quinta-feira, 30 de maio de 2024

Esquerda que não é esquerda





Por Rudá Ricci*


Recentemente, alguns intelectuais sugeriram a divisão da esquerda brasileira em dois blocos: a esquerda institucional e a esquerda social. Esta é a proposição de Carlos Vainer, da UFRJ.

A divisão teria ocorrido mais nitidamente neste século 21 e, possivelmente, tem relação com o advento do lulismo como fiel da estrutura e dinâmica de poder nesta primeira quadra do século.

A esquerda social seria aquela vinculada e orientada por movimentos sociais, sindicatos e organismos ou fóruns da sociedade civil. Seus membros podem estar filiados a um partido, mas privilegiam pautas e planos de ação de suas organizações sociais.

Por sua vez, seu foco é a luta social, a ampliação dos direitos coletivos e o aumento do poder político da sua base social.

A disputa política que travam é mais aguda porque enfrentam diretamente a ordem social, embora raramente se posicionem como organizações revolucionárias.

Já a esquerda institucional é aquela que privilegia o campo institucional e sua pauta gravita ao redor de conquistas eleitorais.

Assim, se a esquerda social se orienta por práticas de confronto e conquista de direitos, a esquerda institucional se pauta pelo calendário eleitoral e acordos para manutenção dos seus mandatos.

Na esquerda social, as alianças são mais estratégicas, podendo ocorrer alguma aliança tática como, por exemplo, acordos com parlamentares para emplacarem um projeto de lei.

Já na esquerda institucional, as alianças são sempre muito amplas, muitas vezes descaracterizando até mesmo a identidade de esquerda justamente porque procuram criar bases para a governabilidade de seus mandatos, evitando ao máximo solavancos e surpresas.

Ocorre que, nos últimos anos, a esquerda institucional se encontra mais e mais nas cordas. O que a obriga a ceder mais.

O cenário mais desfavorável ocorre porque agora a maior oposição à suas pretensões não vêm de uma direita dócil, mas de uma extrema-direita mobilizadora e popular.

As ruas, portanto, passaram a ser campo de disputa, assim como corações e mentes da base popular.

Há, portanto, uma esquerda que vai se desgarrando de sua identidade original e se tornando cada vez mais moldada pelas amplas alianças e acordos que minam as agendas e pautas originais.

Esta discussão não é nova no campo da esquerda.

Lênin, em seu artigo “Mais vale pouco e bom”, de 2 de março de 1923 (ele faleceu em janeiro de 1924) já citava os erros na estruturação do aparelho de Estado.

Sem dar nome aos bois, sugere que “no que se refere ao problema do aparelho estatal, devemos concluir da experiência anterior que seria melhor ir mais devagar” e conclui “é preciso, enfim, que tudo isso mude”.

Talvez, o texto mais cirúrgico de crítica às mudanças de projeto e conceito que a máquina soviética gerou é o livro de Charles Bettelheim, “A Luta de Classes na URSS”.

Enfim, há farta literatura de esquerda a respeito desses atalhos da esquerda institucionalizada que vai se afastando da sua origem até se perder num mar revolto.

E é aqui que gostaria de lançar uma reflexão: esta esquerda institucionalizada continua esquerda? A pergunta não é meramente retórica.

A questão é se o centro de decisão desse segmento não seria nem mesmo o partido, mas a própria lógica da burocracia estatal e a base de amplos acordos.

Se esta hipótese tem sentido, estaríamos presenciando a formação de um segmento social ou político autóctone, autorreferente, que não se vincula mais à base social nenhuma, nem fora, nem à base partidária.

Ora, tal orientação ensimesmada criaria uma série de laços de lealdade de caráter grupal que se esforçaria para interditar divergências ou debate público de projetos e teses.

Não sei se o leitor desta provocação percebeu, mas minha sugestão é que tal esquerda institucional estaria criando uma elite autolegitimada pela conquista eleitoral, como provedora de uma sabedoria política.

Na tradição da literatura de esquerda, teria certo paralelo com o conceito de “aristocracia operária”, aquele segmento de operários altamente qualificados que recebem salários acima da média geral da classe trabalhador e que gerava uma identidade política e social muito peculiar, menos afeta à transformação política e social.

O termo foi criado por Engels em um artigo publicado nas revistas Commonweal, da Inglaterra, e Die Neue Zeit, da Alemanha, no ano de 1885 e, décadas depois, Lênin o retomou para analisar a consequência política que seria a separação deste segmento das grandes massas do proletariado.

Minha impressão é que estamos vivenciando no país a cristalização deste segmento social e político próprio que é a esquerda institucional que vai se distanciando tanto da sua origem que nem mesmo se sabe se ainda é esquerda.



*Rudá Ricci é sociólogo, trabalha com educação e gestão participativa. Preside o Instituto Cultiva, em BH.

Fonte: https://www.viomundo.com.br/politica/ruda-ricci-a-esquerda-que-nao-e-esquerda.html

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