segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Cabeleireiro e o Filósofo




Manuel Cante dirigiu-se ao seu cabeleireiro como fazia há vinte e um anos, três meses e oito dias, para cortar o cabelo do mesmo corte que fazia mensalmente na primeira sexta-feira. Tinha enorme apreço pelo cabeleireiro e por ser cliente em todos esses anos estabeleceram uma confiança mútua. Porém, algumas vezes o corte não saía exatamente como o cliente filósofo exigia. Talvez a mão do profissional, por alguma razão subjetiva, nesse dia estivesse trêmula ou o seu fiel cliente ficasse inquieto, em devaneios filosóficos, prejudicando o corte. José da Silva era um cabeleireiro respeitado em sua comunidade, não só por causa do profissionalismo, mas também pelo seu caráter. Vivia honestamente de sua profissão, porém de parcos rendimentos. Desabafava com alguns clientes de não poder planejar sua vida em função de ter uma renda volátil, com muita oscilação. De repente os clientes desapareciam; outra hora a moda de cabelo masculino longo e desgrenhado roubava-lhe muitos clientes habituais, especialmente os jovens, como se vivêssemos em tempos de hippies; ou então a economia do País entrava em recessão e a demanda por cortes de cabelos diminuía, deixando de ser prioridade. Mas dá para sobreviver com dignidade, afinal exerço a profissão, herança de meu pai, fazia questão de dizer, nos últimos vinte e seis anos. Dividíamos o salão, mas a sua morte repentina, um avc fulminante o levou prematuramente, mas como dizia, devido aos longos anos de profissão, tenho muitos clientes assíduos, como o Senhor Manuel Cante, concluía o cabeleireiro olhando o cliente pelo espelho, em sinal de gratidão. Num átimo o filósofo respondia, não me chame de Senhor, porque não sou dono de engenho. Silva sorria, enquanto aparava os cabelos da orelha do filósofo, que sempre fazia o mesmo comentário, depois que os primeiros fios de cabelo surgiram na orelha: - quando envelhecemos nasce cabelo onde não devia, na orelha, nas narinas, as unhas começam a rachar e ficam duras, mas onde precisa endurecer não “há trovão azul” que dê jeito.
     Quando Manuel Cante reclamava de uma ponta de cabelo sobrando ou de um pé mal feito, José da Silva consertava pacientemente, mas responsabilizava o cliente por se mexer demais na cadeira, ou por tirar-lhe a atenção com sentenças filosóficas. Porém acabavam se entendendo. Mas nem tudo corre serenamente como se deseja e um certo dia o filósofo e o cabeleireiro discutiram em tom ríspido, afugentando alguns clientes, que aguardavam a vez de dar um trato nos cabelos. No início, esses assustados clientes tentaram acalmar os ânimos dos dois, mas foram repelidos duramente, com palavras assim: “não se metam onde não são chamados”, ou “vão ver se estamos lá na esquina” ou  ainda “vão cantar em outra freguesia”. Magoados, deixaram o salão com a promessa de nunca mais voltarem, para maior irritação do cabeleireiro, que vociferava contra o filósofo: - Você é um chute no saco, a sua arrogância me faz perder clientes, filósofo de meia-tigela. “Meia-tigela é a puta que te pariu...”. Foi um bafafá. O motivo da discórdia poderia ser chamado de fútil, não fosse o valor que ambos davam ao conceito de egoísmo do ser humano.
     O cabeleireiro defendia a tese de que o egoísmo aumentou nos últimos anos por causa de políticas ultrapassadas importadas da Europa, especialmente do Reino Unido e Estados Unidos, implantadas pelos governos neoliberais, provocando uma mudança de comportamento. Lembrou-se  de um tempo em que as pessoas se ajudavam reciprocamente, praticavam-se a solidariedade e agora todos só pensavam em si. Lembrou-se com certa nostalgia de um tempo de mutirões, quando uma pessoa iniciava a construção de uma casa, um barraco e dezenas de amigos se ofereciam para ajudar e rapidamente a casa ou o barraco ficava pronta para ser habitada. Então uma festa era realizada e um galo era o cardápio principal e todos comemoravam, felizes, a conquista da casa própria, pelo colega.
     Cante deu uma sonora gargalhada irônica, obrigando o cabeleireiro a suspender o corte, com tesoura e pente paralisados no ar. Ao término da gargalhada o fiel cliente rotulou José da Silva de “um ingênuo reducionista”. O cabeleireiro até aceitou o rótulo de ingênuo, mas ficou irritado com o outro adjetivo, embora não soubesse o significado, julgou não ser elogio. Manuel Cante explicou, mas José da Silva não se conformou e emburrou. Todavia não fora este o motivo principal da contenda, O debate estava no começo e o centro era a concepção que ambos tinham sobre o egoísmo, como já foi dito anteriormente. Manuel Cante era um conceituado professor de filosofia de uma escola estadual. Sentia-se feliz de poder exercer a profissão aos alunos do ensino médio, pois o curso só era oferecido em universidades, que exigia pós-graduação, bacharelado, essas coisas de acadêmicos, que José da Silva ironizava, chamando de “acadimia”. O fato era que o filósofo, por razões econômicas, nunca pode pós-graduar-se, bacharelar-se. Quando o Ministério da Educação introduziu o curso no ensino médio, Cante comemorou. Até que enfim o governo compreendeu que uma Nação, para se desenvolver precisava da Filosofia, o conhecimento supremo, do ser, dizia com ar de empáfia. Segundo ele os caminhos da civilização brasileira eram promissores com a introdução da filosofia no currículo escolar.
     Sentiu-se ofendido com a tese defendida pelo cabeleireiro, acusando-o, inclusive de sectário, termo que José da Silva não conhecia e que se arvorava dono da verdade acerca do egoísmo. Como ousas falar feito uma maritaca de um tema complexo? Perguntou levantando-se da cadeira, com a barba cheia de espuma. Nesse instante os clientes começaram a abandonar o salão. 
     O filósofo continuou em tom professoral a desenvolver a sua teoria sem se preocupar com a ausência de público: - o egoísmo vem de ego que é o eu, a essência de qualquer pessoa! Nasce com ela, portanto não é necessariamente um mal e existe desde que o mundo é mundo. Jean De La Bruyère em seu livro Caracteres dizia “Tudo já foi dito (...), pois os homens existem e pensam há mais de sete mil anos”. A humanidade foi, é e será egoísta desde que o mundo é mundo. Por quê você acha que as guerras sempre existiram? Por causa das conquistas, por causa dos impérios. É o egoísmo, querem as riquezas para si.
Não concordo, contrapôs o cabeleireiro, como você explica as inumeráveis ações altruístas desinteressadas? Como você explica as revoluções, que visam repartir as riquezas entre os excluídos dos banquetes? E quantas pessoas fazem o bem ao próximo, ou como um gari encontra uma grana enorme no lixo e devolve ao dono, quando poderia ficar com ela? Ou como centenas de pessoas dedicam parte do seu tempo, para ajudar idosos em asilos, levar alimento ao corpo e ao espírito dos que vivem sob pontes, sem eira nem beira. Ah, você vai me dizer que é por egoísmo, quando poderiam ficar confortavelmente em suas casas? Disso eu não arredo pé, pois a realidade está aí. A mídia só divulga tragédias, quando poderia divulgar dezenas, milhares de ações altruístas. Concordo em que a maioria pensa somente em si e que os altruístas estão em desvantagem em relação aos egoístas. Antigamente as pessoas se ajudavam mutuamente, havia solidariedade. Hoje nem oferecendo um churrasco de graça consegue-se reunir um grupo, para uma conversa agradável, ouvir uma música. Quando tem é para auferir resultados financeiros. No caso do churrasco de graça há uma contradição, pois pensando egoisticamente quem não quer uma boca-livre? Sabe porquê? Porque pensam de maneira egoísta, imaginando não existir alguém que faça algo desinteressadamente, apenas para confraternizar, estreitar as amizades. Mas é óbvio, contrapôs o mestre, desde quando alguém faz algo sem interesse? A humanidade evolui por causa de interesses. Edison inventou a lâmpada e patenteou; todos os inventos foram patenteados, alguns inclusive roubados dos autores originais, para serem patenteados em seus nomes. Interesses, meu amigo ingênuo Zé. É natural e até positivo. O altruísmo é um sofisma, ou para enganar incautos ou quem o pratica está pensando em alguma forma de retorno, quem sabe ganhar o Éden, completou Cante com firmeza. Não, não e não! Respondeu o cabeleireiro depositando pente e tesoura sobre a bancada. Meu caro filósofo, continuou, uma vez por mês eu dedico um dia de trabalho para cortar o cabelo dos menos favorecidos e não faço isso para ganha o céu, pois sou ateu convicto. Sou apenas coerente com o meu princípio de solidariedade. E digo mais, pouco me importa o modelo econômico, pois para mim tanto faz capitalismo, socialismo, monarquia e comunismo, sempre praticarei a solidariedade, minha ideologia é desinteressada e acho melhor encerrar o debate, pois não nos levará a lugar algum. Apenas quero deixar registrado que o atual modelo econômico fragmentou as relações, concentrou riquezas, produziu um exército de miseráveis consumidores de drogas, enlouquecidos. Errado é o sistema, a burguesia, esta sim, é egoísta até a raiz dos cabelos.
     O que é isso, meu caro, disse Cante abrindo um sorriso amarelo. A plebe ignara também é, resguardada as devidas proporções. Não seja tão sectário querendo por fim a um debate interessante acerca da natureza humana! Sócrates nos ensinou que é através do debate que chegaremos à verdade. Tese, antítese e síntese, aprimorada por Hegel e Marx formam o que a filosofia nomeou de dialética. Para não aborrecê-lo, paro por aqui. Mas quero concluir sobre o porvir: a humanidade avançará cada vez mais rápido rumo ao conhecimento, ouso dizer ao saber absoluto. Ciência e filosofia farão descobertas acerca da origem do Universo e esses picaretas que pregam o fim do mundo, seus templos serão utilizados para a ciência, ou serão peças de museu, de uma cultura remota. Todavia e contraditoriamente corremos o risco de este conhecimento, também, por um fim à vida. Afinal estamos condenados à morte, todos, inclusive a Terra, porque não? É a lógica: nascer, crescer, envelhecer e fenecer. Vale para tudo. Levarão alguns milhões de anos, eu e você não estaremos aqui para ver. Uma explosão! Pois então estamos de acordo em muitas coisas, respondeu o cabeleireiro, mas também quero concluir o meu pensamento: pode ser que tudo acabe um dia, pode ser, até mesmo ao som de cornetas e anjos celestiais, o que não acredito, pode ser... Mas enquanto isso não acontece vamos trabalhar pela solidariedade, sem nos aborrecermos. Mas antes, traga de volta os meus clientes, senão deixarei de cortar o seu cabelo. Toda sua dialética não vai poupá-lo de comer capim pela raiz, como eu, portanto, apesar das desigualdades sociais, que espero um dia ser vencida, somo iguais em uma coisa: somos alimento para os vermes.
     Só um detalhe, acrescentou o filósofo: milhares em cova rasa, algumas, dezenas em túmulos de ouro. Isso se a humanidade não seguir pela solidariedade e pela inclusão social – arrematou o cabeleireiro, voltando a cortar os cabelos das orelhas e narinas do filósofo, que teimavam em crescer. 




J Estanislau Filho - Autor de A Moça do Violoncelo-Estrelas; Filhos da Terra; Todos os Dias são Úteis; Crônicas do Cotidiano Popular, entre outros.

6 comentários:

  1. Que profundidade e que bela literatura. Parabéns. Muitas vezes parabéns. Tião irmão do Enes

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  2. Emmanuel Kant, o filósofo, também era metódico. Saia todas as tardes no mesmo horário, com seu guarda sol no braço e ia sempre aos mesmos lugares, olhando tudo como se fosse a primeira vez.
    Li essa sua crônica lembrando dessa vida metódica de Kant. Gostei, amigo. Muito interessante sua criação.

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  3. Sabe que deu inveja dos clientes do cabeleireiro José da Silva ? Adoraria ter participado desta calorosa discussão.
    Excelente a sua crônica! Parabéns!

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