domingo, 26 de maio de 2024

O Camaleão (conto de Antôn Tchecov)

 

Imagem: Google



O inspetor de polícia Ochumelov (*), vestido em seu capote novo, andava pelo mercado carregando um pacote nas mãos.

Na mesma direção do inspetor, caminhava pelo mercado um policial ruivo, carregando uma bacia cheia até a borda com frutas silvestres confiscadas.

O mercado estava todo em silêncio… Parecia não haver ali viva alma… Com suas portas abertas, pequenas lojinhas e tavernas quedavam pateticamente vazias, tal qual bocas abertas e famintas. Lá não estavam sequer os usuais pedintes, rotineiramente postados à entrada das lojas.

Subitamente o som de uma voz chegou aos ouvidos de Ochumelov...

- Quer dizer que você ia morder, não ia, seu vira-latas ordinário! - Não deixe ele ir embora homem! - Morder não é permitido atualmente. – Segure-o!

Um ganido se fez ouvir.

Ochumelov lançou o olhar na direção do som e isso foi o que ele viu: um cão correndo, pisando apenas em três patas, perseguido por um homem vestido com uma camisa estampada engomada e um colete desabotoado. O homem e o cão estavam saindo da marcenaria de Pichugin. O homem corria pendido para frente, até que conseguiu agarrar o cão por uma das patas traseiras.

Um outro ganido foi ouvido, seguido de mais um grito.

- Não deixem ele fugir!

Caras sonolentas apareceram de dentro das lojas e, subitamente, uma pequena multidão, como se saída de dentro da terra, estava aglomerada na porta da marcenaria.

- Parece uma situação de comoção pública, excelência! – Assim falou o policial ruivo ao inspetor Ochumelov.

Ochumelov virou-se no sentido contrário ao que estava caminhando, dirigindo-se ao local da aglomeração. Exatamente na porta da loja ele viu o indivíduo vestido com o colete desabotoado, mão direita levantada, sangrando, enquanto mostrava o dedo ferido aos circunstantes.

- Você vai levar seu demônio!

Tais palavras pareciam escritas em seu semblante, no limite do descontrole, enquanto mostrava o dedo como se fosse uma bandeira de vitória.

O inspetor Ochumelov verificou que o indivíduo era Khryukin (**), o ferreiro.

No meio da pequena multidão, apoiado nas patas dianteiras e sentado nas posteriores, o acusado, corpo inteiro tremendo, filhote branco da raça “borzoi”, com um focinho pontudo e uma mancha amarela nas costas. Os olhos lacrimejantes mostravam uma expressão de sofrimento e horror.

-O que isso tudo quer dizer?

O inspetor Ochumelov fez a indagação, ao mesmo tempo que empurrava com os ombros as pessoas da multidão, abrindo caminho até o centro da aglomeração.

- O que você está fazendo? - Qual a razão desse seu dedo para cima? - - Quem gritou?

- Eu estava caminhando, excelência, quieto como um cordeiro.

Assim começou a responder Khryukin, enquanto tossia com a mão na boca.

- Tinha que falar sobre uma madeira, aqui com Mitri Mitrich e, subitamente, sem nenhuma razão aparente, aquela coisa mordeu meu dedo.

- Por favor, eu sou um trabalhador… - Meu ofício é muito elaborado. - Faça com que eles paguem uma compensação. - Talvez eu não consiga sequer mexer esse dedo por mais de uma semana. - Não está escrito em lei nenhuma, excelência, que nós tenhamos que aturar animais ferozes. - Se todos os animais do mundo começarem a morder assim, a vida não vai mais valer a pena ser vivida…”

- Hum… bem, bem, respondeu Ochumelov, com um ar de autoridade, pigarreando e franzindo as sobrancelhas. - Bem, bem… quem é o dono do cão? - Eu não vou deixar isso ficar assim. - Vou ensinar a essa gente o que acontece se deixarem seus cães soltos! - Já está na hora de fazer alguma coisa contra esses cavalheiros que não estão dispostos a obedecer aos regulamentos! - Ele vai levar uma multa tamanha, esse indisciplinado... - E vou ensiná-lo acerca do que acontece quando cães e gado, de modo geral, são deixados à solta! - Vou ensiná-lo como é!

- Eldirin, prosseguiu Ochumelov, virando-se para o policial, descubra quem é o dono do cão e redija uma ocorrência. - E o cão deve ser exterminado sem demora. Ele provavelmente deve estar louco… - Afinal, de quem é esse animal, eu pergunto?”

- Eu acho que ele pertence ao General Zhigalov, disse uma voz de dentro da multidão.
- General Zhigalov! Hum. - Eldirin, me ajude a tirar esse meu casaco… Ah, como está quente! Vai chover com certeza...

O inspetor voltou-se para Khryukin.

- Uma coisa que eu não entendi ainda foi como ele mordeu você? - Como ele conseguiu chegar até o seu dedo? - Um cão tão pequeno e você um sujeito tão grande e robusto! - Você deve ter é arranhado esse seu dedo com um prego e imaginado um jeito de fazer dinheiro com isso. - Eu conheço bem vocês, um bando de demônios!

- Ele queimou a ponta do focinho do cachorro com um cigarro aceso excelência, só para fazer graça, e aí o animal mordeu o dedo dele, ninguém aqui é bobo!

Esse Khryukin está sempre criando problemas, excelência!

- Nenhuma dessas suas mentiras ocorreu, seu cego! - Você não viu nada disso acontecendo, qual a razão de você estar mentindo? - Sua excelência é um cavalheiro inteligente e sabe quem está mentindo e quem está dizendo a verdade. - Que o juiz de paz me julgue se eu estiver mentindo! - É isso que diz a lei… Todos os homens agora são iguais. Eu mesmo tenho um irmão na polícia, se você quiser saber…

- Não discuta! - Não, esse não é o cão do general, observou o policial com voz grave. - O general não tem um cão assim, todos os cães dele são “pointers”.

- Você tem certeza disso?

- Absolutamente honorável Inspetor.

- E você está certo! - Os cães do general são animais caros, de raça pura, e esse aqui, olhe só para ele... Feio, magro e vira-latas! - Por que razão alguém ficaria com um cão desses? - Você está louco? - Se um cão como esse estivesse em Moscou ou São Petersburgo, sabe o que aconteceria com ele? - Ninguém se preocuparia com a lei e se desfaria dele em um minuto. - Você é uma vítima Khryukin, e não deve deixar as coisas ficarem por isso mesmo. - Ele precisa levar uma lição! A hora é essa…

- Talvez, com tudo isso, ele seja mesmo do General, disse o policial pensando alto.

- Não se pode ter certeza apenas olhando o cão, vi um desse tipo no jardim dele um dia desses.

- É claro que pertence ao general, disse uma voz vinda da multidão.

- Hum! - Eldirin, me ajude com meu casaco… Estou sentindo uma lufada de vento. Estou arrepiado. - Leve esse cão até o pessoal do general e pergunte a eles lá. Diga que eu encontrei o animal e mandei que você o levasse. E diga também a eles que não deixem que esse animal volte para a rua. Talvez seja um cão caro e possa se estragar, caso todos os brutos acharem de queimá-lo com um cigarro no focinho. Um cão é uma criatura delicada. - E você, abaixe essa mão seu idiota! - Pare de mostrar a todo mundo esse seu dedo. - Foi por sua própria culpa que isso aconteceu…

- Ali está vindo o cozinheiro do general, vamos perguntar a ele… - Ei, você aí, Prokhor! - Venha até aqui, meu velho! De uma olhada nesse cão e veja se ele é de vocês...

- Qual é a próxima lorota?! - Nós nunca tivemos um cão como esse em toda nossa vida!
- Não precisa investigar mais nada, disse o inspetor Ochumelov. - Ele é um cão vadio. - Para que ficar aqui falando sobre isso. - Você foi avisado de que é um cão vadio, então um cão vadio ele é. - Destrua esse animal e terminemos com o assunto.

- Ele não é nosso, prosseguiu Prokhor, mas ele pertence ao irmão do general que chegou aqui faz pouco tempo. - Nosso General não tem nenhum interesse em borzois. - Tal já não acontece com o irmão dele, que gosta muito dessa raça…

- O que? - o irmão do general veio para cá? - Vladimir Ivanich? Assim exclamou Ochumelov, com um sorriso de êxtase espalhado pelo rosto. - Extraordinário! - E eu que não sabia! - Chegou para ficar?!

-É, chegou para ficar.

- Extraordinário! - Eu queria mesmo ver o irmão do general! - E olhe que eu nem sabia disso. - Então o cachorro é dele? - Fico feliz! - Pegue-o… - É um ótimo cachorrinho!

- Avance no dedo dele cachorrinho... Ha-ha-ha! - Venha agora, não trema! Gr-gr… - O danadinho está com raiva… - Que filhotinho!

Prokhor chamou o cão e foi embora da marcenaria com ele. A pequena multidão começou a rir de Khryukin.

- Eu ainda te pego, ameaçou Ochumelov a Khryukin e, ajeitando o casaco, continuou seu caminho pelo mercado...



(Traduzido e adaptado por George Felipe de Lima Dantas -- 1999)



(*) da palavra russa ochumely, enlouquecido

(**) da expressão russa khryu-khryu, grunhido de porco


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