quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A Vaca do Leite de Ouro




     Havia trinta e cinco anos que Altamiro Vaqueiro levantava às três horas da madrugada, lavava o rosto na bica, pegava Lenço Branco no pasto, arreava e ia tocar as vacas para dentro do currar e tirar o leite.
     Trinta e cinco anos enfrentando o orvalho das pastagens e monologando com as vacas do Coronel Fagundes. As vacas e os bezerros com seus berros; o cavalo Lenço Branco; o curral; as pastagens, tudo ao redor estava impregnado de Altamiro Vaqueiro, como se fosse um pedaço dele. Todas as madrugadas, às três em ponto, Altamiro se levantava e cumpria o mesmo ritual, que durava trinta e cinco anos.
     Certa noite o Coronel Fagundes fora acordado pelos latidos raivosos de seus trinta e dois cães. O Coronel sempre dormia sossegado, protegido por estas feras, nenhum bandido se atreveria transpor o limiar da tela, que cercava o terreiro de tamanho descomunal. Muitos fazendeiros e colonos vizinhos achavam um exagero e até mesmo um perigo manter estes ferozes animais. Sem contar os custos no trato, pois os cães do Coronel alimentavam-se de carne da melhor qualidade. Contudo, com exceção de Dona Anastácia, esposa fiel de quem não iria se separar nem mesmo após a morte, Fagundes tinha motivos de se proteger. Ninguém podia conhecer o seu segredo.
     Todas as noites os cachorros latiam, ora para afugentar um gambá que atacava o galinheiro, ora por farejar algo estranho no terreiro, ou latir por latir. Para o Coronel era uma canção de adormecer. Porém, nesta noite os latidos soavam no ouvido do fazendeiro de forma estranha. Ficou atento. Inicialmente os cães fizeram um barulho ensurdecedor, todos eles como se tomados de cólera, para logo em seguida diminuírem lentamente e ficarem rosnando, como se estivessem sendo domados por força maior. O Coronel Fagundes perscrutou com atenção e concluiu que os cachorros acariciavam com as línguas alguma coisa.
     Colocou a capa sobre o pijama, calçou as botinas e com a lanterna em mãos, foi ao terreiro certificar-se dos fatos.
"Falcão, Mineiro, Jardineira, já, vão deitar", gritou o Coronel. Os cães se retiraram, obedientes, e Fagundes vislumbrou uma cesta. Aproximou-se cautelosamente com a lanterna acesa e para seu espanto, dentro dela havia uma criança. O Coronel pegou a cesta e retornou ao quarto, enquanto Dona Anastácia dormia um sono profundo. Sacudiu a velha, que abriu os olhos, assustada. O Coronel mostrou-lhe a cesta com a criança, dizendo que suas promessas foram atendidas. Finalmente tinham um filho. A bem da verdade não era um filho de seu sangue, pensando bem, tratava-se de um rejeitado. decidiram criá-lo, pois, além de um dever de cristão, ele poderia ser útil na fazenda.
Batizaram a criança com o nome de Altamiro Aparecido, e só. Altamiro Aparecido, mais tarde conhecido como Altamiro Vaqueiro, um quase preto criado pelo Coronel Fagundes e Dona Anastácia, que percorria os quatro cantos da Fazenda Bela Vista, tangendo boi, consertando tapumes e chupando cana há trinta e cinco anos. Trabalhando e temendo a Deus, conforme os ensinamentos de Dona Anastácia. Levando castigo até decorar os Dez Mandamentos.  Descendo-lhe a palmatória, salpicando-lhe as palmas das mãos, para aprender a não dormir na hora dos rosários.
     Altamiro colocava em dúvida aquele modo de criação. Trinta e cinco anos de vida esquisita. Pensava nas surras. Só trabalhava e dormia junto de balaios, arreios, misturado a mantimentos. Sexo, praticamente só conhecia com éguas e mulas, nunca beijara uma mulher. Lembrou do dia em que, arretado, arrebentara a égua de estimação do Coronel, após obrigá-la a correr sem parar. O indefeso animal deitou e nunca mais se levantou.  Lembrou do dia em que meteu uma bala na cabeça da cachorra parideira do Coronel Fagundes. Para cada ato descoberto, uma surra de ter de se lavar em água com sal. Dona Anastácia era ruim de doer, para ele, nem comida igual a dos cachorros. Depois, as surras sem explicação. Qualquer mal malfeito era culpa de Altamiro.
     Altamiro Vaqueiro lembrou, com revolta, do dia em que o Coronel dissera que já era hora dele começar a trabalhar, para compensá-los das horas de sono perdidas, que tiveram, para dar a ele um berço.^Você já é um homem feito e está na hora de retribuir o que fizemos ao pegá-lo no terreiro, quando os cães poderiam ter te devorado, como fazem com os gambás". Ele, Altamiro Aparecido, rejeitado, aos oito anos de idade enfrentando o eito, prendendo bezerros, moendo cana no engenho, apanhando e sofrendo todo tipo de humilhação, dormindo no meio de xixi de vaca, cara suja de carvão e a alma desamparada. Antes, naquela noite trágica sido devorado pelos cães, ou que sua desconhecida mãe o tivesse enterrado vivo. Lembrou ainda das palavras de Dona Anastácia "comerás o pão com o suor do teu rosto", quando o Coronel lhe dissera para não entrar pela casa sem autorização, ele, com apenas 11 anos, pelos cálculos de Jeremias, amigo e colono da Fazenda Bela Vista.
     Todas estas lembranças deixavam Altamiro Vaqueiro com um misto de revolta e confusão. Pensava em sumir, mas antes haveria de fazer justiça. Lembrou, com o semblante carregado, do dia em que Fagundes, na praça da igreja, dera-lhe uma surra de chicote na presença dos fiéis, que acabavam de assistir a missa. As chicotadas desciam impiedosamente sobre suas costas, com o apoio do Padre Anselmo, que dizia "é isso mesmo Coronel, é preciso educar este negrinho no temor a Deus". Movido pelo ódio, a cada chicotada, Altamiro gritava "odeio Deus, odeio todos vocês, prefiro me queimar no inferno". Quanto mais blasfemava mais apanhava, até que, não suportando as dores, caiu por terra de boca no chão e lá ficou estendido várias horas.
     Altamiro Aparecido, mais conhecido por Altamiro Vaqueiro, só agora aos trinta e cinco anos tomava uma decisão. Lembrou com desdém da noite em que penetrara no quarto da filha bastarda do Coronel e despiu-a. Era apenas uma criança de sete anos e dormia profundamente. Fechou o semblante ao recordar o dia em que Dona Anastácia não permitira que ele almoçasse mais na varanda, que daquele dia em diante se virasse para conseguir alimento. Aproveitou a ausência do Coronel e, num dia de nuvens negras esmagou o crânio de um dos cães, deixando-o estendido na entrada da casa. Sentiu alegria vendo a dor da perda nos olhos do pai adotivo. Lembrou com prazer o dia em que deixou de ordenhar as vacas, pois passara a noite em um pagode e enrabara, pela primeira vez uma mulher, a negra Isaura. Esta atitude levou o Coronel a tomar o único presente que lhe dera em um dia de coração mole: a vaca Malhada, prestes a dar cria. Sorriu, lembrando da vingança, ao dar veneno aos porcos, matando vinte e sete cabeças, para desespero do Coronel Fagundes e de Dona Anastácia. Subiu-lhe um ódio ao recordar a primeira surra que levara e das palavras do patrão "abaixe as calças e vire a bunda, para apanhar". A cada surra era obrigado a se joelhar, rezar e pedir ao Pai do Céu, que fizesse dele uma criatura honrada, temente a Deus.
     E na madrugada dos trinta e cinco anos, conhecedor do segredo do Coronel, Altamiro saiu do rancho, quando o galo cantou pela primeira vez. Três da madrugada, em ponto. Nunca falhara: hora de cumprir com a sua obrigação. Altamiro intuía que aquele seria o dia de sua libertação. Outro galo respondeu com um canto triste, agourento. Lembrou-se das palavras proféticas de Jesus a Pedro: "Quando o galo cantar...". Foi até a bica, lavou o rosto, foi ao pasto, assobiou e Lenço Branco atendeu. Arreou o cavalo e foi buscar o rebanho, parar tirar o leite. O capim parecia estar com menos orvalho, apesar da chuva do dia anterior e estava alto, verde, bonito. De cima do cavalo, Altamiro dava pontapés no capim, na tentativa de molhar a barra da calça. Lenço Branco estava inquieto, anunciando mau presságio. Altamiro dava leves chicotadas em suas clinas, dizendo "calma Lenço Branco, hoje é o dia da nossa libertação, claro, você vai comigo, não é velho companheiro?". O cavalo que sim, balançando o pescoço.
     Tudo estava quieto. As vacas soltavam berros agourentos e os bezerros respondiam com berros longos e monótonos. Os cães ganiam no terreiro e os gatos se engalfinhavam no telhado da sede da fazenda, como canção de ninar para o casal da fazenda. Altamiro juntou as vacas no curral, amarrou o tamborete na cintura e abriu a porteira, a cancela dos bezerros, para iniciar a ordenha. Cada um sabia a sua hora, não se antecipava. Primeiro era Mimosa, depois Graúna e em seguida Bolacha, até chegar a última a ser ordenhada, Pinta Preta. Porém neste dia, Mimosa se recusou a sair. Altamiro não ligou, estendeu a mão ao bezerro, que lambeu-a olhando os olhos do vaqueiro. Altamiro, sempre carinhoso com os animais, abraçou-o dizendo: "o que há meu bichinho? Não tem importância. Hoje vou te deixar por último". Deu um tapinha em sua bunda e o animal se retirou para um canto do curral. Chamou Graúna, que como sempre, veio lenta. Jogou a corda em suas pernas traseiras e amarrou a bezerra na dianteira, para tirar o leite. Assim como o resto do rebanho, Graúna parecia diferente, triste.
     Aparecido preparava-se para ordenhar Mimosa, a última vaca. Era desnecessário amarrar-lhe as pernas, pois ela era extremamente mansa. Rompia a aurora, quando apertou suas tetas. Ergueu os olhos e divisou o Coronel Fagundes sobre a cerca do curral, segurando o chapéu e cofiando o bigode. O vaqueiro olhou-o com ódio, ao ouvi-lo dizer: "Não quero saber de alteração na ordem das coisas, Mimosa deve ser a primeira a ser ordenhada".  Altamiro explicou os motivos e o fazendeiro retrucou: Vaca minha não tem querer e que isto não se repita". O vaqueiro respondeu com firmeza: "Pode ter certeza, não vai mais acontecer" e continuou o trabalho.
     Altamiro, a princípio não entendeu o  que estava acontecendo. Apertou novamente as tetas de Mimosa e o leite continuou saindo amarelo, feito ouro. Sim, era ouro mesmo. Gritou: Mimosa está dando ouro!". Fagundes pulou ao chão, berrando: "Você está louco, onde já se viu ouro líquido em ubre de vaca!", Contudo, era ouro.
    Altamiro Aparecido, conhecido por Altamiro Vaqueiro, um quase negro, rejeitado pela mãe, continuou tirando o leite de Mimosa. Era ouro de verdade. Dez litros, que solidificaram no interior do latão. Aparecido, que conhecia o segredo do Coronel, percebeu que o velho sovina ficaria mais rico. Porém uma surpresa, um trágico evento estava prestes  de acontecer. O plano do vaqueiro seria executado.
     O Coronel ficou possesso e queria mais ouro, mas o ouro não saía mais. Sacou o revólver e deu um tiro na cabeça da vaca e ordenou que Altamiro abrisse a barriga da mesma, para ver se encontrava mais ouro. Altamiro, mais conhecido por Altamiro Vaqueiro, trinta e cinco anos trabalhando na Fazenda Bela Vista, agarrou o fazendeiro e deferiu-lhe uma facada na barriga. O velho caiu. Altamiro abriu-lhe o ventre e jogou todo o ouro dentro, costurando em seguida. O rebanho, em uníssono, berrava e os cães latiam desarvorados. Em seguida Aparecido foi ao quarto e arrancou Dona Anastácia da cama, pegou o colchão e rasgou, revelando o segredo: lá estavam milhares de cédulas, muito dinheiro. Arrastou a velha até o curral, mostrando-lhe o defunto, antes de atear fogo. O coração de Dona Anastácia não suportou e parou de bater. Seu corpo tombou sobre o fogo em que seu marido ardia.
     Altamiro Aparecido montou em seu cavalo e desapareceu, levando para sempre consigo o berro triste de Mimosa. No cemitério da Fazenda Bela Vista, Coronel Fagundes e Dona Anastácia jazem. Na lápide está escrito:

     Aqui jazem Coronel Fagundes e sua fiel esposa, Dona Anastácia!

Dizem que Altamiro Aparecido, mais conhecido por Altamiro Vaqueiro continua percorrendo fazendas, montado em Lenço Branco, protegendo os animais da fúria humana.



J Estanislau Filho.

Este conto foi escrito no ano 2000 e integra a antologia da Academia Dorense de Letras. Premiado no III Concurso de Contos de 2001, com o apoio do Bradesco e da Casa da Cultura.




6 comentários:

  1. Isto é mais que 'poesia'. Seu conto me transporta para a infância,é a história vivida por meu Pai,sem os atos de violência claro...rsrsrs
    A sensibilidade de conviver com animais, a dedicação ao trabalho no campo.
    Parabéns!

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