Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Jornadas de Junho… Poemas sobre as praças do século XXI – e aqueles que desejam esmagá-las. “A indignação,/ como pedra lançada na água,/ gera ondas”, dizem os versos. Mas a fúria só ganha sentido quando ajuda a criar uma Era da Consciência
1 Era da indignação
do grito, da fúria,
da praça tomada,
do punho cerrado.
E do nada.
contra reis, emires,
ditadores e presidentes,
contra políticos,
contra os bancos,
contra corruptos,
contra a Casta,
contra o Sistema,
contra tudo e contra todos;
por tanta coisa.
2 Primavera Árabe
na Síria, no Líbano, Bahrein…,
clamaram por liberdade,
fizeram a primavera das multidões
enfrentaram bombas e balas
de exércitos e polícias.
Dez anos passados o que sobrou
do que teria sido a primavera da esperança?
Fundamentalismo, sombras da religião,
intolerância, conformismo e medo.
E os irmãos na praça tornaram-se inimigos.
3 Porta do Sol
tendas ergueram-se.
“- Democracia Real Já!”,
por toda Espanha
e Grécia e Europa Mediterrânea,
tantos ergueram-se em indignação.
Parecia que seria dessa vez.
Mas as palavras de democracia real
sem bem saber o sentido
criaram um o rei sem coroa,
sem cetro, sem rosto.
Da indignação ao demagogo vazio
a falar sobre moral,
inventar culpados
(sempre os mais fracos),
desviar atenção…
Dos indignados,
parte deles ao menos,
mãos que ergueram as tendas
passaram a saudar o braço em riste.
4 No coração da fera
Wall Street:
“– Somos os 99%!”
Mas o touro desgovernado
e suas ventas em notas verdes
não caiu;
ao contrário,
um milionário alaranjado
vestiu-se de Messias,
mestre e aprendiz,
fez do povo ressentido e indignado,
base para a autocracia
e espetáculo de intolerância.
Entre muros e deportações,
ódio e mentiras,
tanta infelicidade mais que virá por aí
(já veio, está vindo e virá mais).
5 Pelos cantos do Brasil
“– É tanta coisa que não cabe em um cartaz!”
Começou por vinte centavos, luta justa,
e virou cão desgovernado.
De Curitiba ecoou o latido:
“- Basta de corrupção!”
Mas quem acusou,
quem incentivou,
quem julgou
sob a toga imunda
servia ao capital
e aos bandidos de sempre.
Houve mais corrupção
e manipulação.
Heróis de barro,
tornaram-se verdugos.
Dos escombros ergueram-se monstros.
Um capitão sem farda,
que pregava Deus com pistola na mão
e falava de família
enquanto vendia a pátria,
se fez falsificação.
Pelos cantos do Brasil
amontoaram-se os mortos na pandemia,
queimaram-se as florestas,
apagaram-se os sonhos.
6 A indignação
como pedra lançada na água,
gera ondas,
ondas de raiva,
ondas de medo,
e nem dá tempo
para que se conheçam as causas,
sequer a realidade.
Desconhecer causas,
não compreender a realidade
em profundidade,
são aliados dos tiranos.
Tiranos vestem-se de salvadores,
prometem ordem,
prometem justiça,
prometem prosperidade,
prometem sangue
e entregam ditadura,
desmandos, autocracia
mais corrupção, cleptocracia…
– Muito mais!
Mais horror,
desânimo,
tristeza,
raiva.
7 Na sequência das Eras
houve outra Era, dos Extremos,
foi breve, nem um século,
começou com uma guerra de horror
entre tantas guerras que vieram depois
com igual ou maior horror,
e terminou com um muro ruindo.
Antes dela, uma Era de Impérios
e dominações,
colonizações,
escravizações,
capitalizações.
Antes dela, uma Era de Revoluções,
“– Igualdade, Liberdade, Fraternidade!”
Independências,
contra-revoluções,
restaurações,
proletariado fabril,
máquinas a vapor.
8 A Era da indigência de sentido
depois dos extremos,
a indigência de sentido,
a indignação cega,
a raiva intempestiva.
Essa é a Era de nosso tempo
e não vai levar a lugar algum;
ou vai?
As Eras sempre levam a algum lugar,
o problema é quando o lugar
não é um bom lugar para viver.
Falta razão, falta sentir,
sobra enraivecimento, fúria,
fereza, repulsão,
cólera e danação.
Falta sentido.
9 Alimentando-se da fúria
em Paris, Porto Príncipe, Petrogrado…,
o povo aprendeu a erguer barricadas,
isso foi há muito tempo,
séculos XVIII, XIX, XX.
No tempo de agora,
nas praças do século XXI,
erguem-se hashtags,
erguem-se memes,
erguem-se emojis,
erguem-se ódios líquidos
cujas razões esvaem
tão rápido quanto surgem.
E sobra o ódio.
Os algozes de sempre,
os demagogos, manipuladores,
interesseiros e ambiciosos,
os Senhores tecnofeudais,
sabem disso.
Alimentando-se da fúria,
ornamentam-se com a cruz,
com a bandeira sem irmão,
com o medo (e ódio) do outro.
E assim a indignação
vira servidão voluntária,
mais uma vez.
10 Aprende, camarada!
quando a Era atual parece ser o fim das Eras,
há que lançar um pedido
como tantos que já foram lançados,
alguns aprendidos e outros perdidos:
“– Aprende, camarada!”
A indignação só tem sentido
quando se torna consciência.
– Aprende, camarada!
O inimigo não é o pobre ao seu lado,
o infeliz que julgas menor que ti,
não é o refugiado,
nem o vizinho,
nem o que consideras pecador.
11 A Era da Consciência
Da raiva extremista nasce o terror
e você vira engrenagem
para os opressores de sempre.
– Aprende, camarada!
Que a indignação seja o início, não o fim,
que a raiva se torne verbo,
que o grito se torne palavra,
que o medo se torne coragem,
que a mão fechada se abra,
se abra para o outro.
Aprenda
e vamos criar
a Era da Consciência.
Essa sequência poética integra o novo livro de Célio Turino – FIOS DA HISTÓRIA, poemas – pela editora Clóe
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TAGS
INDIGNAÇÃO POPULAR, JORNADAS DE JUNHO, OCCUPAY WALL STREET, POESIA BRASILEIRA, POVO EM POEMA, PRIMAVERA ÁRABE
