sábado, 9 de agosto de 2025

Marx e Freud colocam o capitalismo no divã

Um diálogo entre psicanálise e marxismo mostra como apetite pela produtividade e o gozo insaciável são complementares. Conformar-se a uma vida sem sentido leva à (auto)exploração. Autonomia requer reinventar o desejo… e o mundo



Samo Tomšič em entrevista a Amador Fernández-Savater, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

O capitalismo é verdadeiramente uma criação excepcional na história da humanidade. Pela primeira vez, uma sociedade se dedica inteiramente à produção… pela produção em si! Produtividade pela produtividade, para satisfazer uma lógica de lucro insaciável por definição, para a qual tanto faz fabricar canhões ou manteiga, porque tudo vale se puder se traduzir em valor de troca. É o conhecido diagnóstico de Marx.

O problema é que não somos simplesmente vítimas inocentes dessa lógica absurda, mas a reproduzimos cotidianamente como cúmplices necessários. O imperativo de produtividade infinita penetra em nosso interior, através dos complexos mecanismos psíquicos descobertos por Freud e analisados posteriormente por Lacan: o mandato superegoico, a pulsão de morte, o gozo. Más notícias: estamos libidinalmente viciados na roda que nos esmaga.

A acumulação é infinita, e nosso esforço será sempre insuficiente. O Trabalho do Gozo (Paradiso Editores), o último livro do filósofo esloveno Samo Tomšič, retoma o diálogo (difícil) entre Marx, Freud e Lacan para refletir sobre a natureza de nosso mal-estar: em nível individual e coletivo, subjetivo e objetivo, estamos submetidos a mandatos que excluem, por definição, a possibilidade de satisfação, paz ou felicidade na terra.

Psicanálise e política: na complexa zona intermediária

Em que sentido a psicanálise pode ser uma inspiração política, para a transformação social, considerando que trabalha de forma individual, investiga um inconsciente estritamente singular e desconfia do coletivo como “psicologia das massas”?

Há várias boas razões para recorrer à psicanálise em questões de mudança social. Por um lado, a psicanálise aborda a questão da mudança de maneira muito específica. À primeira vista, pode parecer que ela se esforça para alcançar uma mudança individual, limitada apenas às pessoas. No entanto, a complexa relação, e até mesmo a continuidade entre o individual e o social, tem sido um problema crucial para a psicanálise desde Freud.

Basta recordar seu texto sobre a psicologia das massas, que é um escrito fundamental da filosofia política, assim como uma intervenção psicanalítica chave em questões sociais. Nele, Freud analisa a função da libido e dos afetos na formação dos grupos sociais e dos vínculos que mantêm a sociedade unida. Freud mostra que a distinção rígida entre indivíduo e grupo não se sustenta, e que tal diferenciação é sempre meramente provisória. No entanto, isso não significa necessariamente que se possa ou mesmo se deva tratar a sociedade de forma análoga às pessoas, e vice-versa.

O que isso implica, sim, é que devemos nos concentrar na zona intermediária, para compreender o que ocorre sob a dicotomia entre indivíduo e sociedade. Aqui está outra contribuição chave da psicanálise: ela destaca o problema da resistência e, especificamente, da resistência à mudança. Assim, talvez mais do que qualquer coisa, a psicanálise pode nos ajudar a pensar nos obstáculos com os quais uma política emancipatória inevitavelmente deve lutar ao perseguir seu objetivo de transformação social.

Se não é de continuidade ou de aplicação, que tipo de relação é então a que existe entre psicanálise e política?

Eu levaria a sério a sugestão de Lacan. Em determinado momento, ele argumentou que a análise do “prazer” por Freud é homóloga à análise da produção de mais-valia por Marx. Mais uma vez, a questão aqui não é a similaridade dos dois processos – caso contrário, falaríamos de analogia –, mas sim sua identidade lógica.

Falar de homologia intervém assim na zona complexa que mencionei antes, entre o individual e o social, e se esforça para “desconstruir” essa dicotomia demasiado simples. Uma leitura analógica não faria exatamente isso. Afirmaria a dicotomia e trataria a sociedade como um macroindivíduo e o indivíduo como uma microssociedade. Uma leitura homológica, por outro lado, detecta a mesma lógica na esfera social e subjetiva, sem afirmar que essa lógica seja em si mesma subjetiva ou social. É, em sentido estrito, ambas as coisas.

Para mim, essa leitura homológica faz mais sentido porque implica que a psicanálise não revela mecanismos transhistóricos e transculturais do inconsciente – isso seria uma leitura junguiana –, mas expõe a imersão total dos processos de pensamento no modo de produção social historicamente predominante. Para evitar qualquer mal-entendido, isso não significa que o inconsciente como tal seja capitalista, nem que se livrar do capitalismo significaria se livrar do inconsciente. A homologia significa que nosso modo inconsciente de gozo está, no mínimo, codeterminado, se não sobredeterminado, pela lógica da produção capitalista. Se a ordem social muda, logicamente, os processos inconscientes também mudam.

O mistério do gozo: uma satisfação insatisfatória

Do que falamos quando falamos de gozo (jouissance)? É o mesmo que pulsão? É algo natural ou cultural, biológico ou simbólico? Como foi sua descoberta por Freud em termos de “pulsão de morte” e sua reelaboração conceitual por Lacan em termos de “gozo”?

Há uma grande confusão em torno do termo “gozo”, e essa confusão se refere à tradução do termo freudiano “Lust”. Essa palavra alemã tem sido comumente traduzida como “prazer”, o que não é totalmente incorreto, mas também não é totalmente correto. Uma tradução mais adequada seria talvez “luxúria”, se nos limitarmos ao inglês. O cristianismo sabia que o “gozo” era uma questão de pecado e estava diretamente relacionado à morte, e a psicanálise freudiano-lacaniana certamente adotou essa lição.

Mas voltando à sua pergunta, em Freud e mais tarde em Lacan, “Lust” representa a continuidade entre prazer e desprazer. Em nível consciente, posso experimentar uma atividade como beber ou fumar como desagradável, pode me dar ressaca, mas inconscientemente ainda constitui uma satisfação prazerosa. Isso significa que eu gosto e não gosto ao mesmo tempo? Bem, sim, mas também significa que há uma dimensão do gozo que me é estranha, embora ocorra em mim. Lacan apontou isso em relação à atividade de falar, repetindo constantemente “ça parle” (o isso fala), o que significa tanto quanto: não posso controlar todos os efeitos da fala. Mas também poderíamos dizer “ça jouit” (o isso goza), ou seja, há um nível de gozo no qual meu bem-estar já não é central.

Aqui é onde entra em jogo a pulsão que você já mencionou em sua pergunta. O gozo não é o mesmo que a pulsão, mas sem dúvida é o objeto privilegiado da pulsão. Em poucas palavras, a pulsão exige prazer, exige o próprio ato da satisfação e, nesse sentido, a pulsão é simbólica, cultural, uma exigência que não para de exigir. Um instinto, por exemplo, é uma exigência que vai e vem, mas a pulsão persiste. Freud descreveu a pulsão como uma “força constante”. No entanto, a pulsão e seu objeto, o gozo, não são simplesmente abstratos, mas também encarnados, materiais, corpóreos, o que, no entanto, não os torna “naturais”.

A hipótese do gozo, conforme você explica em seu livro, questiona algumas hipóteses otimistas como as de Aristóteles ou Adam Smith, que apontam em última instância para formas de harmonia social baseadas no prazer ou no interesse. A descoberta da pulsão seria a “má notícia” que a psicanálise trouxe consigo: não há fim da história, nem equilíbrio possível do social.

Exatamente, a pulsão é precisamente uma força que desfaz constantemente o equilíbrio que, por exemplo, se restabelece provisoriamente uma vez que ocorre uma satisfação. Freud também teve que aprender essa lição. No início, ele concebeu o chamado “princípio do prazer” como um princípio de diminuição da tensão. Quando uma tendência inconsciente – o desejo ou a pulsão – obtém sua satisfação, a afetação do aparato psicossomático diminui, o estímulo irritante é suprimido, e a sensação de prazer é o efeito lógico e corporal dessa diminuição.

Mas uma vez que a pulsão se revela uma força constante – e em Freud ela é entendida assim precisamente a partir da perspectiva da perseverança da pulsão de morte –, isso implica uma perturbação constante no aparato psíquico. A satisfação torna-se dificilmente distinguível da insatisfação, e a pulsão é, em última instância, uma exigência de mais gozo ou, dito de outro modo, uma exigência de satisfação contínua.

Aqui é onde o conceito freudiano de pulsão se aproxima suspeitosamente das descrições de Marx do capital como pulsão de autovalorização, de acumulação, etc. Poderíamos até tomar Marx como um corretivo para Freud neste ponto, já que Marx mostra que existe algo como uma história das transformações da pulsão (ou o que Freud chamava de “vicissitudes” ou “destinos” da pulsão), enquanto Freud tende a pensar a pulsão para além das circunstâncias históricas que determinam seu modo de funcionamento.

Em última instância, Freud reintroduz a referência ao registro da biologia, empreendendo assim uma tentativa desesperada de renaturalizar a pulsão. Mas aqui também a lição a ser extraída não é que “o capitalismo inventou a pulsão” ou algo do tipo. É simplesmente que o capitalismo mobilizou com sucesso – e, ao fazê-lo, transformou – uma força de abstrações simbólicas que em Marx e Freud leva o nome de “pulsão”.

O gozo do capital e nossa insatisfação permanente

O capitalismo impõe o gozo? Ou impõe um tipo de gozo? O mesmo, igualmente, a todos os sujeitos?

O capitalismo impõe um modo específico de gozo, e o exemplo mais batido desse gozo imposto, “padronizado”, seria a forma mercantil e o consumismo. Podemos observar aqui como a satisfação e a insatisfação, o prazer e o desprazer, formam um contínuo. Tomemos novamente o exemplo do tabaco. Não se trata apenas de uma atividade que não serve para nada – não satisfaz nenhuma necessidade “vital” específica –, mas também revela o que é essencialmente o gozo. Lacan diz que o gozo é o que não serve para nada, o que não tem nenhuma finalidade. Assim, em uma atividade como fumar não há nenhuma aparência de satisfação de necessidades, mas pura satisfação da pulsão.

Um exemplo um pouco diferente, no qual teríamos uma aparência de satisfação de necessidades coexistindo com a satisfação no nível do gozo inútil, é a comida rápida. É bastante revelador que o menu de uma cadeia típica de comida rápida consista em um hambúrguer cheio de aditivos e uma bebida carbonatada com excesso de açúcar. Ambos estimulam e satisfazem ao mesmo tempo a necessidade de comer e beber, mas a sensação de satisfação é extremamente efêmera.

Outro exemplo seria a força de trabalho, a mercadoria que todos devemos encarnar no universo capitalista. No processo de trabalho, devemos produzir valor para legitimar nossa existência aos olhos do sistema capitalista. O que está igualmente em jogo nesse processo é o encontro com a demanda insaciável de mais-valia. Essa demanda nunca se satisfaz – se o fizesse, o sistema deixaria de existir – e isso era precisamente o que Marx queria dizer: o capitalista tem uma fome insaciável, “lobuna”, de mais-valia.

Em alemão existe a expressão Heißhunger, que significa algo como apetite voraz ou ânsia por comida, e que pode ser melhor exemplificada em relação à comida junk no consumo individual e ao consumo sistêmico da força de trabalho. Como corpos de trabalho, não somos mais do que comida rápida para o sistema.

O esgotamento psíquico e a insatisfação permanentes que afligem tantos trabalhadores no Norte global têm a ver com essa pinça entre dois infinitos (o infinito do gozo, o infinito da produção) na qual estamos presos? Não se acrescentam hoje novos infinitos: o infinito do digital, das finanças, etc.?

Acredito que é precisamente isso, e não vejo por que o infinito do digital ou das finanças traria algo novo. São expressões contemporâneas da infinitude virtual do simbólico, na qual o capitalismo desdobra seu parasitismo letal. Podemos observar, por exemplo, como as chamadas “redes sociais” – que seriam melhor descritas pelo termo “antissociais” –, desde o X (Twitter) passando por Facebook e Instagram até TikTok e além, acabaram se tornando o melhor ambiente possível para a satisfação dos impulsos agressivos. Seria possível até dizer que essas plataformas digitais são ambientes ideais para a satisfação ininterrupta do que Freud chamava de pulsão de agressividade.

Uma cura política?

Há outros modos de elaborar a pulsão, formas de sublimação emancipadora? Também em nível social ou coletivo?

Claro, a importância da psicanálise nesse terreno segue ligada ao fato de que ela luta por uma transformação do modo de gozo predominante.

Quando Freud falava de “mal-estar” ou “mal-estar na civilização”, ele o associava às exigências impossíveis que a “cultura” moderna – podemos substituir esse termo por “capitalismo” sem prejudicar excessivamente o argumento de Freud – impõe a seus sujeitos. Nesse contexto, Freud também argumentava que a “cultura” se baseia na repressão das pulsões e pode até ser equiparada à “tendência repressiva”. Segundo Freud, vivemos em uma “cultura da repressão”, o que não significa que estejamos isolados de modos de gozo genuínos e autênticos. Em Freud, e isso é o que Foucault não entendeu bem ao criticar a chamada “hipótese repressiva”, a repressão não significa opressão. Em todo caso, a repressão estabelece as bases para a opressão, mas para Freud ela também representa uma organização específica do gozo e um “destino” da pulsão. Essa organização é sem dúvida exploradora, e Freud diz isso claramente.

Mas qual modo de gozo menos explorador seria possível não é uma resposta que se possa esperar da psicanálise. É certo que a repressão é mais propensa a produzir agressividade, tanto psicológica quanto social, e que para a psicanálise a sublimação é uma alternativa à repressão. Mas não é certo que todos os problemas relacionados ao gozo se resolvam com a sublimação. Aqui é onde a psicanálise se aproxima da crítica madura de Marx à economia política: eles não olham para uma bola de cristal para prever o futuro – como será uma sociedade comunista, como se sentirá um modo de gozo não capitalista. Em vez disso, organizam o esforço para resolver a bagunça em que nos encontramos no presente.

Você faz uma analogia entre o “trabalho elaborativo” da psicanálise e o da organização política, ambos “práticas do impossível”. Poderia desenvolver isso? Se o capitalismo explora o “mal-estar civilizatório”, como você diz, poderia se pensar a luta política como uma forma de “cura”?

Bem, não quero dizer que basta olharmos para a prática psicanalítica e encontraremos uma saída para o capitalismo. Em Televisão, Lacan faz a famosa observação: “Quanto mais santos, mais risadas; esse é meu princípio, ou seja, a saída do discurso capitalista, que não constituirá um progresso se ocorrer apenas para alguns”. Não vou entrar em comentários sobre o que “santo” ou “risada” significam aqui, mas me concentrarei apenas na afirmação de que só faz sentido falar em “progresso” – mudança “discursiva” ou “estrutural” no modo social de produção – se ele concernir a todos e não apenas a alguns.

Na história do liberalismo econômico e político, “progresso” é um termo muito problemático, incrustado em um marco ideológico que segrega a humanidade em diferentes grupos (raças, classes), dos quais apenas alguns são supostamente capazes de se desenvolver, enquanto outros ficam estagnados na “barbárie”, no “primitivismo”, na “natureza”, etc. Em outras palavras, presume-se que o “progresso” nunca pode ser “para todos”.

Lacan é, então, um liberal que prega o progresso universal? Não acredito, mas também não acho que ele seja comunista. Aqui é onde entra em jogo a pergunta sobre qual é o objetivo e o produto do trabalho psicanalítico – o que Freud chamava de “trabalhar a fundo” (Durcharbeiten). O que me parece valioso na psicanálise é o aspecto em que ela constitui um vínculo de trabalho muito específico, uma aliança, cujo objetivo é produzir um “excedente”. Esse excedente é a mudança no “modo” ou “organização” do gozo do sujeito. No entanto, a mudança não é tanto um estado ou condição definida na qual se termina, um estado de “felicidade” – outro termo ideológico problemático do arsenal do liberalismo –, mas sim um processo.

Curar significa trabalhar sobre as causas estruturais que condicionam meu sofrimento, e mesmo que seja eu quem fala, não me encontro sozinho no processo de trabalho. Estou em um vínculo social com meu analista, o que significa que há uma dimensão comum em jogo, e o nome dessa dimensão comum é precisamente a mudança estrutural. É nisso que ambos trabalhamos.

Esse modelo pode ser aplicado ao âmbito das lutas emancipatórias?


Tirar essa conclusão precipitada seria idealista. No entanto, não quero excluir a possibilidade de que se possam extrair algumas lições, por exemplo, que é necessário um “trabalho compartilhado” para entrelaçar a multiplicidade das lutas sociais – de âmbitos como gênero, economia, raça, ecologia, etc.– dentro de um horizonte comum de transformação social. Refiro-me à fala de Freud sobre as “profissões impossíveis” (daí a formulação “prática do impossível”) porque o resultado desse “trabalho compartilhado” é aberto, mas também porque as lutas políticas emancipatórias se encontram efetivamente em uma posição impossível ao ter que enfrentar toda a maquinaria sistêmica, sua resiliência estrutural e sua resistência contra uma mudança profunda na forma como praticamos as relações sociais.

Ao mesmo tempo, acredito que a organização das lutas por uma ordem social justa não contém uma visão preestabelecida dessa ordem, mas apenas um conjunto de ideias, estratégias e políticas emancipatórias em constante evolução. Em outras palavras, elas não propõem uma visão “providencial” de um futuro sem atritos, de uma sociedade sem lutas, contradições ou antagonismos. Se assim fosse, seria possível aspirar a uma sociedade imóvel, o que é uma ficção perigosa. Algo análogo ocorre na psicanálise, onde a cura não significa aspirar a um estado em que todos os problemas de nossa existência sejam simplesmente resolvidos e acabemos em uma forma de vida normalizada ou normativa. Pelo contrário, ao introduzir ordem e ausência de atritos em nossas vidas, a psicanálise nos envolve em um novo antagonismo, no qual não nos sentimos necessariamente sozinhos ou abandonados à nossa sorte. Nesse sentido, a psicanálise é também uma prática de solidariedade no sentido forte da palavra.


Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/marx-e-freud-colocam-o-capitalismo-no-diva/


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CAPA, FREUD E LACAN, FREUD E MARX, GOZO, LUTAS EMANCIPATÓRIAS, MAL-ESTAR CIVILIZATÓRIO, PSICANÁLISE E MARXISMO, PULSÃO DE MORTE


segunda-feira, 21 de julho de 2025

A Terra Desolada





 (T.S Eliot)


Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aleias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.
Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.


(Trecho de Terra Desolada, de T. S. Eliot. Tradução de Ivan Junqueira)


Thomas Stearns Eliot foi um poeta, dramaturgo, crítico literário e editor literário americano-britânico. É considerado um dos representantes mais importantes do modernismo literário e um dos maiores poeta.

terça-feira, 8 de julho de 2025

enquanto não vens


virás bem sei trazendo no olhar alegria e o fogo da paixão
enquanto não vens vejo aves migratórias enfeitando o céu
o balançar das cortinas
o silêncio do quarto
o sol nascendo e se pondo para dar lugar às estrelas
enquanto não vens eu me perco no devaneio das horas
marco o tempo no desgaste dos utensílios domésticos
com rios e afluentes inundando meu rosto
e a pele que amacia na flacidez da memória
enquanto não vens retirei o relógio da parede
e o coloquei no fundo do baú debaixo de grossos cobertores


J Estanislau Filho

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Criaturas

     



      Nem bem o dia é  interrompido pela noite, estranhas criaturas saem  de seus esconderijos à procura de suas presas, para satisfazerem seus instintos mórbidos, com sangue nos olhos, cognição reduzida.  As vítimas preferidas são as  criaturas de luz, pelas quais têm ódios mortais.  Mas não pensem, que apesar das limitações cognitivas, essas estranhas criaturas não tenham  métodos. Atacam a base das criaturas de luz, os seres que consideram  inferiores. Entre os métodos utilizados, tem um que seduziu grande parte da base dos seres de luz: a inversão de valores. Toda a maldade que as criaturas da obscuridade pratica, atribui  às criaturas da luminosidade, ou seja, a mentira como verdade. Quando  destruíram  as instalações das sedes de proteção à liberdade, disseram que foram agentes dos seres de luz infiltrados. Tendo, portanto, a mentira como método, a inversão de valores conquistou corações e mentes, uma vez que eles dispõem  de mecanismos sofisticados de distribuição em massa. Assim, seus métodos vão minando a utopia, o sonho de um lugar em que todos possam viver em harmonia.

     A luta entre as criaturas da noite, contra as criaturas do dia vem de tempos imemoriais. Há quem acredite que o fim desse embate está próximo. Ainda não é possível prever, quem sairá vitorioso. As do dia dizem que as da noite estão em seus últimos estertores, as da noite contra-atacam, com mais mentiras. A mais recente é a de que as criaturas do dia são responsáveis pelo desequilíbrio planetário,  por consumirem demais.  As criaturas do dia respondem, que as da noite acumulam renda per capta. Poucos sabem o que isto significa.


J Estanislau Filho




sábado, 21 de junho de 2025

Dois poemas de Marise Castro

 

Imagem cedida pela autora



Lapsos...

 

Tinha a chuva que contava de ledos
finais de tardes e de carinhos
 
Havia o vinho, guardado na adega,
sempre a insinuar outros caminhos...
 
E as palavras escasseavam, enquanto
chamas de velas tremulavam
 
E as sombras se faziam auras
nos recortes das lembranças,
se inventando torvelinhos.
 
E pouco importava o livro caído
ou suas folhas reviradas
 
A poesia éramos nós,
 
em cada ínfimo momento
tornado doce lapso de tempo.



Ou Não Desculpe Nada...

  

Desculpa a sala
Desculpa a cara
Desculpa a mácula...
 
 
Desculpa por algumas crianças ganharem doces balas,
 
Desculpa por algumas ganharem apenas... balas!
 
 
Mas vocês, pequeninos, nas suas solitárias valas,
Não desculpem, de alguns, a mentira que resvala.
 
 
Ou não desculpem nada...
 
por cada inocente voz que subitamente se cala,
nem por cada indecente rajada de balas,
nem a cada um que omite qualquer fala...
 
Culpem tudo... é melhor!

 

 

Marise Castro


Sobre a autora

“Artista” desde a pré-escola, Marise Castro ‘burlou’ o desejo dos pais e enveredou pelo mundo das Artes. Graduou-se em Artes Cênicas  (Bacharelado), posteriormente em Educação Artística (com Licenciatura), e atualmente cursa Artes Visuais/Escultura na UFRJ. É Professora de Artes Visuais e Poeta amadora nas horas vagas. A Licenciatura em Educação Artística a colocou em contato com diversas formas de expressão (Pintura, Gravura, Escultura etc.), e o curso atual com a Escrita de Artista e a Fotografia. Ama e trata a Arte como Vida! 


terça-feira, 17 de junho de 2025

Os Dragões - Murilo Rubião




Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.

Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.

A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões, “coisa asiática, de importação europeia”. Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.

Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas. O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos. Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.

Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos. A ideia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou da partilha dos animais. O número destes era inferior ao dos pretendentes.

Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.

Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me a calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. Irritadíssimo, expandi o meu desagrado:

— São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!

Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à humildade e abriu mão do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência de nomes.

Quando, subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues para serem educados, compreendi a extensão da minha responsabilidade. Na maioria, tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer. Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Mais bem-dotados em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se embriagar no botequim. O dono do bar se divertia vendo-os bêbados, nada cobrava pela bebida que lhes oferecia.A cena, com o decorrer dos meses, perdeu a graça e o botequineiro passou a negar-lhes álcool. Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos.

No entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e superar a descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão. Valia-me da amizade com o delegado para retirá-los da cadeia, onde eram recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem.

Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior parte do tempo indagando pelo passado deles, família e métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos interrogatórios a que os submetia. Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites maldormidas e ressacas alcoólicas.

O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal. Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.

Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades. Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com ele.

Tudo fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-los. Enfrentavam-me com uma resistência surda, impenetrável. As minhas palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava.

Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito, provavelmente de um caçador de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.

Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher transferimos o nosso carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos na sua recuperação e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum filho talvez compensasse tanto o que conseguimos com amorosa persistência. Ameno no trato, João aplicava-se aos estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado. Findo o jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria, brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas, dava cambalhotas.

Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade.

O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora, demorava-se pouco em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse fogo. A admiração de uns, os presentes e convites de outros, acendiam-lhe a vaidade. Nenhuma festa alcançava êxito sem a sua presença. Mesmo o padre não dispensava o seu comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade.

Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município, um circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões amestrados e um homem que engolia brasas. Numa das derradeiras exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam o espetáculo aos gritos e palmas ritmadas:

— Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!

Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o desafio:

— Que venha essa coisa melhor!

Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos dos espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou sua costumeira proeza de vomitar fogo.

Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o prestígio que desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito municipal.

Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos, verificou-se a fuga de João.

Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento. Contavam que ele se tomara de amores por uma das trapezistas, especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de cartas e retomara o vício da bebida.

Seja qual for a razão, depois disso muitos dragões têm passado pelas nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos.


sábado, 7 de junho de 2025

simples assim...

imagem: Google



a gota de orvalho
que cai da flor
a ave no galho
duma árvore qualquer
o fruto que colho
com amor


simples assim...


Imagem: Sebastião Salgado



o sorriso das crianças
que brincam na rua
a mulher de tranças
num gingado feliz
renova a esperança
alegria voa


simples assim...


Imagem: Google



não faltarão estrelas
nem raios de sol
uma lua tão bela
onde moram os sonhos
com a sua presença
estrela maior


simples assim...


J Estanislau Filho

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Governo sob ataque sincronizado de Congresso, rentismo e Moody’s





Por Jeferson Miola

Congresso, rentismo e agência Moody’s coordenam ataques sincronizados ao governo Lula. Garroteiam o governo para asfixiá-lo e deixá-lo sem fôlego na eleição de outubro de 2026.

Nos últimos dias, os maiores bancos estadunidenses, JPMorgan e Bank of América, “aumentaram a aposta em investir no Brasil”, o que é sinônimo de pilhagem, por um motivo muito esclarecedor: “a eleição presidencial de 2026 já batendo na porta dos mercados com uma visão predominante de ‘Lula fora’, o que poderia servir de trampolim para uma nova política fiscal no País”, reporta matéria do Estadão.

Para analistas da Morgan Stanley, “o calendário eleitoral nos próximos 18 meses abre a oportunidade para iniciar uma mudança de política ‘muito necessária’ no País, especialmente na área fiscal”.
“Embora ainda estejamos a 18 meses da próxima eleição presidencial no Brasil, vemos sinais de enfraquecimento do apoio à plataforma política atual em relação à média histórica”, afirmam os banqueiros, no que pode ser entendido como uma aposta para inviabilizar a continuidade do projeto democrático liderado por Lula, mesmo sabendo que isso significa a retomada fascista no país em bases ainda mais ferozes, apesar do verniz falso-civilizado do capitão do Exército Tarcísio de Freitas.

Para cumprir a profecia do rentismo e sua mídia hegemônica de que a situação é crítica e de que é preciso cortar gastos sociais, a agência Moody’s, cuja confiabilidade vale tanto quanto uma nota de três reais, rebaixou a nota de crédito do Brasil com o manjado argumento “da deterioração fiscal”.

Editoriais da Rede Globo e da imprensa dominante então redobraram a exigência de corte dos orçamentos sociais, do fim do aumento real do salário mínimo, medida preconizada por Armínio Fraga, e, também, do fim dos mínimos constitucionais do SUS e da educação.
Hugo Motta, aquele presidente da Câmara que precisa aplicar gumex no cabelo para tentar parecer crível, escalou o deputado Pedro Paulo, do partido do Kassab, para avançar a eliminação desses direitos sociais sob o disfarce da reforma administrativa.

O que uma coisa [a reforma administrativa] tem a ver com a outra [o aumento real do salário mínimo e a garantia de verbas para saúde e educação]? Absolutamente nada!
O que está em curso, na verdade, é o mais audacioso ataque à Constituição de 1988 desde o teto de gastos criado com o golpe de 2016.

O escarcéu hipócrita em torno do decreto do IOF escamoteia a nova ofensiva do rentismo e do poder econômico, que defendem austeridade fiscal com o objetivo de ampliar a apropriação obscena do orçamento da União e dos fundos públicos pelas finanças.
Até Gabriel Galípolo, aquele que continua a política de juros estratosféricos do bolsonarista Campos Neto, reproduziu a histeria do mercado.
Passando por cima do Haddad, ele telefonou diretamente para alertar Lula sobre “ruídos na sociedade”, ou seja, para vocalizar o sentimento da Faria Lima e da turma da pesquisa Focus. Como foi atendido pelo presidente, sua deslealdade a Haddad ficou atenuada.

Os parasitas da riqueza nacional são insaciáveis. Eles não se contentaram com os cortes de 31 bilhões do orçamento que o governo foi obrigado a fazer devido, aliás, à armadilha que o próprio governo armou para si com o Novo Arcabouço Fiscal e o déficit zero.
Num figurino mais assemelhado ao gangsterismo político que à prática parlamentar, Motta e Alcolumbre distribuíram ultimatos e ameaças ao governo.

Usurparam a prerrogativa de regulação tributária do governo, colocaram a faca no pescoço e ainda prometeram represálias caso o Executivo recorra ao STF para garantir sua prerrogativa constitucional. Agiram como o agressor que ameaça com mais violência a vítima que denuncia a agressão à polícia.

O plano de sabotagem do governo conta, ainda, com um profissional no ramo: Arthur Lira, aquele que diz se sentir orgulhoso em ser cogitado como vice de Bolsonaro.
Presenteado por Motta com a arma poderosa da relatoria do projeto da isenção de imposto de renda para quem ganha até cinco mil reais, Lira sinaliza dificuldades para a aprovação dessa promessa de campanha do Lula que beneficia mais de 20 milhões de contribuintes.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

Os Lobos

 

Imagem: Google

Os lobos ocupam um lugar especial em meu coração.

     O primeiro que vi, aproximou-se de mim, desconfiado, como é da natureza dos lobos.  Fixei meus olhos nos dele, também com cuidado, para não assustá-lo,  Esse primeiro encontro foi rápido, mas deixou a percepção de que nos encontraríamos novamente. É pelos olhos que se conhece o coração de um lobo. Sempre tive dúvidas do caráter de quem não se deixa olhar, abaixando as vistas.  Como um novo encontro  fora tacitamente estabelecido no primeiro, o segundo aconteceu de forma calorosa, como se nos conhecêssemos de longa data.  E nos revelamos em total transparência. Nascia ali uma amizade verdadeira, que duraria por longos anos. Conheci  inteiramente os sentimentos dos lobos, que esse, em especial, me revelava. 

     Nossos encontros tornaram-se rotineiros, em cada um os vínculos solidificavam. Fui conhecer seu lar. A matriarca da família me recebeu com alegria. O nome dela era Margarida, que me adotou como mais um  filho. Agora eu fazia parte da comunidade dos lobos. Os laços ampliavam, assim como, a nossa cumplicidade. Muitas vezes dividi com eles saborosos e fartos cardápios de carne. Os lobos são carnívoros. 

    Ah, estava me esquecendo de apresentar o lobo do meu primeiro encontro, que me fez acreditar que a amizade construída no respeito e na empatia, perdura. Trata-se de Berzé Lobo. Por meio dele, faço  parte dessa alcatéia, composta por Pedro Lobo, Eugênio Lobo, Gabriel, Maria José, que se encantou e... a lista é grande, pois além dos filhos e filhas, têm netos e netas, como a Tetê e o Chico, o Samuel, sobrinhos, sobrinhas....  E a Tuta, que foi fazer companhia à Dona Margarida e a Zezé!



Imagem: Instagram

Foto: Raul, meu neto num flagrante

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Janja não é primeira-dama reborn

 Por Marcelo Rubens Paiva *



Marcelo Rubens Paiva, autor de "Ainda Estou Aqui", relata suas impressões de Lula e Janja após dois encontros com o casal presidencial, um reservado em Brasília e outro em premiação no Rio. Para o escritor, a primeira-dama é alvo de preconceitos por parte de conservadores, da esquerda e da imprensa. Na intimidade, contrariando a percepção de muitas pessoas, eles demonstram plena harmonia, descreve.

No Brasil, muitos ainda pensam que mulher não pode ter opinião ou influir nas decisões de um presidente


No intervalo de 20 dias, encontrei-me duas vezes com o casal presidencial. As suspeitas de que Janja é perseguida pela ciumeira da esquerda velha e de conservadores, que não veem possibilidade de uma esposa influir nas decisões do marido, se confirmaram.

Muitos não entendem Janja. Me diziam que ela afastou Lula dos amigos, que o fez parar com hábitos antigos, como beber e fumar charutos com alguns jornalistas, dar entrevistas.

Lula me contou que parou de fumar porque ficou sem ar numa viagem e que quase não bebe, pois quer viver até 110 anos.

O primeiro encontro com o casal ocorreu em uma visita fora da agenda oficial. Eu estava em Brasília, Lula e Janja souberam, me chamaram, e fui rever o amigo de longa data; nos conhecemos quando ele era líder sindical. 

Naquela ocasião me dei conta de que ele é personagem das minhas três autobiografias, "Feliz Ano Velho" (1982), "Ainda Estou Aqui" (2015) e "O Novo Agora" (2025). Levei este último autografado.

Entrei no Palácio do Planalto assombrado pelas imagens da invasão de 8 de janeiro de 2023. Via os fantasmas dos golpistas, escutava bombas, sentia a fumaça, o medo dos poucos policiais que resistiam, o feromônio de destruição.

Vi intacto o Di Cavalcanti que fora esfaqueado e as mesas de vidro restauradas, assim como a escultura de Krajcberg e o relógio de mais de 200 anos. Cheguei a passar o dedo nele, buscando ranhuras de um restauro caseiro, daquela cola instantânea sempre na geladeira. Nada.

Entramos no gabinete com meu sobrinho Chico Rubens Paiva e Margareth Menezes, ministra da Cultura. Encontrei Lula feliz, saudável, magro, falante, gozador, afetivo, mais do que antes.

Me abraçava, me pegava, me olhava nos olhos, sorria, perguntava da minha vida. Sua pele estava mais bem cuidada do que a minha. Perguntei seu segredo. O quase octogenário presidente acorda às 5 da manhã e malha por duas horas, disse.

Mandou chamar Janja. Serviu suco de cupuaçu. Reclamou que para dar corda no relógio restaurado é preciso chamar um técnico com luvas e apontou para o hit do seu gabinete, uma caixa lacrada do tamanho de um Kindle, com poeira da Lua. Presente de Xi Jinping.

"Não abri, porque vai saber o que tem lá dentro...", gargalhou. Disse que iria se encontrar com o líder chinês e pediria para ele abrir a caixa na sua frente, para se certificar. Rimos.

Falamos do Corinthians, de Memphis Depay, da dívida impagável do clube, de passarinhos, das taxações de Trump e da missão do Brasil de encontrar com o Brics e a União Europeia uma fórmula mágica para diminuir a influência do dólar nas transações internacionais.

Janja chegou. Dividiram a mesma cadeira, diante de mim. Ele me confidenciou que tem lucidez para se retirar da vida pública, se a saúde física ou mental forem impedimentos. Lamentamos o melancólico fim da carreira de Biden.

Reclamou que o pessoal do PT o obrigou a se mudar para Alto de Pinheiros, em São Paulo. "Queria me aposentar numa praia", disse. Lula sonha em se aposentar em Salvador. Janja topa, apesar de preferir o Rio de Janeiro.

Enquanto Janja me contava como teve que, após os ataques de 8 janeiro, implorar para o governo não assinar a GLO, Lula despachava com Margareth, cobrando a instalação dos Conselhos de Cultura e outras demandas.

A Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é um caminho provisório de policiamento feito pelas Forças Armadas para o restabelecimento da ordem pública, o que se propunha diante do tumulto golpista em Brasília. Caso autorizada, estaria dada a ordem para os tanques irem às ruas. Seria a institucionalização do golpe militar.

Janja me confidenciou que, depois de estudar ciências sociais na Universidade Federal do Paraná, e MBA em gestão social, foi trabalhar na Itaipu Binacional e admitida no curso de um ano da Escola Superior de Guerra, em que teve contato com as minúcias de uma GLO. Ao não assinar, Lula conseguiu barrar a blitzkrieg, que por pouco não atravessou a porta dos quarteis.

Certa vez, me descreveram Janja como a cuidadora de um velhinho. O que se percebe ali é um casal em plena harmonia, sintonia, saudável, feliz. Um parece adivinhar o que o outro pensa. Por vezes, um completa a frase do outro. O que se vê ali é cumplicidade, com brilho nos olhos e amor. Quem está ao redor admira ou inveja. Por isso Lula quer viver 110 anos.

Vinte dias depois, 20 de maio, fui com meu filho Joaquim, 11 anos, ao Palácio Capanema, no Rio. A família implorara para ele ir com a camisa do Corinthians, mas não adiantou. Vestiu um impecável terno azul e gravata. Nos colocaram numa saleta da biblioteca. Faríamos uma surpresa.

Lula e Janja chegaram. Lula logo abraçou o menino e elogiou a elegância. Janja, de gozação, fez uma saudação como se ele fosse um príncipe. Contei que o apelido do moleque na escola é Putin.

Lula passou o dia gozando Joaquim, dizendo que ele era mais elegante que o líder russo, e que quando encontrasse o Putin real diria que conheceu seu sósia brasileiro.

Depois de anos fechado, ameaçado de ser demolido, para o terreno ser vendido pelo projeto liberal — que visa diminuir o Estado, se desfazer dos bens da União, se desfazer da memória, da mitologia, da cultura e da história —, o projeto arquitetônico premiado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Le Corbusier, com paisagismo de Burle Marx, revestido por azulejos de Portinari, foi reinaugurado numa cerimônia plural: a entrega de Ordem ao Mérito Cultural.

Depois de anos massacrados pelo correntão de apagamento do governo anterior, que transformou o Ministério da Cultura na sombra da goiabeira de Jesus, o talento e a inteligência brasileiros recuperavam seu protagonismo.

Foram muitas as pessoas homenageadas na noite: Zezé Motta, Alaíde Costa, Liniker, Mônica Martelli, Alcione. Gilberto Gil recebeu a honra no lugar de sua filha, Preta Gil. Odair José, Tony Tornado, Armandinho, Lilia Schwarcz, Alice Ruiz, Paulo Betti, Bárbara Paz, que veio direto de Cannes para a cerimônia, Walter Salles, Fernanda Torres e eu, Daniel Munduruku, Chico César, Silvio Tendler, entre outros e outras, compusemos o leque da diversidade.

Mas nas manchetes dos jornais aparecia: "Lula concede a Janja principal honraria por mérito cultural do país". Quem concedeu foi o Ministério da Cultura, não ele.

Discursei, contando que a dedicatória do livro que dei para eles tinha uma só palavra: "Resistam". Pelo visto, o amor entre eles resiste ao mau olhado dos invejosos.

Lula, o presidente dos Correios e eu deveríamos carimbar o selo em homenagem à Eunice Paiva. Mas Janja e Lula mudaram o protocolo e fizeram Joaquim carimbar, diante da imprensa e dos homenageados.

Lula discursou, Janja lhe dava as folhas, lia antes, checava, deu uma folha errada, ele a corrigiu e sorriu, ela sorriu para mim, como se tivesse feito uma travessura. E eram o "gagá" Lula e a "metida" Janja que organizavam as fotos com os homenageados, diante da confusão do cerimonial e da imprensa. Ele se sentou no chão, fez pose, se levantou sozinho.

A má vontade com a esposa do presidente se tornou uma verruga jornalística. Se ela viaja com o marido, calculam o gasto, como se ela estivesse passeando com o maquiador. É Janja quem se reúne com a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) para debater iniciativas contra a fome e a pobreza.

Se ela fala num almoço privado, questionam se não deveria ter ficado quieta. A conversa foi vazada por um ministro. Isso sim deveria causar perplexidade. 

Mas o comentário de uma mulher, num jantar a portas fechadas, no país em que vazamento não existe como figura de linguagem, foi o assunto.

Não querem Lula na Rússia, nem na China, buscando redesenhar o comércio mundial. E querem uma primeira-dama reborn, um cabide sem voz, sem ouvido, sem olhos, porque no Brasil mulher não pode ter opinião, nem se meter em conversa dos maridos.


Resistam!

24.mai.2025 às 23h00


Marcelo Rubens Paiva



* Escritor e dramaturgo. Autor, entre outros livros, de "Feliz Ano velho", "Malu de Bicicleta" e "Ainda Estou Aqui"



Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/05/janja-nao-e-primeira-dama-reborn.shtml


quinta-feira, 22 de maio de 2025

Aforismos




A flor que desabrocha é como uma criança nascendo, frágil e necessitada de cuidados.



A nascente, que se transforma num rio, nos ensina a exercitar a paciência, para crescermos com sabedoria. 



O mar, ao beijar a praia, não revela os seus mistérios aos castelos de areia.



O deserto é uma lição, para superarmos o nosso deserto interior. 



Que vive sob a égide da acumulação de recursos materiais está limitado a evoluir-se espiritualmente.



Somos a soma de exemplos e experiências acumuladas, para o bem e o mal. 


J Estanislau Filho





domingo, 18 de maio de 2025

Porque se mata em Gaza




Mulheres crianças
homens e animais
morrem de fome sede e explosivos
em Gaza


Segue a matança
de ódios infernais 
poucos compreendem os motivos
porque se mata em Gaza


Não é só por vingança
é por muito mais
porque vingar em crianças
ou em quem não tem nada com isso
reflete outro compromisso


Tamanha carnificina 
que a mídia esconde
engana
manipula e vende
de combate ao terror
não é verdade


Na realidade
mata-se em Gaza
por interesses comerciais
acúmulo de capitais


Todas as imagens copiadas do Google
J Estanislau Filho

terça-feira, 6 de maio de 2025

Os Estatutos do Homem

Imagem: Revista Xapuri



(Ato Institucional Permanente)


Thiago de Mello 


A Carlos Heitor Cony

 

Artigo I.

Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

 Artigo II.

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

 Artigo III.

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

 Artigo IV.

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único:

O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
 

Artigo V.

Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

 Artigo VI.

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

 Artigo VII.

Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
 

Artigo VIII.

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

 

Artigo IX.

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

 Artigo X.

Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
 
Artigo XI.

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.
 
Artigo XII.

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

 
Artigo XIII.

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
 
Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
 
Santiago do Chile, abril de 1964

domingo, 13 de abril de 2025

Cara chato

Por J Estanislau Filho

Imagem: Google

Um velho ranheta, cidadão ranzinza, cara chato. É o que as pessoas dizem dele e eu, Voltaire, atesto. Por conta da mania que ele tem de contrariar e não gostar de ser contrariado. A especialidade dele é a discordância. Pra todo argumento, por mais embasado, ele faz um contraponto. Quer ver como destruo o seu argumento? É assim que ele começa a contestação. O diálogo, se é que pode ser considerado assim, pode ser estressante. Por causa disso, mudei a estratégia. Decidi concordar com tudo o que ele dizia. Não que suas teorias não fizessem sentido. Sua capacidade cognitiva é elevada. Resolvi me abster do debate, apenas concordar. Ele me questionou: - Voltaire, você está concordando comigo, por quê? Ora ora, respondi, porque penso que você está certo! Não, retrucou Rousseau (esse é o nome do velho ranzinza), estou dissertando sem nenhuma base científica, como um sofista e você concordando, que desatino! Mas sua teoria faz sentido, respondi. Rousseau contra atacou: - A sua concordância me irrita, parece ironia, deboche. pois o que exponho não faz sentido aqui, nem na China. Mas você é mesmo um cara chato, respondeu Voltaire, impaciente, discorda até da concordância!

quarta-feira, 9 de abril de 2025

O ódio ao Lula é o ódio aos pobres


Por J Estanislau Filho


O ódio aos pobres ocorre pelo medo que a classe média tem de perder seu poder de mando. Para a classe média, o pobre é uma ameaça à sua posição na sociedade, não podendo, portanto ter ascensão social. Também para ter alguém para a sua autoafirmação, para pisar, explorar e humilhar. Estudos apontam que a classe média é composta por  70% da população, sendo que, 30% dela é progressista. 

Quem faz a cabeça dos 70% da classe média são os endinheirados, apenas 1% da população. A classe média é o seu escudo de proteção.  Ou seja, os ricaços, manipulam a classe média, que manipula e intimida  os pobres remediados, que manipula os mais pobres. Assim gira a roda da luta de classes. Nessa roda, pobres negros levam a pior. 




O ódio ao Lula é o ódio aos pobres, porque Lula é um semianalfabeto, nordestino e pobre, que ousou ascender socialmente e chegar à presidência. Um símbolo que precisa ser destruído. Ricos e 70% da classe média não aceitam isso. As grandes corporações midiáticas, financeiras, agro,  fazem uma campanha com o propósito de deslegitimá-lo.  

Além de tudo isso, temos outro fenômeno, que agrega a esse ataque: o pobre de direita. Dá pra entender? Lógico que dá. Mas para isso é necessário mais que uma pequena crônica. Necessário um ou mais livros. Tais livros existem e estão à disposição de  quem tem interesse de compreender porque os pobres são humilhados e manipulados. O autor é Jessé Souza. Segue a lista:


A Classe Média no Espelho

Brasil dos Humilhados

O Pobre de Direita








BOA LEITURA!

sábado, 29 de março de 2025

Fizeram por merecer




Por Jeferson Miola

Jair Bolsonaro e outros sete denunciados pela Procuradoria-Geral da República que integraram o “núcleo crucial” da “organização criminosa armada” agora são réus.
Integram este primeiro grupo do total de 34 denunciados dois policiais federais e seis oficiais das Forças Armadas: um tenente-coronel, um capitão reformado, três generais do Exército e um almirante da Marinha.

A decisão da 1ª Turma de Julgamento do STF representa uma resposta inédita da institucionalidade democrática.

Pela primeira vez na história do Brasil militares da cúpula das Forças Armadas, dentre eles ex-comandantes, ex-integrantes do Alto Comando do Exército e ex-ministros da Defesa, serão julgados perante a justiça civil pela tentativa de golpe de Estado.

A apuração, entretanto, precisa continuar. É necessário se investigar todos os demais militares e civis envolvidos na conspiração e que ficaram de fora do inquérito inicial da PF.
Ainda precisam ser descobertas outras camadas do empreendimento golpista, como a participação de empresários, agentes públicos, políticos, juristas e parlamentares que financiaram, estimularam o bando armado e defenderam a virada de mesa.
.
O agronegócio, por exemplo, além de ter financiado etapas terroristas do plano, também se ocupou da infraestrutura, recrutamento e manutenção dos golpistas radicalizados nos acampamentos nos quartéis do Exército.
De todo modo, o julgamento e a condenação desses civis e militares pela Suprema Corte é um marco relevante para o processo de memória, verdade e justiça do nosso país.

Na Argentina, os comandantes militares implicados com o terror de Estado durante a ditadura foram condenados até à prisão perpétua. Alguns morreram no cárcere.

Diferentemente do país vizinho, contudo, no Brasil os facínoras ficaram impunes e não foram responsabilizados pelos crimes da ditadura de 1964 a 1985.

Eles recebem normalmente aposentadorias polpudas pagas pelo povo brasileiro. E aqueles que morreram impunes, legaram pensões vitalícias para filhas e esposas, como os militares envolvidos no sequestro, desaparecimento e assassinato de Rubens Paiva.

Os militares se autoanistiaram no contexto da transição conservadora imposta, controlada e tutelada por eles mesmos.

A impunidade foi fatal. Confiantes na impunidade eterna, décadas depois do fim da ditadura as cúpulas fardadas se jogaram novamente numa empreitada golpista para concretizar um projeto de poder militar de longa duração.

Em 2018 os militares alardearam a volta ao poder “democraticamente”, por meio da vitória da chapa militar Bolsonaro-Mourão na eleição fraudada sem a concorrência de Lula.
Em março de 2022 publicaram o “Projeto de Nação”, documento que traduziu o projeto de poder militar para pelo menos até o ano de 2035.

Em abril de 2021, no entanto, quando Lula recuperou seus direitos políticos suprimidos pela gangue da Lava Jato, ele retomou a elegibilidade que fora cancelada pela pressão do general Villas Bôas sobre o STF.

Lula se tornou, a partir de então, a única alternativa do campo democrático capaz de deter a continuidade do projeto de poder fascista-militar em andamento.

Como o Procurador-Geral Paulo Gonet destacou na denúncia oferecida à Suprema Corte, o golpe não foi apenas aquele “instantâneo épico” do 8 de janeiro, porque foi um processo contínuo, prolongado no tempo e motivado pela mudança da conjuntura causada pela reabilitação política do Lula.

Na denúncia o PGR descreve que os golpistas “integraram, de maneira livre, consciente e voluntária, uma organização criminosa constituída desde pelo menos o dia 29 de junho de 2021 e operando até o dia 8 de janeiro de 2023, com o emprego de armas”.

Neste espaço de tempo, a organização criminosa colocou em marcha um processo metódico, planejado, com eventos encadeados para desestabilizar o ambiente político, provocar crise e esgarçamento institucional e, assim, legitimar a intervenção militar com Bolsonaro no poder – as “aproximações sucessivas”, nas palavras do general Mourão.

“Essa organização utilizou violência e grave ameaça com o objetivo de impedir o regular funcionamento dos Poderes da República e depor um governo legitimamente eleito”, descreveu o Procurador-Geral.

O que se descobriu é alarmantemente grave: o plano consistia, dentre outros atos bárbaros, assassinar o presidente e o vice-presidente eleitos, Lula e Alckmin, e o ministro do STF e então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes.

A punição de todos envolvidos na tentativa de golpe é uma apólice de seguro e de proteção da democracia. A realização exemplar da justiça é a melhor vacina antiditadura.
É totalmente inaceitável e fora de propósito discutir-se anistia para golpistas criminosos.


https://www.viomundo.com.br/politica/jeferson-miola-resposta-historica-a-golpistas-e-conspiradores.html