sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Nas águas do arrudas *





nas águas do ribeirão arrudas
muda
a ideologia
muda
o canto torto
o rato morto
o sonho do poeta
sem rima
sem métrica
a paz eterna
o esperma
o amor
o odor
o grito
sufocado
engasgado
do esmagado
explorado
nas águas do ribeirão arrudas
d
e
s
c
e
m
os bolos

cais
do executivo
executivo
do patrão
da madame
(a madame caga no arrudas)
o corpo
morto
de um morador das adjacências
que sem paciência
c
ai
u
nu
n
o
arru
d
a
s
sem esperar
a época das chuvas
pois no arrudas
pode morrer
em tempos de
encheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnnttteeeeesssssssssss
oh poeta incompetente
onde está o ritmo
a rima
a cadência
a tônica tônica
atônica
atônito
atômico
autônimo
autômato
antônimo
autonomia
onde está?
?
já não se fazem poetas como antigamente...
o estilo
ah o estilo
(há o estilo)
afinal que paí...
digo, estilo é este?
é um estilo
à imagem e semelhança
dos dias em que viVemos
julgados
condenadoSOS
culpados
(até que nunca provem que é inocente)
exilado
cagado
mijado
ado ado ado do do
dor dor dor dor dor dor dor
(não me condenem: eis aí a rima (apreciadores) estética)
ia me esquecendo
nas águas do arrudas
d
e
s
c
e
m
os bolos fecais
do operário
do mendigo
do homem
do menino
que canta com outros meninos de mãos dadas em frente
a televisão
“liberdade é uma calça azul e desbotada”
(este é um poema que vai pra frente
nas
águas
do arrudas)
livremente
calmamente
(rima pobre)
transportando os anseios
os não-anseios
de um povo
(“povo é abstração”)
nas águas do arrudas
(“lugar de estudante é na escola”)
(“pra pensar pensamos nós”)
(“o Brasil é feito por nós”)
(“é hora de confiar”)
(“é hora de mudar”)
nas águas do arrudas
nas águas do arrudas
por
onde
descem
os bolos
fecais
(“ame-o ou deixe-o”)
da meretrizes
da grã-fina
dos zeferinos
dos infelizes
dos psicólogos
dos filósofos
dos sociólogos
dos ideólogos
ogos
ogos
ogos
do masoquistas
dos fascistas
do padre
do camelô
do gigolô
do doto
do inquisidor
(“revogo as disposições em contrário”)
nas águas do arrudas
n á u s do das
as g a arru onde d
e
s
c
e
m os bo
los
fe
cais
(dos colunáveis,
dos presidenciáveis)
do marginal
do desempregado
(“o futuro a Deus pertence”)
adeus futuro
nas águas do Ribeirão Arrudas
onde há igualdade social
(ou a deles é melhor?)

J Estanislau Filho


Poema escrito em 1975

Charge: Berzé



Do livro Nas Águas do Arrudas (edição do autor: 1984) - Esgotado.

* Ribeirão Arrudas é o ribeirão que atravessa Belo Horizonte. Hoje ele recebe tratamento de esgoto. Em 1984 era o esgoto da população.

5 comentários:

  1. Atual, tanto tempo e tão pouco mudamos.

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  2. Pois é, Maria. Certa vez, por volta de 1977, se não me falha a memória, eu estava dentro de um lotação e à nossa frente ia outro, que vi despencar no Arrudas. Felizmente não houve vítimas fatais. Esse da foto colei do Google, não sei se houve maiores consequências. Grato, volte sempre. Abraço fraterno.

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  3. Muito bom, reflexivos e profundos versos. Somos todos iguais, e quando morremos vamos para o mesmo lugar, e ainda há no mundo a parcela dos arrogantes e egoístas com se tudo fosse deles. Aplausos mil

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    1. Valeu, Norma. Grato pela presença, amiga e parceira de letras. Sempre bem-vinda!

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