato e volte mais vezes.

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