quarta-feira, 22 de abril de 2020

Os Metalúrgicos

                                                            Imagem: Google


Em memória do líder sindical negro Joaquim José de Oliveira


“O Velho” – assim era chamado um antigo militante do Sindicato dos Metalúrgicos – estava segurando o microfone enquanto percorria a plenária com um olhar cinematográfico. Suas mãos tremiam e o coração batia descompassado. O Sindicato estava lotado e os aplausos soaram fortes como há muitos anos não acontecia. Um grito isolado ecoou no plenário:
     - Vai firme, companheiro!
     Antes de começar a falar com sua voz de trovão, os pensamentos povoaram a cabeça do Velho, cabeça de onde surgiam fios brancos de cabelo. Milhares de lembranças, em questão de segundos, como relâmpagos, tomaram conta de seus pensamentos. Lembrou dos anos ferozes de repressão; sindicatos sob intervenção; dos companheiros mortos, mutilados, exilados; um tempo de agonia e medo. Um tempo de silêncio; de grito reprimido. O Sindicato dos Metalúrgicos, palco de muitas lutas e conquistas; de debates, depois esvaziado por bombas e traidores. Ele indo para casa desolado. Depois, vendendo tempero de porta em porta e na igreja evangélica, pregando a libertação da classe trabalhadora.
     O Sindicato estava novamente lotado. Começava a voltar para as mãos de seus legítimos construtores. Difícil esconder a emoção. Mas, uma nova geração de metalúrgicos desconhecia o longo período de silêncio e medo que se abateu sobre os trabalhadores e que todos os dias “O Velho” percorria os caminhos solitários que levavam ao sindicato, certo de que “não há derrota definitiva para a classe operária”. Sob o silêncio da repressão ele continuava o seu trabalho de levar consciência e organização aos humilhados e ofendidos, na certeza de que um dia veria novamente a casa cheia. Sofrera humilhações, muitos riram em sua cara, fizeram deboches diante do sindicato vazio e do silêncio da classe operária. Contudo, como a aranha, que pacientemente tece a sua rede, para apanhar a sua presa, “O Velho” tecia a rede da organização sindical.
     Ele permaneceu por mais alguns segundos em silêncio, observando os companheiros ocupando todos os espaços do salão e da quadra do sindicato. Estava feliz. Mas, precisava falar. A voz estava embargada pela emoção e algumas lágrimas caíram sobre o microfone em sinal de cumplicidade.
   - O que está acontecendo com o “Velho”? - Perguntou um companheiro no ouvido de outro.
        - Estranho, parece que perdeu a voz.
       - Companheiros – vencendo o nó na garganta, “O Velho” iniciou seu discurso – devo confessar que estou emocionado. Depois de muitos anos que o nosso sindicato só não criou teias de aranha porque os faxineiros não permitiram, estou feliz vendo a casa cheia, vendo os companheiros assumindo os seus lugares, pois estas paredes e os alicerces desta casa foram erguidos com o suor e sangue dos trabalhadores. Só não digo que os metalúrgicos são como o filho pródigo que retornou à casa do pai, porque o filho pródigo saiu por vontade própria, enquanto muitos brasileiros foram expulsos. A casa que nos pertence voltou às nossas mãos e vamos cuidar dela com zelo, com organização e muita união, para que nunca mais nenhum aventureiro se aposse dela. Em todos estes anos fomos humilhados por generais traidores, que tiraram a vida de muitos companheiros; que nos expulsaram da nossa casa com seus tanques de guerra, com seus cães mestrados, para garantir os monopólios. Generais que nos impuseram o arrocho salarial, enquanto o custo de vida disparava.
     Parou um instante, observando a multidão que ouvia em silêncio. Suas mãos tremiam. Mas, as palavras saíam lúcidas e como balas iam diretas no coração do capitalismo. A multidão aplaudiu aos gritos de “trabalhador unido, jamais será vencido”.
    - Companheiros e companheiras – continuou, limpando o suor da testa com a mão - , assim como o boi tem os chifres e o burro tem os cascos, para se defenderem, os trabalhadores têm a greve.
    Fez um breve intervalo, para sentir o efeito das palavras. O sindicato quase veio abaixo. E continuou:
    “Nós somos o pivô da riqueza, mas, também somos o para-raio, pois tudo arrebenta nas costas dos trabalhadores. Nós produzimos a riqueza, mas o lucro fica com os patrões. Nós produzimos a fartura, mas vivemos na carência. Um trabalhador só come carne quando morde a língua. O poder é como uma árvore, quando nós sacudimos o seu tronco, a copa balança. Vamos sacudir as bases que sustentam a exploração, para derrubar o topo da pirâmide e distribuir a riqueza concentrada no topo. No momento estamos conquistando a liberdade de organização e de expressão, ainda não conquistamos a justiça. Ainda temos um longo caminho pela frente. Só alcançaremos a verdadeira vitória, que é a igualdade social, se acreditarmos em nossa força e em nossa união. Precisamos nos organizar diante da nova conjuntura que estamos construindo. Nós sacudimos a árvore da ditadura e seus galhos estão caindo, mas não se iludam, outras árvores virão, com novos métodos, para manter a mentira e a exploração. Demos um passo importante. Estamos vencendo uma batalha, mas a guerra pela liberdade e por justiça continua. Estou feliz. Vamos compartilhar este momento, contem comigo, sempre.”
     Aos gritos de “trabalhador unido, jamais será vencido”, os peões carregaram O Velho pelas dependências do Sindicato dos Metalúrgicos.


J Estanislau Filho


Do livro Crônicas do Cotidiano Popular - edição de bolso 2006

                                                                      Imagem: jef 

        




                                                                 Imagem: Google

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