terça-feira, 15 de outubro de 2019

Amnésia




Evandro tentava compreender os motivos que o levara a se esquecer de eventos pretéritos e até mesmo presentes. Não entendia o sentido da existência de televisão, rádio, computador. Não enxergava matas, rios, nem mesmo pássaros em cativeiro. No zoo viu tamanduá dar bandeira. Em síntese, Evandro não entendia o sentido da vida. No estágio inicial do transtorno, conseguia apreender o instante já, o agora, que se esvaia, na vã tentativa de segurá-lo na memória.
      Andava pelas ruas e avenidas, entrava em supermercados reparando tudo, mas atento ao itinerário que o conduziria de volta à sua casa. Pegava ônibus e metrô, distribuía sorrisos e cumprimentos e ao regressar não se lembrava onde estivera. Olhava-se no espelho durante um longo tempo, ora sorrindo, ora fazendo caretas. E perguntava: - Quem é você? De onde veio, para onde vai?
      A família e os amigos demoraram a entender que Evandro não estava bom da cachola. A coisa foi acontecendo de modo imperceptível e quando perceberam, estava em estágio avançado: Evandro perdera completamente as faculdades mentais, concluíram. Não falava coisa com coisa.
     No começo ele conversava, aparentemente, normal. Respondia com clareza às perguntas; falava de literatura e filosofia: “se Stravoguini crê não crê que crê, se Stravoguine não crê, não crê que não crê”, citando Camus, analisando o personagem de Dostoiéviski em o Mito de Sísifo. Gostava de Ivan Karamazov e Joseph K. Dizia-se ser o homem dionisíaco, do meio-dia, além do bem e do mal.
    Deixou-se levar a um eminente psiquiatra, que se interessou pelo caso. O problema de Evandro o interessou tanto, que ele abriu mão dos honorários e cancelou consultas, para garantir agenda ao novo cliente. O Dr. Hipócrates vislumbrou a possibilidade de elaborar uma nova teoria sobre a condição humana. “Ah Evandro, poderei ser o primeiro especialista da psiquê tupiniquim a ganhar o Prêmio Nobel de psiquiatria...”, devaneava o médico, com olhos esbugalhados e cabelos desgrenhados. Evandro olhava o psiquiatra e ria um riso do outro mundo. O médico esfregava as mãos de contentamento.
      Dr Hipócrates receitou-lhe centenas de comprimidinhos coloridos e Evandro ingeria-os com sonoras gargalhadas. Às vezes os retiravam das cartelas e os espalhavam sobre a mesa. E se distraia construindo castelos, mandalas, edifícios e outras coisas incompreensíveis às pessoas lúcidas. Acontecia de sair à rua nu, para desespero dos familiares. Ao ser recolhido, recebia beliscões de advertência e ele ria, ria, ria e dizia, “mamãe, você não quer Vandinho pelado mais não? Ah mamãe...”
     Hematomas brotavam em seu corpo, marcas da intolerância humana. Evandro, outrora um trabalhador responsável, rapaz de bons modos, tornara-se um estorvo. A família pediu ao Dr Hipócrates que o internasse imediatamente. O psiquiatra sorriu de contentamento. “Muito bem, decisão sábia. Assinam esses documentos, que me autorizam a cuidar do paciente, certo? Doravante cuidarei de você – disse olhando para Evandro, que se encontrava sentado na poltrona do consultório, de olhos fixos em um ponto indefinido – meu rapaz, vamos dissecar sua mente e revelar à humanidade os avanços da indústria farmacêutica da medicina, muito obrigado, podem ir”. – Ficamos livre daquele mala – disse Ana Flávia, a irmã, cujo endereço, na internet é flavialindinha.com.br .
    Poucos anos depois, Evandro e Dr Hipócrates foram encontrados nus, por funcionários do Ibama, atirando pedras para o ar e aparando com a cabeça, próximos de uma cachoeira na Serra do Cipó. Ambos foram entregues às respectivas famílias, pois, com a nova legislação, não se permite internar pessoas com transtornos mentais.

J Estanislau Filho


Com Geraldo Bernardes no lançamento de Palavras de Amor no Berimbau Circo Bar - Contagem-MG

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