quarta-feira, 5 de julho de 2017

Brasil não tem alma, não tem caráter, não tem dignidade e não tem um povo



* Aldo Fornazieri

O presidente da República foi flagrado cometendo uma série de crimes e as provas foram transmitidas para todo o país.

Com exceção de um protesto aqui, outro ali, a vida seguiu em sua trágica normalidade.

Em muitos outros países o presidente teria que renunciar imediatamente e, quiçá, estaria preso.

Se resistisse, os palácios estariam cercados por milhares de pessoas e milhões se colocariam nas ruas até a saída de tal criminoso, pois as instituições políticas são sagradas, por expressarem a dignidade e a moralidade nacional.

Aqui não.

No Brasil tudo é possível.

Grupos criminosos podem usar as instituições do poder ao seu bel prazer.

Afinal de contas, no Brasil nunca tivemos república.

Até mesmo a oposição, que ontem foi apeada do governo, dá de ombros e muitos chegam a suspeitar que a denúncia contra Temer é um golpe dentro do golpe.

Que existem vários interesses em jogo na denúncia, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe.

Mas daí adotar posturas passivas em face da existência de uma quadrilha no comando do país significa pouco se importar com os destinos do Brasil e de seu povo, priorizando mais o cálculo político de partidos e grupos particulares.

O Brasil tem uma unidade política e territorial, mas não tem alma, não tem caráter, não tem dignidade e não tem um povo.

Somos uma soma de partes desconexas.

A unidade política e territorial foi alcançada às custas da violência dos poderosos, dos colonizadores, dos bandeirantes, dos escravocratas do Império, dos coronéis da Primeira República, dos industriais que amalgamaram as paredes de suas empresas com o suor e o sangue dos trabalhadores, com a miséria e a degradação servil dos lavradores pobres.

Índios foram massacrados; escravos foram mortos e açoitados; a dissidência foi dizimada; as lutas sociais foram tratadas com baionetas, cassetetes e balas.

A nossa alma, a alma brasileira, foi ganhando duas texturas: submissão e indiferença.

Não temos valores, não temos vínculos societários, não temos costumes que amalgamam o nosso caráter e somos o povo, dentre todas as Américas, que tem o menor índice de confiabilidade interpessoal, como mostram várias pesquisas.

Na trágica normalidade da nossa história não nos revoltamos contra o nosso dominador colonial.

Ele nos concedeu a Independência como obra de sua graça.

Não fizemos uma guerra civil contra os escravocratas e não fizemos uma revolução republicana.

A dor e os cadáveres foram se amontoando ao longo dos tempos e o verde de nossas florestas foi se tingindo com sangue dos mais fracos, dos deserdados.

Hoje mesmo, não nos indignamos com as 60 mil mortes violentas anuais ou com as 50 mil vítimas fatais no trânsito e os mais de 200 mil feridos graves.

Não nos importamos com as mortes dos jovens pobres e negros das periferias e com a assustadora violência contra as mulheres.

Tudo é normal, tragicamente normal.

Quando nós, os debaixo, chegamos ao poder, sentamos à mesa dos nossos inimigos, brindamos, comemoramos e libamos com eles e, no nosso deslumbramento, acreditamos que estamos definitivamente aceitos na Casa Grande dos palácios.

Só nos damos conta do nosso vergonhoso engano no dia em que os nossos inimigos nos apunhalam pelas costas e nos jogam dos palácios.

Nunca fomos uma democracia racial e, no fundo, nunca fomos democracia nenhuma, pois sempre nos faltou o critério irredutível da igualdade e da sociedade justa para que pudéssemos ostentar o título de democracia.

Nos contentamos com os surtos de crescimento econômico e com as migalhas das parcas reduções das desigualdades e estufamos o peito para dizer que alcançamos a redenção ou que estamos no caminho dela.

No governo, entregamos bilhões de reais aos campeões nacionais sem perceber que são velhacos, que embolsam o dinheiro e que são os primeiros a dar as costas ao Brasil e ao seu povo.

No Brasil, a mobilidade social é exígua, as estratificações sociais são abissais e não somos capazes de transformar essas diferenças em lutas radicais, em insurreições, em revoltas.

Preferimos sentar à mesa dos nossos inimigos e negociar com eles, de forma subalterna.

Aceitamos os pactos dos privilégios dos de cima e, em nome da tese imoral de que os fins justificam os meios, nos corrompemos como todos e aceitamos o assalto sistemático do capital aos recursos públicos, aos orçamentos, aos fundos públicos, aos recursos subsidiados e, ainda, aliviamos os ricos e penalizamos os pobres em termos tributários.

Quando percebemos os nossos enganos, nos indignamos mais com palavras jogadas ao vento do que com atitudes e lutas.

Boa parte das nossas lutas não passam de piqueniques cívicos nas avenidas das grandes cidades.

E, em nome de tudo isto, das auto-justificativas para os nossos enganos, sentimos um alívio na consciência, rejeitamos os sentimentos de culpa, mas não somos capazes de perceber que não temos alma, não temos caráter, não temos moral e não temos coragem.

Da mesma forma que aceitamos as chacinas, os massacres nos presídios, a violência policial nos morros e nas favelas, aceitamos passivamente a destruição da educação, da saúde, da ciência e da pesquisa. Aceitamos que o povo seja uma massa ignara e sem cultura, sem civilidade e sem civilização.

Continuamos sendo um povo abastardado, somos filhos de negras e índias engravidadas pela violência dos invasores, das elites, do capital, das classes políticas que fracassaram em conduzir este país a um patamar de dignidade para seu povo.

Aceitamos a destruição das nossas florestas e da nosso biodiversidade, o envenenamento das nossas águas e das nossas terras porque temos a mesma alma dominada pela cobiça de nos sentirmos bem quando estamos sentados à mesa dos senhores e porque queremos alcançar o fruto sem plantar a árvore.

Se algum lampejo de consciência, de alma ou de caráter nacional existe, isto é coisa restrita à vida intelectual, não do povo.

O povo não tem nenhuma referência significativa em nossa história, em algum herói brasileiro, em algum pai-fundador, em alguma proclamação de independência ou república, em algum texto constitucional, em algum líder exemplar.

Somos governados pela submissão e pela indiferença.

Não somos capazes de olhar à nossa volta e de perceber as nossas tragédias.

Nos condoemos com as tragédias do além-mar, mas não com as nossas.

Não temos a dignidade dos sentimentos humanos da solidariedade, da piedade, da compaixão.

Não somos capazes de nos indignar e não seremos capazes de gerar revoltas, insurreições, mesmo que pacíficas.

Mesmo que pacíficas, mas com força suficiente para mudar os rumos do nosso país.

Se não nos indignarmos e não gerarmos atitudes fortes, não teremos uma comunidade de destino, não teremos uma alma com um povo, não geraremos um futuro digno e a história nos verá como gerações de incapazes, de indiferentes e de pessoas que não se preocuparam em imprimir um conteúdo significativo na sua passagem pela vida na Terra.

*Aldo Fornazieri é Professor da Escola de Sociologia e Política

11 comentários:

  1. A questão é que os EUA implantaram a mídia poderosa que faz bem aos ricos, corrompem a classe média, enganam os pobres e até trabalhadores e fica uma minoria consciente ISOLADA pelos 4 cantos do país. Na verdade somos duramente dominados. As pessoas são honestas e dignas, porém iludidas pelo poder do CAPITALISMO.

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    1. Elite brasileira é submissa ao capital internacional, notadamente dos Estados Unidos; e nós, povo, feita as exceções de praxe, submissos a patronal. Grato pela presena. Sebastião.

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  2. Somos, não sem constrangimento, obrigados a concordar com ele mas não gosto do modo como generaliza um pouco.Jorge de Lima, meu conterrâneo poeta respondia quando falavam de Alagoas, atribuindo-lhe tudo de ruim: "Minhas Alagoas são outras". Vou parafraseá-lo dizendo que meu "Brasil é outro".

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    1. Pois é, Edna, houve resistência indígena (confederação dos tamoios); negra (quilombos) e operária (greves). Mas não houve uma rebelião consistente feita por nós, o povo. Como o autor cita, nem mesmo a "nossa" burguesia fez a sua revolução. Grato pelo contraponto necessário. Abraço.

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  3. Fiz um comentário e ele desapreceu. Dizia que o povo breasileiro é trablahador, honesto e digno. Há 70 anos o poder do capitalismo internacional domina as redes de rádios, TVs e Jornais que aguça a ganância dos ricos, estimula a inveja da classe média, entorpece a mente do povo e engana até parcela dos trabalhadores. Resta pessoas conscientes, algumas até se juntam em organizações, mas o poder do capitalismo que adota métodos fascistas investe bilhões para apropriar de tanta riqueza que tem no Brasil: petroleo, minerais, grãos, fibras, leite e carne. O essencial para o mundo.

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    1. É que esse blog tem moderador, Verly. Assim que meu filho vier aqui, vou pedir se consegue mudar isso. Abraço, grato pela compreensão.

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  4. Muito bem elaborada o seu artigo. Parece-me que o ser humano, está envolvido em seus próprios medos e sobrevivência, que esquecem da parte patriótica, parece que a dor de tantas perdas e violência está deixando o coração mais duro, ou estamos mesmo é sem ação pela própria auto defesa. Aonde está as passeatas? Diminuiram de repente, por outro lado empregados são ameaçados de faltarem para fazer passeatas, de demissão. E o medo do desemprego, de tudo, vai minando as forças. Temos tanta corrupção no governo, que está virando coisas simples, pois quase ninguém é punido, há uma injustiça dentro da justiça, a justiça não tem forças, se eles condenam na Câmara ou Senado, livram os corruptos, atando as mãos do judiciário, que deveria ter poder sobre os outros dois poderes, pois lá estão homens da justiça, enquanto no cenário político, há também, "qualquer um"...Há tanta coisa errada, não há respeito...

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    1. Haveremos de dar a volta por cima, Norma. Que "nossas" instituições são podres, não há dúvidas. A história está em movimento permanente. Não bastam eleições, precisamos fiscalizar, ir às ruas. Obrigado pelas considerações, seja sempre bem-vinda. Abraço

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  5. Enquanto educação e ensino não forem prioridade não há povo, há massa, e massa é conduzida, jamais será condutora. Somos escravos de nós mesmos, e não assumimos nossas limitações, preferindo sempre a válvula do escapismo, culpando outros pelas nossas entranhadas mazelas. Não houve, não há, nem nunca haverá independência ou morte, enquanto o coitadismo e o revoltismo não derem lugar ao pragmatismo na educação.

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    1. Fazendo uma analogia com o futebol, somos todos técnicos. Cada cabeça uma sentença. Grato pela presença, e leitura atenta, arnaldo. Felicidades.

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  6. Certo que o país tem alma, mas uma alma enclausurada. O grito de redenção terá que vir por uma educação digna, que vise em primeiro plano, o homem em sua totalidade. E novamente nos vemos de mãos atadas porque a educação é dada feito migalha, maliciosamente planejada para toldar o homem de forma que seja servil, que não alcance a sua totalidade que o libertará. Agora, ainda temos em mãos, uma ferramenta, o voto direto. Conscientização é um trabalho árduo.

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