quinta-feira, 16 de abril de 2020

Prova de vida





De tempos em tempos aposentados e pensionistas precisam provar que estão vivos. Sem isso, seus salários, majoriitariamente uma merreca, são suspensos.
     João Batista está aposentado há mais de vinte anos e desde que a lei foi sancionada, vai todo ano a agência bancária realizar a sua prova de vida. Afirma que a lei é justa, porque protege o erário, evitando que oportunistas recebam indevidamente. A questão é ontológica, meu amigo, me diz Batista, batendo o nó dos dedos sobre a mesa. Na realidade eu preciso provar todos os dias que estou vivo, pois o penso, logo existo não me basta, completa. Respondo que não tinha pensado sob este ângulo, pois não tenho espírito filosófico e emendo ser muito desgastante enfrentar a burocracia. Não basta o atestado de óbito? Morreu, interrompe-se o benefício!
     Entender o sentido da vida não é tão complicado quanto dizem alguns, digo ao amigo, que balança a cabeça num gesto de dúvida. Nós é que complicamos, especialmente os políticos e os que só pensam em custo-benefício; acumular patrimônio. E sabe porque complicam? Para que só eles entendam como funciona o sistema. João Batista me escuta com atenção. E responde: este sistema não mexe com os meus sentidos. A vida é o centro de minhas reflexões.  Existe algo maior, muito além das mesquinharias humana, por exemplo: a ciência, meu caro, não derrotará o virus. Ele é mutante. É até possível ao sistema humano acabar com a fome, reduzir ou até eliminar a desigualdade, mas e a vida? De onde viemos, para onde vamos? Vale a pena viver? Ora, João!, respondo com um gesto inútil, apesar dos desatinos, dos nossos desatinos, a vida é uma dádiva, não importa se Deus existe ou não, aqui estamos e há beleza ao redor. João refuta, com seu espírito filosófico: - o que me mantém vivo são as dúvidas, para elas estou sempre à procura de respostas, como esta de Sartre: a existência precede a essência? Para Sartre, sim. Não tenho esta certeza. Estou vivo, não certo disso, mas a minha essência pode me anteceder, porque não? Ah, meu caro João, respondo com um sorriso irônico, acho isso uma perda de tempo! Estamos vivos sim, amigo, mas agora preciso ir a agência bancária para provar, senão, você já sabe o que pode me acontecer. Concordo, responde João com um misto de dúvida e certeza, vamos lá, dura lex sed lex...
   
J Estanislau Filho

Imagens: jef

16 comentários:

  1. Um texto rico em detalhes. Muito bem escrito. E a crônica é correta. Na dúvida: é melhor provar. Parabéns! Como sempre ficou ótimo. Abraços dessa mineirinha...

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  2. Obrigado pela amável presença aqui, prima. Que tal me mandar um texto de sua lavra, para publicarmos aqui? Aguardo.

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  3. Eita vida ter que provar que tá vivo.Cuidafo homem vai cair daí.Maria Luiza

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  4. Amigo, um texto profundamente filosófico. Aqui você nos mostra o amor a sabedoria. Foram abordados problemas da nossa época dando respostas com novos conceitos. Uma espécie de filosofia contemporânea. Maravilha!! Leitura agradabilíssima e enriquecedora. Parabéns. Abraços.

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  5. Filosofou a realidade confrontando a visão do outro com respeito. Parabéns pela crônica!

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  6. É isso aí, Maria Claudia. Com humor a vida fica mais leve. Grato pela presença, volte sempre!

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  7. Não basta cuidarmos para permanecermos vivos. Também temos que provar. Ótima crônica poeta.

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    1. Muito bom receber a sua visita. Bem-vinda, amiga e parceira de letras. Volte mais vezes

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  8. Realmente, muitas vezes fico pensando sobre isso, meus pais são idosos e com mal de Alzheimer e precisam ir de qualquer jeito, minha sogra com 90 anos, com todo sacrifício tem que ir ao banco, já vi pessoas se arrastando, acho meio injusto, e o dinheiro da aposentadoria é a fonte de sobrevivências dos idosos. Mas se for para evitar fraudes, a gente vai, fazer o que? APLAUSOS MIL

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    1. Bom dia, Norma. Obrigado pela visita. Sempre bem-vinda. Fique em casa!

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