sábado, 22 de agosto de 2020

Dois Poemas de José Lezama Lima



Chamado do Desejoso


Desejoso é aquele que foge de sua mãe.
Despedir-se é lavrar um orvalho para uni-lo à secularidade da saliva.
A profundidade do desejo não está no sequestro do fruto.
Desejoso é deixar de ver sua mãe.
É a ausência do acontecido de um dia que se prolonga
e é na noite que essa ausência vai afundando como um punhal.
Nessa ausência se abre uma torre, nessa torre dança um fogo oco.
E assim se alastra e a ausência da mãe é um mar em calma.
Mas o fugidio não vê o punhal que lhe pergunta,
é da mãe, dos postigos fechados, que ele foge.
O descendido em sangue antigo soa vazio.
O sangue é frio quando desce e quando se espalha circulizado.
A mãe é fria e está perfeita.
Se for por morte seu peso dobra e não mais nos solta.
Não é pelas portas onde assoma nosso abandono.
É por um claro onde a mãe ainda anda, mas já não os segue.
É por um claro, ali se cega e logo nos deixa.
Ai do que não anda esse andar onde a mãe não o segue mais, ai.
Não é desconhecer-se, o conhecer-se segue furioso como em seus dias, mas segui-lo seria o incêndio de dois numa só árvore,
e ela adora olhar a árvore como uma pedra,
como uma pedra com a inscrição de antigos jogos.
Nosso desejo não é pegar ou incorporar um fruto ácido.
O desejo é o fugidio
e das cabeçadas com nossas mães cai o planeta centro de mesa
e de onde fugimos, se não é de nossas mães que fugimos,
que nunca querem recomeçar o mesmo jogo, a mesma
noite de igual ilharga descomunal?


(Trad. Josely Vianna Baptista)



.Ah, que você escape


Ah, que você escape no instante
em que tenha alcançado sua melhor definição.
Ah, minha amiga, não queira acreditar
nas perguntas dessa estrela recém-cortada,
que vai molhando suas pontas em outra estrela inimiga.
Ah, se fosse certo que, à hora do banho,
quando, em uma mesma água discursiva,
se banham a imóvel paisagem e os animais mais finos:
antílopes, serpentes de passos breves, de passos evaporados,
parecem entre sonhos, sem ânsias levantar
os mais extensos cabelos e a água mais recordada.
Ah, minha amiga, se no puro mármore das despedidas
tivesses deixado a estátua que poderia nos acompanhar,
pois o vento, o vento gracioso,
se extende como um gato para deixar-se definir.


(Trad. Claudio Daniel)


Sobre o autor



Poeta, ensaísta e novelista além de patriarca invisível das letras cubanas, José Lezama Lima nasceu no dia 19 de dezembro de 1910 em Campamento de Columbia, nas proximidades de Havana e é considerado um dos escritores mais importantes da literatura latinoamericana deste século tendo grande influência na obra de diversos escritores hispanoamericanos e espanhóis.
Conhecedor profundo de Góngora, Platão, os poetas órficos e os filósofos gnósticos, Lezama resumiu sua vida ao amor aos livros. Sua obra está cercada de chaves, enigmas, alusões, parábolas e alegorias que aludem a uma realidade secreta, íntima e ao mesmo tempo, ambígua. Descorreu pela literatura erótica, antecipando-se, desta maneira, as correntes européias do estruturalismo. Seus ensaios são imaginativos, poéticos, abertos e constituem uma recriação de textos e imagens. Promotor de revistas e cenáculos soube unir e torno dele poetas do porte de Gasto Baquero, Cintio Vitier. Eliseo Diego, Virgilio Piñera e Octavio Smith, entre outros. Sua amizade com o poeta e sacerdote espanhol Angel Gaztelú (1914), contribuiu para a formação de seu lado espiritual.

Seu primeiro livro de poemas foi Muerte de Narciso (1937), em que ele coloca o leitor frente a uma situação limite da realidade de cujo desmantelamento surge outra realidade artistica potencializada e construída dentro de uma fascinante e barroca mitologia. Seguem, entre outras obras poéticas, todas influenciadas, pelo estilo rico em metáforas e cheio de distorções de Góngora, Enemigo Rumor (1941), Aventuras Sigilosas (1945), Dador (1960) e Fragmentos a su imán, publicado postumamente em 1977.

Em 1966 publicou a novela Paradiso, de onde conflue toda a sua trajetória poética de caráter barroco, simbólico e iniciativo. O cubano, com suas deformações verbais, desempenha um papel fundamental na obra, como ocorre em sua coleção de ensaios La cantidad hechizada (1970). Oppiano Licario é uma novela inconclusa, encontrada postumamente em 1977, que traz de volta a figura do personagem de Paradiso. Lezama Lima teve uma enorme influência em numerosos escritores hispanoamericanos e espanhóis, alguns dos quais chegaram a considerá-lo seu mestre, como é o caso de Severo Sarduy.



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