quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Os Metalúrgicos




À memória do líder sindical Joaquim José de Oliveira



     "O Velho - assim era chamado um antigo militante do Sindicato dos Metalúrgicos - estava segurando o microfone enquanto percorria a plenária com um olhar cinematográfico. Suas mãos tremiam e o coração batia descompassado. O Sindicato estava lotado e os aplausos soaram fortes como há muitos anos não acontecia. Um grito isolado ecoou no plenário:
     - Vai firme, companheiro!
     Antes de começar a falar com sua voz de trovão, os pensamentos povoaram a cabeça do Velho, cabeça de onde surgiam fios brancos de cabelo. Milhares de lembranças, em questão de segundos, como relâmpagos, tomaram conta de seus pensamentos. Lembrou dos anos ferozes de repressão; sindicato sob intervenção; dos companheiros mortos, mutilados, exilados; um tempo de agonia e medo. Um tempo de silêncio, de grito reprimido. O Sindicato dos Metalúrgicos, palco de muitas lutas e conquistas, de debates, depois esvaziado por bombas e traidores. Ele indo para casa desolado. Depois vendendo tempero de porta em porta e na igreja evangélica, pregando a libertação da classe trabalhadora.
     O Sindicato estava novamente lotado. Começava a voltar para as mãos de seus legítimos construtores. Difícil esconder a emoção, diante de uma nova geração de metalúrgicos que desconhecia o longo período de silêncio e medo que se abateu sobre as lideranças sindicais. Poucos sabiam que todos os dias "O Velho" percorria os caminhos solitários que levavam ao sindicato, certo que "não há derrota definitiva para a classe operária". Sob o silêncio da repressão, ele continuava o seu trabalho de levar consciência e organização aos humilhados e ofendidos, na certeza de que um dia veria novamente a casa cheia. Sofrera humilhações, muitos riram em sua cara, fizeram deboches diante do sindicato vazio e do silêncio da classe operária. Contudo, como a aranha que pacientemente tece a sua rede, para apanhar a sua presa, "O Velho" tecia a organização sindical.
     Ele permaneceu por mais alguns segundos em silêncio, observando os companheiros ocupando todos os espaços do salão e da quadra do sindicato. Estava feliz e precisava falar. A voz estava embargada pela emoção e algumas lágrimas caíram sobre o microfone em sinal de cumplicidade.
     - O que está acontecendo com "O Velho"? - perguntou um companheiro no ouvido do outro.
     - Estranho... parece que perdeu a voz.
    - Companheiros, - vencendo o nó na garganta "O Velho" iniciou seu discurso - devo confessar que estou emocionado. Depois de muitos anos que o nosso sindicato só não criou teias de aranha porque os faxineiros não permitiram, estou feliz vendo a casa cheia, vendo os companheiros assumindo os seus lugares, pois as paredes e os alicerces desta casa foram erguidos com o suor e o sangue dos trabalhadores. Só não digo que os metalúrgicos são como o filho pródigo que retornou à casa do pai, porque o filho pródigo saiu por vontade própria, enquanto muitos brasileiros foram expulsos. A casa que nos pertence voltou às nossas mãos e vamos cuidar dela com zelo, com organização e muita união, para que nunca mais nenhum aventureiro se aposse dela. Durante todos estes anos fomos humilhados por generais traidores, que tiraram a vida de muitos companheiros; que nos expulsaram de nossas casas com seus tanques de guerra, com seus cães amestrados, para garantir os monopólios. Generais que nos impuseram o arrocho salarial, enquanto o custo de vida disparava.
     Parou por um instante, observando a multidão que o ouvia em silêncio. Suas mãos tremiam, mas, as palavras saíam lúcidas, e como balas iam diretas ao coração do capitalismo. A multidão aplaudiu aos gritos de "trabalhador unido, jamais será vencido!"
     - Companheiros e companheiras, - continuou, limpando o suor da testa com a mão - assim como o boi tem os chifres e o burro tem os cascos para se defenderem, os trabalhadores têm a greve!
     Fez um breve intervalo, para sentir o efeito das palavras. O sindicato quase veio a baixo e continuou:
     "Nós somos o pivô da riqueza, mas também somos o para-raio, pois tudo arrebenta nas costas dos trabalhadores. Nós produzimos a riqueza, mas o lucro fica com os patrões. Um trabalhador só come carne quando morde a língua. O poder é como uma árvore, quando nós sacudimos o tronco, a copa balança. Vamos sacudir as bases que sustentam a exploração, para derrubar o topo da pirâmide e distribuir a riqueza concentrada. No momento estamos conquistando a liberdade de organização e de expressão, ainda não conquistamos a justiça. Ainda temos um longo caminho pela frente. Só alcançaremos a verdadeira vitória, que é a igualdade social, se acreditarmos em nossa força e em nossa união. Precisamos nos organizar diante da nova conjuntura que estamos construindo. Nós sacudimos a árvore da ditadura e seus galhos estão caindo, mas não se iludam, outras árvores virão, com novos métodos, para manter a mentira e a exploração. Demos um passo importante. Estamos vencendo uma batalha, mas a guerra pela liberdade e por justiça continua. Estou feliz. Vamos compartilhar este momento, contem comigo, sempre."
     Aos gritos de "trabalhador unido, jamais será vencido", os peões carregaram "O Velho" pelas dependências do Sindicato dos Metalúrgicos.



J Estanislau Filho

Está crônica integra o meu livro de bolso Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do autor - 2006.

Seu Joaquim foi um militante sindical nas décadas de 60, 70 e 80. Operário, pobre e negro, incorruptível. Militou no Sindicado dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem e nos movimentos populares, como associações de bairro. 

6 comentários:

  1. Esta é uma das muitas histórias que a Mídia deveria estar divulgando sucessivamente.
    Parabéns Zé, por relatar em sua crônica, sensibilidade, verdades e acima de tudo história.
    É sempre prazeroso te ler.

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    1. Obrigado pelo generoso comentário, Leia. Abraço.

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    2. Deveria erguer uma estátua ao Sr Joaquim de Oliveira em Contagem. Sô Lalá.

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    3. É verdade, Zé. Abraço no mano Lalá e feliz dia dos pais.

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  2. GOSTEI MUITO DESTA CRÔNICA REFLEXIVA, O QUE REPRESENTA O TRABALHADOR PARA UM PAÍS...É MESMO UM PARA-RAIO...APLAUSOS MIL

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    1. Obrigado pela leitura atenta e pelo comentário, Norma. Abraço.

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