quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Filhos da Terra Capítulos: 7 - O Tempo Passa Rápido - 8 - Meu Guri


                                                                     Imagem: jef




Rapidinho: 

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor. 
Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição. 
Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.


7 - O Tempo Passa Rápido

O sonho de Elói de sair da camisa-de-foça da mídia empresarial se desmoronou. Acabou por assimilar essa realidade e seguir em frente, tentando driblar as armadilhas ideológicas dominantes, no esforço de manter-se coerente. Felizmente sedimentara uma relação de confiança com as lideranças dos movimentos sociais, importantes fontes de suas reportagens, embora elas continuassem passando pelo crivo do chefe de redação. Acreditava estar cumprindo um importante papel na divulgação correta dos fatos produzidos pelos dois mundos antagônicos da sociedade, o de poucos que muito possuem e os de muitos que pouco ou nada possuem. Sentia-se feliz com o trabalho desenvolvido na comunidade. O jornal da associação era uma ferramenta importante na organização das lutas pelas melhorias do bairro e na integração dos moradores; a sua contribuição fora decisiva. Agora raramente pediam-lhe ajuda, pois caminhavam com as próprias pernas. A amizade com os vizinhos solidificara-se, gostavam dele sinceramente e conversavam de igual para igual. Alguns não conseguiam romper com o servilismo, outros continuavam desconfiados, mas no geral, era bom. "Paciência revolucionária, ensinou Lênin", dizia para si. Quase dois anos se passaram e não tinha planos de sair do bairro operário. Muita coisa mudara: umas para melhor, outras para pior. Embora menos assíduo, continuava frequentando a casa de Dona Sônia. Zenaide estava a cada dia mais linda, desfilara no Minas Mostra Mulher; Edileuza abandonara a igreja e frequentava o forró da associação, quase sempre acompanhada de Tenório. Estava mais bonita, pois se livrara da rigidez da doutrina religiosa. Tão ou mais bela que, a irmã, mulher no melhor sentido da palavra. Tinha por volta de vinte e cinco anos de idade, continuava responsável e sedutora. Marcelo não tinha jeito: a cachaça o estava destruindo. Dona Sônia continuava a mãezona de sempre, vigilante, uma matriarca liberal. A nota triste era Wallace. Transformara-se em menor infrator e com fortes indícios de que fora cooptado por narcotraficantes. Tinha dúvidas quanto ao futuro de Zenaide. Primeiro por causa da realidade social; segundo por não levar a sério os estudos, vivendo no mundo da lua, sonhando com a fama e se dedicando pouco de realizá-lo. Ultimamente andava enrabichada com alguns homens bem mais velhos. Iria completar quinze anos e ele queria ir à festa de aniversário. "Meu Deus", pensava Elói, "não sou nenhum salvador da pátria, mas como quero tanto que esta menina não sucumba, quero ajudá-la e não sei como. Vou conversar mais com ela, intimá-la a dar um rumo. Não pode se perder...". 
     Pousou o copo de uísque sobre a mesa ao ouvir a batida na porta. Reconheceu o toque de Zenaide e correu para abrir. Assustou-se ao vê-la em prantos: - Oi, o que aconteceu? Pegou água com açúcar e ela bebeu, com as lágrimas caindo dentro do copo. Após conduzi-la até a sala, deitou-a na poltrona, com a cabeça em seu colo. Acariciou seus cabelos com ternura e cantou uma canção até ela adormecer.
     Olhando-a em seu sono inocente, o jornalista começou a pensar sobre a juventude atual e a comparar com a sua geração. Aos treze anos participava ativamente da luta pela redemocratização do país, pelo socialismo e continuava engajado por transformações sociais. Entretanto, apesar de continuar acreditando que o melhor modelo de organização social ainda fosse o socialismo, via-o como algo distante. Estudou com afinco a ascensão do neoliberalismo no mundo, desde Margareth Teacher e Ronald Reagan na década de setenta do século 20 até a sua introdução tardia na América Latina. Acompanhou, confuso, a queda do socialismo no leste europeu e do muro de Berlim; não se julgava herói da resistência, mas contribuíra para pôr abaixo a ditadura militar brasileira, quando ela dava sinais de esgotamento, durante o governo do ditador Ernesto Geisel e ouviu João Batista de Figueiredo dizer que daria um tiro no coco se ganhasse um salário mínimo; sentiu na pele como é duro viver sob as botas do autoritarismo, sem liberdade de expressão e organização; chorou a morte de Henfil e foi testemunha ocular da proliferação da AIDS; lembrou-se das manifestações estudantis e operárias, com as ruas e praças tomadas pelo povo, exigindo diretas-já. Fora protagonista de alguns momentos históricos. Participou ativamente  da primeira eleição presidencial, depois dos longos anos de ditadura; carregou faixas, fez passeatas, organizou comitês eleitorais, colocou adesivos e botons do seu candidato em todo o corpo, transformando-se em um outdoor móvel; viu o seu candidato ser batido por um jovem oriundo da elite; assistiu ao seu impeachment e a eleição e reeleição de um ex-professor, intelectual sofista; acompanhou, pela imprensa, com indignação, jovens da classe média de Brasília incendiar o índio Gaudino. Na esfera internacional, aplaudiu a eleição de candidatos de esquerda na América Latina; a resistência do povo cubano; viu pela tv a guerra imperialista estadunidense no Golfo Pérsico; a humilhação imposta pelos sionistas de Israel ao líder palestino Yasser Arafat; o eterno conflito entre judeus e palestinos; o desmoronamento das torres gêmeas em onze de setembro; a invasão do Afeganistão e do Iraque; os ataques na Faixa de Gaza; o aumento da poluição e do aquecimento global; das desigualdades sociais; do terrorismo  e do narcotráfico. 
     Observando a garota mais linda do bairro dormindo na poltrona, perguntava sobre os sonhos da juventude atual. Concluiu que a ditadura militar fora substituída pela ditadura econômica; a censura governamental da ditadura sobre os veículos de comunicação dera lugar à censura patronal e a autocensura; uma parcela de bons e aguerridos companheiros de lutas por transformações sociais ocupavam cargos no primeiro escalão do novo governo. O metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva, após três derrotas, finalmente chegara à Presidência. Participara dessa eleição, sem o entusiasmo das anteriores. Depois da publicação da Carta aos Brasileiros, tinha dúvidas sobre os rumos do governo que ajudara a se eleger e de como a população, especialmente a jovem se comportaria diante da nova conjuntura. De qualquer maneira, um operário no governo federal e a elite em polvorosa significava um avanço. Pensava no futuro daquela garota pobre e bonita, dormindo um sono profundo no sofá. O novo governo conseguiria promover as mudanças necessárias, para transformar esta realidade cruel, que exclui milhões de cidadãos a uma vida digna? Nessas horas a figura patética de Lech Valessa, esperança dos trabalhadores poloneses surgia, como um fantasma em seu imaginário.
     Suas reflexões foram interrompidas quando Zenaide acordou. Olhou para ela com carinho e perguntou: - Quer fazer um lanche? Como uma criança que para de chorar e se distrai com um brinquedo, ela acenou que sim, com um sorriso devastador. 
     - Pois então, vamos preparar um sanduíche da hora e depois quero que me conte as novidades, porque estava chorando...

                                                                                             Imagem: Google


8 - Meu Guri

A notícia caiu como uma bomba na vizinhança: Wallace, de apenas treze anos tornara-se um assassino. Muitos desconfiavam e até mesmo sabiam de sua atividade, agora confirmada. As pessoas se perguntavam como isso aconteceu e não encontravam uma resposta. É verdade que ele era uma criança de pouca conversa, mas não muito diferente das outras. Gostava de jogar "peladas" na rua; brincar com carrinho de rolimã e jogar fincas em períodos chuvosos; comer cachorro-quente no carrinho de Dona Geralda e até frequentava as aulas regularmente. A rua ficou fervilhada de policiais armados até os dentes. Todos foram pegos de surpresa. Dona Sônia gritava, dizendo que seu filho era trabalhador e estudante dedicado, Marcelo dizia coisas desconexas; Edileuza estava no trabalho e Zenaide evaporou-se.
     Na redação do jornal os repórteres policiais saíram às pressas, para cobrir a ação da polícia. Elói estava nas realizando uma reportagem sobre a ocupação, por sem-tetos ligados à Central de Movimentos Populares, de uma área de terreno irregular e só viria a tomar conhecimento do ocorrido à noite, por meio de Zenaide. Além dos policiais, uma multidão de repórteres e de curiosos se aglomeraram na rua, para assistir ao espetáculo. Dona Sônia, entre anestesiada e incrédula com o que via, não para de repetir que Wallace era um bom menino, seu filhinho querido, responsável. "Justo agora que ele estava feliz com a televisão de vinte e nove polegadas e com o DVD", lamentava-se. Algumas amigas chegaram para consolá-la e ela não parava com o refrão sobre as qualidades de seu guri. Mas a polícia não conseguiu prendê-lo e ninguém sabia informar o seu paradeiro; assim como chegaram, policiais e repórteres deixaram o local. Dona Sônia fora intimada a comparecer na delegacia a fim de prestar esclarecimentos. 
     O município de Contagem ocupa um lugar de destaque em matéria de violência entre os municípios que integram a região da capital mineira. Mas foi em Betim, município vizinho de Contagem, que o traficante Fernando Beira Mar se estabelecera por um tempo, para expandir seus negócios. Não se tem um estudo da influência de Beira Mar no aumento da violência na região, mas a distribuição e o consumo de drogas aumentaram muito depois de sua estadia. Nas escolas, professores e alunos estão sempre assustados; nos bairros, vilas e favelas acontecem o mesmo. A violência urbana é o assunto discutido em algaravias por todos os cantos. Cada um tem a sua tese. Seu Adão, policial aposentado é categórico: "Beira Mar plantou aqui as sementes da droga, aliciando e municiando um exército de delinquentes juvenis, que hoje espalha o terror". Para Maria Lituana, vizinha de Dona Sônia é "a falta de temor a Deus, que leva à violência", enquanto seus Osvaldo culpa os políticos, que "só sabem roubar e enganar o povo, é preciso acabar com os políticos
, todo mundo deveria anular o voto", concluía com os olhos esbugalhados. A mística Tereza Singela anunciava que "em 2012 o mundo irá passar por uma mudança de paradigma com a chegada do Messias, que virá para salvar o mundo da catástrofe". O jovem carismático Izak, seguidor do Padre Marcelo, concordava com Maria, enquanto a evangélica pentecostal Neuza de Paula afirmava que "só quem aceitar Jesus e passar pelas águas, estará protegido das tentações do corpo e da alma". Geraldo Bernardes, comunista de carteirinha, dizia que "a causa da violência é o modelo capitalista, egoísta e concentrador de riquezas, que leva o povo à fome, sem alternavas de sobrevivência, conduzindo-o à criminalidade e à alienação, ao invés da participação política consciente, para promover as mudanças necessárias", argumento prontamente rebatido por Amâncio, proprietário da Padaria Pão Nosso, assaltado diversas vezes, com a tese de que "não é nada disso, o que acontece é que estes malandros não querem trabalhar, a solução é diminuir a maioridade penal e estabelecer a pena de morte, aí vocês vão ver a violência acabar, porque pra mim é olho por olho, dente por dente, lugar de malandro é debaixo da terra, de preferência em pé, para não ocupar espaço, porque não dá pra ficar bancando vagabundo em cadeia, quem paga as contas são as pessoas de bem, assunto encerrado". "Encerrado pra você - vociferou o grafiteiro Maisena, que detestava os arroubos autoritários de Amâncio -, concordo em parte com o Geraldo, na parte em que ele falou da concentração de riquezas nas mãos de poucos. Quanto a participação política não acredito nisso não. Primeiro que são meia-dúzia de gatos pingados, segundo porque esta meia dúzia passa a maior parte do tempo em reuniões  chatas, corporativas e intermináveis, dão muitas idéias aos mandam-chuva. É preciso detonar os caras, botar pra foder, seja com ações coletivas ou individuais, derrubar a ordem estabelecida na bazuca, amedrontar os figurões, dizer que seus dias de fartura vão acabar". Geraldo Bernardes balançava a cabeça negativamente, afirmando que "isso é anarquia. Assim continuava a algaravia, algumas vezes encerrada aos tapas ou em cerveja no boteco do Nestor. 

Leiam no próximo capítulo: 



9 - As Revelações de Zenaide


Breve autobiografia

Sou J Estanislau Filho, mineiro de São João do Oriente-MG, autor de nove livros de crônicas, contos, novelas e poesias. Um escritor marginal, auto-didata e leitor compulsivo. Assim que aprendi a ler, minhas primeiras leituras foram: foto-novelas, quadrinhos e livros faroestes. Por meio dos clubes de leituras tive contato com a poesia de Castro Alves, Cecília Meireles, Fagundes Varela, Raimundo Correa, Olavo Bilac, entre outros, na Escola Municipal Cel. Antonio Lopes em Jampruca-MG. Estão vivas em minha memória as professoras Dejanira, Dona Bertinha e Iracema. Aos 13 anos de idade, li Guerra e Paz de Tolstoi, em seguida quase toda obra de Shakespeare, José Alencar, Machado Assis e iniciei estudos filosóficos, com a leitura de alguns pré-socráticos. Em seguida li O Ateneu de Raul Pompéia; O Bom Crioulo de Adolfo Caminha; livros de psicologia, resenhas literárias. Em Engenheiro Caldas, em 1968 completei o ensino fundamental, para, em seguida, em regime de internato completar o antigo ginasial, no Ginásio Agrícola de Colatina-ES. Com a chegada do homem à lua, minha redação sobre o tema, foi elogiada e lida pelo meu professor de Língua Portuguesa. Neste período rabiscara meus primeiros versos em um diário. Terminado o curso ginasial, impossibilitado de seguir os estudos, mudei-me para a capital mineira, em busca de trabalho. Continuava lendo de tudo: de literatura a filosofia, passando por psicologia. Ernest Hemingway, Jean-Paul Sartre, R. D. Line, Mayacovisky, Bertold Brecht, Lygia Fagundes Telles, Karl Marx, Dostoiévisky, Kafka, José J Veiga, Murilo Rubião, Virginia Wolf, Verlaine, Fernando Arrabal, Jean Genet; Willian Faulkner; Gabriel Garcia Marquez; Dalton Trevisan, Fausto Wolf, João Antonio... Por meio dos cine-clubes, em especial o Cine Clube da Face, conheci e lia O Pasquim, Opinião, Movimento, enfim a chamada imprensa alternativa ou, nanica. Até que, em 1984, lancei meu primeiro livro de poemas, semi-artesanal, Nas Águas do Arrudas em que se percebe o choque cultural, entre o urbano e rural. Também em 1984, participei da antologia: Poetas Gerais das Minas, com prefácio de Dom Pedro Casaldáliga e um estudo de Frei Beto sobre os quatro séculos da poesia mineira. Em 1987 e 1991 lancei: Três Estações e O Comedor de Livros. Em 2006 publiquei - Edição do Autor - meu primeiro livro de crônicas: Crônicas do Cotidiano Popular. Em 2009 um duplo lançamento: Filhos da Terra (contos, crônicas, uma novela, alguns textos com fecho poético) e Todos os Dias são Úteis - poesias. Em 2011 sai o Palavras de Amor (Biblioteca 24 horas); em 2012 Crônica do Amor Virtual e Outros Encontros (Editora Protexto). Em novembro de 2015 lançei A Moça do Violoncelo-Estrelas, dois livros em um. No prelo o romance A Construção da Estrada de Ferro, iniciado em 1979 e concluído em 2014; As Aventuras de Raul (Infanto-Juvenil); Outras Espécies (contos). Não tenho uma escola literária, no sentido acadêmico. Aprendi, com Górky, na universidade da vida. Peguei gosto pela crônica, lendo Rubem Braga.


                                   Na trilha da Cava Amarela - Cel. Xavier Chaves - MG
                                                                      Imagem: ma


5 comentários:


  1. A lentidão do tempo é uma tortura para os que esperam, e de uma rapidez exagerada para os que tem medo, longo para os lamentadores, um tanto curto para os que festejam. Mas para os que sabem o verdadeiro sentido de saber amar, o tempo será eterno. Por isso não vou mais me perder nas dúvidas, pois ela já me fez perder muito pelo simples medo do risco... E hoje já no limiar de minha vida não tenho mais tempo para temer nada, muito menos o desconhecido. Está imperdível, aguardo as próximas cenas, Estanilau, meus parabéns, abraço da Luiza.

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  2. Oi amigo, que maravilha,fico.presa a leitura desde a primeira linha. Você é excelente escritor,cheio de detalhes preciosos Parabéns. .bjs

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  3. A cada capítulo mais envolvida na leitura, amando teu jeito de narrar os fatos.

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