domingo, 11 de fevereiro de 2024

O fruto do vosso ventre




Imagem: Google


A intuição  materna raramente falha. 

    Antes mesmo de nascer, pelos movimentos que fazia no útero, a mãe percebera  algo, no mínimo estranho, estava por acontecer. Rezou para que a  intuição a enganasse. Que o filho nascesse saudável, era o seu desejo.

   A hora do parto chegou e o rebento nasceu, sem choro, algo incomum. Tão logo veio ao mundo, lançou um olhar de desprezo à mãe. Agarrou os seios com violenta voracidade, fincando as unhas,  provocando sangramento. Na primeira semana gritava alucinadamente no berço, exigindo seios, cujo leite secara. O banco de leite do único hospital da cidade diminuíra de tal forma, que obrigou a direção a buscar alternativas, inclusive, com campanha dirigida às mães que amamentavam,  a doarem. A fama da criança faminta se espalhara, ultrapassando as fronteiras do município. O bebê crescia desmesuradamente.  Ao completar um ano, parecia ter três.  Comia e bebia demais. E não engordava. Aos dois anos parecia um vara pau, comprido e magro. Aos cinco corria pelas ruas da cidade, como um atleta olímpico. Enquanto corria, chutava o que aparecia pela frente. As garotas fugiam, pois ele as ameaçava, chegando mesmo a desferir golpes em várias, o que levou o delegado a intimar os pais a prestarem depoimentos. Os percalços estavam no início. O que aconteceu nas creches se repetiu ao matricular no ensino básico: nenhuma instituição queria matriculá-lo. A mãe, com marcas na pele e na alma por conta das agressões do filho,  não sabia o que fazer para educá-lo.  As agressões às meninas, nas escolas de ensino médio só diminuíram depois de a direção providenciar boletim de ocorrência. O pai declarou na delegacia, que o filho tinha vocação militar, pois fora flagrado várias vezes, fazendo continência diante do espelho.  

    Um inferno, que parecia não ter fim, teve uma pausa, ao chegar  a idade do alistamento militar.  Os pais, aliviados, prepararam uma festa, para comemorar o evento. A primeira exigência do filho era de não convidar mulheres. Disse com firmeza:  - Não quero a presença de mulheres.  Pare de implicar, filho, lembre-se de quem o trouxe ao mundo, disse a mãe.  Ele respondeu apenas com um  olhar duro, que a silenciou. 

   Seu ódio pelas mulheres era transparente, jamais o escondeu, como também não escondia  a narrativa  sobre a superioridade masculina. 

  Depois de cumprir o tempo como reservista, entrou para o Exército. Não era um cadete brilhante, mas tinha talento, especialmente em exercícios físicos. Seu "batismo"  na corporação foi de acordo com a tradição: testes físicos pesados. Fora colocado, puxando uma carroça de tração animal, com um oficial o chicoteando, para o delírio dos cadetes. E ele resistiu bravamente. Ao término dos testes, suado e cansado, irritou-se com a presença da esposa do Comandante, exigindo-lhe continência, que só foi aceita, a contragosto, depois da fala do comandante: - Soldado, é uma ordem! O nosso bravo soldado seguiu para  o alojamento, cabisbaixo, jurando vingança.  Um ódio ao Comandante tomou conta de seu ser. "Comandante que se submete a uma mulher, não merece respeito" sentenciou durante o trajeto.

     De onde vinha esse ódio, era o que os psicólogos tentariam descobrir, depois de uma série de eventos futuro. O cadete fez carreira no Exército, chegando a Oficial. O ódio às mulheres aumentava, com acréscimo aos vulneráveis: negros, índios, ciganos e pobres. Sua concepção sobre a supremacia branca ganhava contornos assustadores. Fazia planos de apurar a raça  humana. O mundo não se desenvolvia, segundo a sua teoria, por causa de uma raça inferior, preguiçosa e ardilosa. Eliminar, exterminar, fuzilar,  depurar eram suas palavras de ordem.  Mulheres não deviam ter os mesmos salários que os homens, porque ficam grávidas; que ao ir a um quilombo, constatou que um afrodescendente mais leve, pesava sete arrobas; que deveria ter fuzilado uns trinta mil corruptos; o grande erro foi torturar e não matar.  Esse homem tinha um projeto de poder, por isso entrara para o Exército. A farda impõe medo, confere poder.

     Mas, não era simples chegar a General, seu sonho. Vendo a realização desse sonho inviável, promoveu uma rebelião no quartel, com ameaça de tocar fogo. Foi expulso, embora premiado e aposentado como Capitão.

     A Europa foi devastada na segunda guerra mundial, provocada por um homem obcecado pelo poder e o ódio era o combustível,   principalmente aos judeus, tido por ele como inferiores, responsáveis pelo suposto atraso da humanidade. Suas frases de efeito reverberaram: 

"As grandes massas cairão mais facilmente numa grande mentira, do que numa mentirinha",  

"Que sorte para os ditadores que os homens não pensem". 

"Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela".

Encurralado pelo sistema de justiça, prestes a ser preso, esse homem se matou, levando consigo, sua esposa. 


    Obs.: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas, é mera coincidência. 


J Estanislau Filho

Imagem: o autor em Mariana-MG


J Estanislau Filho é mineiro de São João do Oriente, mas viveu a infância e parte da adolescência em Jampruca, no Vale do Rio Doce, divisa com o Vale Mucuri. Escreve em seu blog, no Recanto das Letras, no Facebook e em outras mídias socias. Editou e publicou os seguintes livros:

Nas Águas do Arrudas - poesias (1984)
Três Estações - poesias (1987)
O Comedor de Livros - poesias (1991)
Crônicas do Cotidiano Popular - crônicas (2006)
Filhos da Terra - crônicas com fechos poéticos (2009)
Todos os dias são úteis - poesias (2009)
Palavras de Amor - poesias (2011)
Crônicas do Amor Virtual - crônicas (2012)
A Moça do Violoncelo - contos (2015)
Estrelas - poesias (2015)
Prova de Vida - crônicas (2021)




9 comentários:

  1. Parabéns, escritor pelo seus escritos que nos faz refletir, além da diversidade de conteúdos que nos ensina e suas poesias que falam do amor, da Natureza e das causas sociais

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  2. Excelente. Retrata a personalidade animalesca, sentimentos inferiores arraigados n'alma humana e que no transcorrer da vida se manifestam contra outras pessoas. Na verdade, ninguém nasce deteriorado, como reencarnação de espiritos maus. A sociedade, o meio, e tudo o mais é que produz o individuo, suas qualidades e defeitos.

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  3. Somos a vida e a morte. O tudo e também o nada. Somos idealizadores. Maldosos ou bondosos...
    Esse texto retrata muito bem a alma humana, ora oferecemos riscos, ora somos a mais perfeita das ternuras. Você tem o dom de enxergar além... Parabéns! Parabéns! Parabéns!...
    (MARIA JOSÉ GOMES)

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    1. Valeu, Maria. Sempre bom o seu comentário. Volte mais vezes

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  4. Narrativa vívida, intensa, eu até acreditei que era real. Ficou excelente!!! Parabéns!!! Beijo de Maria Ventania.

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  5. Qualquer semelhança é mera coincidência!

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