quinta-feira, 18 de junho de 2015

O Abutre




Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava- me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.

– É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.

– Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Basta um tiro e pronto!

– Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?

– Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?

– Não sei lhe dizer. – respondi.

Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:

– De qualquer modo, vá, peço-lhe.

– Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível.

O abutre escutara tranqüilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.


Franz Kafka

13 comentários:

  1. Curioso e intrigante seu conto, com desfecho muito bom!
    Parabéns...

    ResponderExcluir
  2. Trágico e surreal. Assim são os seres peixes da cintura para cima.

    ResponderExcluir
  3. Que instigante, muito bom, dá até pra imaginar que esse abutre tinha algo de humano...Os crimes com requintes de tortura praticado pelos humanos, são bem piores.
    Aplausos!!
    Abçs!

    ResponderExcluir
  4. Só posso dizer que me emocionou muito...Maria Luiza...

    ResponderExcluir