sábado, 21 de abril de 2018

As fronteiras de um coração valente




Por Renato Balbim

 San Diego, EUA, fronteira com Tijuana, México -- a mais violenta das fronteiras do século XXI. Foi nesse espaço de limites, conflitos e normas separando e unindo povos que Dilma encerrou sua recente incursão aos Estados Unidos, no ultimo dia 18 de abril. Ali discorreu sobre uma violência institucional com potencial para gerar desdobramentos políticos e sociais equivalentes aos do entorno:  o golpe de estado parlamentar no Brasil, que uniu elites, o dinheiro, a escória política, parte do judiciário e o conservadorismo asfixiante de um sistema de mídia oligopolizado.

O evento foi organizado pelo programa de estudos brasileiros 'J. Keith Behner e Catherine M. Stiefel', da Universidade Estadual de San Diego (SDSU), e pela Universidade da Califórnia San Diego (UCSD), seguindo-se a duas programações similares realizadas em Stanford e Berkeley.

Dilma justificou a legenda de um coração valente e forte nas boas vindas de “700 professores e de uma vibrante comunidade de nacionalidades diversas, marca registrada de uma instituição que sendo tão próxima ao muro conflituoso, orgulha-se de ter uma comunidade estudantil marcadamente latina.” 
Parte dela, diga-se, assim como aconteceu nos anos de Lula e Dilma no Brasil, formada por jovens representantes de famílias até então sem um único diploma universitário em sua linhagem.

Nesse cenário, a esse público, Dilma cumpria a missão adicional de seu périplo: a denúncia internacional da prisão politica do Presidente Lula e de sua condição de encarcerado quase incomunicável na solitária de Curitiba, para onde foi enviado pelo juiz Sergio Moro.

 Dilma magnetiza a tensão das plateias ao explicar o significado dessa tentativa de apagar a imagem, a voz e a liderança do ex-presidente mais popular da história brasileira, que tem na mídia um garrote de pressão decisivo.

 Em um país como os Estados Unidos em que tanto já se discutiu o “solitary confinement”, a Presidenta brasileira ensina que a solitária é uma forma de tortura. Que foi aperfeiçoada a partir da observação acurada daqueles que exercem a violência: eles sabem que os seres humanos para existir --explica, necessitam olhar a face de seus semelhantes, relacionarem-se com eles, identificarem-se, enfim, resume, não somos apenas individualidades. 

 Impedir, dificultar e seccionar todas as formas de comunicação entre os golpeados e a sociedade  constitui uma arma central do golpe,  ressaltou Dilma de forma pedagógica, capacitando a plateia progressivamente a compreender assim o grau de arbítrio e de violência  intrínseco à Lava-Jato.

'Numa ditadura militar', explica, 'a árvore da democracia é cortada na raiz, esgotam-se todos os direitos e liberdades civis'.  'A diferença agora', detalha a ex-presidenta derrubada por um impeachment em 2016, 'é que temos algo mais dissimulado'. E retoma a sua metáfora: 'A árvore é corroída por parasitas e fungos das instituições e o golpe fica escondido atrás de biombos legais', verniz do rito do qual foi vítima.

A reconhecida valentia da oradora pode ser constatada ao vivo pelos presentes, quando enfrentou, pela primeira vez nesta viagem, o ódio e a violência habitual no seu país. Neste caso, protagonizado por dois grupos de 3 e 4 pessoas vestidos em uniforme da seleção e nervosos... Para os gringos eram apenas fãs da seleção canarinho, mas para ela e os demais brasileiros presentes, o estereótipo de um Brasil que definitivamente não é mais aceito em ambientes democráticos.

A tentativa de intimidação, que se manifestaria também nas redes sociais de brasileiros e brasilianistas da região, chocando seus integrantes norte- americanos, irrompeu  logo depois de a ex-presidenta relatar os termos do voto do deputado Bolsonaro pelo seu impeachment, há exatos dois anos.”

O relato trouxe para o auditório um tempero da desconcertante violência de um ex-militar que idolatra algozes e assassinos dos anos de chumbo no Brasil.

“Voto a favor da ditadura militar, voto em favor da tortura, voto a favor do Senhor Carlos Alberto Brilhante Ustra que foi o torturador que aterrorizou a vida da Presidenta Dilma Rousseff” --relatou a ex-presidenta remexendo as entranhas da sua memória e do seu corpo, ela própria vítima da tortura como prisioneira política do regime militar brasileiro.

Um senhor nervoso que a tudo filmava, claramente descolado do resto da audiência, saudou o nome do deputado que faz apologia à violência e à tortura. Mereceu insignificantes aplausos histéricos, logo rechaçados por norte-americanos que defenderam o direito da ex-presidenta à palavra.

A experiência serviu para a plateia vivenciar em ponto pequeno a intensidade das rupturas sociais em curso no Brasil.

Dilma não se abalou e calibrou seu repto enumerando a lista de agressões das quais foi vítima no contexto da violência estrutural contra as mulheres no Brasil, uma barbárie cotidiana física e simbólica, que se adensa contra as negras, os jovens pobres e as comunidades periféricas.

Na raiz do cerco segregacionista, explicou, remontam 300 anos de escravatura que persistem no DNA da desigualdade brasileira, afrontada por distintas políticas sociais desenvolvidas nos últimos anos, contra as quais se fez o golpe de 2016.

Todavia, não estamos diante de um ponto fora da curva, ressaltou a oradora assertiva.

O golpe do qual ela foi a vítima mais direta filia-se uma matriz histórica que, de um jeito ou de outro, atingiu todos os governantes que tentaram alterar os mecanismos da desigualdade brasileira.

Invariavelmemte seu final foi conflituoso. Com um adicional de gravidade agora, atalha a dirigente brasileira: a radicalização extremista e conservadora lança raízes em escala global.  A crise do neoliberalismo --uma ruptura sistêmica sem a contrapartida de forças de superação-- abriu a caixa de pandora da qual saltaram os monstros que ora se manifestam no Brasil, mas também em outros países ricos e pobres.

Na marcha da intolerância, a desigualdade é senhora novamente. O direito do povo brasileiro a um futuro melhor está sendo interditado como um desvio populista 'voluntarista', conforme ensina o libreto entoado diuturnamente pelos veículos conservadores no Brasil.

Ao se despedir, a ex-presidenta fez um pedido e uma proposta de engajamento contra essa investida.

Dilma exortou os presentes a se engajarem na campanha “Lula Livre”, duas palavras que juntas condensam a essência do embate atual no Brasil, mas também no resto do mundo, por mais democracia e justiça social. 

“Ao resistirmos à prisão de Lula, ao recusarmos retirar a sua candidatura, estamos construindo também o nosso futuro”, disse. Afinal, um país só será respeitado, de fato, se for capaz de escrever e contar a sua própria história. Hoje no Brasil isso se faz com as tintas da resistência democrática.

Foi assim que Dilma fechou a sua jornada. Falando sobre resistência e democracia.  Algo entranhado em sua vida, como na de Lula e de muitos de seus companheiros de militância, ora sob um cerco político determinado a extirpa-los da vida pública do país.

O sentido de coêrencia entre o discurso e a figura da ex-presidenta brasileira ecoou longamente na fronteira de San Diego, como tem acontecido nas plateias de todo o mundo que se reúnem para ouvir a voz e o apelo desse coração, sim, valente.  





Renato Balbim é doutor em Geografia Humana e pesquisador na Universidade da Califórnia

Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/As-fronteiras-de-um-coracao-valente/4/39956

6 comentários:

  1. Respeito sua posição política, mas Dilma já é página virada. A fila já andou e foi substituída por pior do que Ela. Cometeu seus deslizes administrativos e econômicos, mas nada pode se falar ate agora sobre sua honestidade, mas no Brasil de hoje, tudo pode surgir como em um passe de mágica...

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    1. Carlos, o artigo não é de minha autoria. Quanto ao Dilma ser página virada, não sei. Como você mesmo afirma, "no Brasil de hoje, tudo pode surgir em um passe de mágica...", inclusive Dilma ser eleita Senadora por Minas Gerais, ou mesmo não termos eleições, pois o estado de exceção está corroendo as instituições, a Constituição, enfim, a Democracia.

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  2. Excelente artigo, Estan. Coerente e corajoso.

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  3. Parabéns, pela sua capacidade de nos oferecer temas atuais e de alto valor. Vou postar parte para meus amigos. E repassar por e-mail. verly

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    1. Obrigado, Verly, a luta pela Democracia não pode parar. Abraços.

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