quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Filhos da Terra: Capítulos 9 - As Revelações de Zenaide - 10 - Na Redação


                                                                    Imagem: Eliana


                                                     9 - As Revelações de Zenaide

Depois do lanche, Elói chamou Zenaide, para que lhe contasse o que estava acontecendo. A garota tentou escapar, dizendo tratar-se de "coisa boba", mas ele percebeu que havia algo de grave. Continuava sem saber de nada, pois não costumava ler, apesar de jornalista, nem ouvir e nem ver os noticiários da mídia empresarial. O motorista do jornal o trouxera em casa, portanto não fizer nenhum contato com os vizinhos. Zenaide mantinha a cabeça baixa, como se envergonhada. Ele levou a mão sob o queixo dela, obrigando-a, delicadamente a erguer a cabeça. Ao vê-la de olhos marejados, abraçou-a, com ternura. Então ela desabou num choro convulsivo. Elói ficou agitado, especialmente por conta de uma súbita excitação em hora imprópria: -  Minha gatinha, chore, chore bastante e depois me conte - dizia acariciando-lhe os cabelos - mas conte tudo, desabafe, pois sou seu amigo, pode confiar em mim, está bem? Depois de alguns minutos, ela se acalmou e olhava envergonhada para ele: - Ah, meu amigo, eu sou um fracasso, minha família é um fracasso, sinto muito, mas eu te decepcionei. - Como assim? Do que está falando?, perguntou Elói. - Você não sabe? Não acredito - disse Zenaide, novamente caindo em prantos. Elói buscou um copo com água e açúcar e disse com firmeza: - Como é que é? Vai bancar a garotinha mimada? Conte-me logo o que aconteceu, você completa quinze anos hoje. Puxa vida, estava me esquecendo, por favor, desculpa, porque você não está em casa, para a festa de aniversário? Oh, meu amor!, desculpa, mil desculpas, ando tão ocupado, que esqueci o seu aniversário, esqueci de comprar o presente. É por isso que está triste? Zenaide olhou-o com tristeza: - O meu aniversário de quinze anos ficará na lembrança como o dia mais triste de minha vida. Quem dera se fosse apenas não poder comemorá-lo!
     Ficaram alguns longos segundos em silêncio, olhando-se mutuamente. Elói quebrou, do silêncio:
     - Seja lá o que for diga logo e tire este peso de seu coração. Vou dividi-lo com você.
     - Tudo de muito ruim aconteceu - disse Zenaide, enxugando os olhos com as mãos, substituídas por um guardanapo estendido pelo amigo - de só vez. Wallace matou um rapaz da Vila do Sossego e está foragido.
     - Puxa vida, as coisas acontecendo bem debaixo do nariz de todos! - exclamou o jornalista, com desânimo.
     - Pois é, ele comprando coisas, alimento e a gente se iludindo. Ultimamente não faltava praticamente nada dentro de casa. A favor de Wallace é que ele não é usuário de drogas. Não sei bem o que ele estava aprontando, mas está ligado a drogas ou a roubos. Quando a política chegou, saí vazada e até agora não voltei, minha mãe deve estar preocupada comigo.
     - Acho bom você ir logo pra casa. Tem notícias de seu irmão?
     - Eu não, talvez já tenha chegado alguma notícia lá em casa, não sei - respondeu, limpando os olhos com o guardanapo ensopado. 
     - Zenaide, Wallace é menor. Este caso vai parar no Juizado da Infância e da Juventude e ele poderá ficar livre em breve. É melhor ele aparecer e se apresentar à justiça, para a sua própria segurança. Solto poderá ser alvo de vingança. Há tempo de desviá-lo deste caminho. Vamos para a sua casa, vou com você, sua mãe deve estar louca.
     Zenaide estava paralisada, como se recusasse a sair dali. Sentia-se segura na presença do amigo, mas parecia querer dizer-lhe algo mais e não tinha coragem. Elói olhou-a com olhar inquiridor e ela falou de cabeça baixa: - Fazem dois meses que a minha menstruação não vem. - Ah me poupe, garota, isso você terá de dizer pra sua mãe! - respondeu com raiva -, menos hoje, é lógico, senão vai matá-la do coração - completou, pegando-a pelo braço com tanta força, que ela gritou: - Ai, você está me machucando! - São os mais agitados quinze anos que já vi na vida, nem para usar camisinha em tempos de AIDS, porque uma gravidez numa idade imprópria, vá lá, dá-se um jeito, mas já imaginou se você estiver infectada? Não acredito em tamanha falta de responsabilidade! - monologava Elói, abrindo a porta e ganhando a rua, de mãos dadas com a garota que planejara brilhar nas passarelas. 
     Não suportou ver a família aos prantos e a única coisa que conseguiu, foi chorar também. 



10 - Na Redação

Ao chegar na redação no dia seguinte, os colegas comentavam a repercussão da matéria e a operação fracassada da polícia, para prender o menor infrator. O repórter policial Renato Barros encontrava-se diante da tela do computador, preparando um texto, que seria publicado na edição do dia seguinte. Ninguém sabia das relações de Elói com a família de Wallace. Assim que entrou na sala de redação, Renato Barros interrompeu o trabalho, para cumprimentar o colega: - Bom dia, velho guerreiro - Renato sempre se dirigia a Elói dessa forma -, preparado para mais um dia de trabalho? - Quem é do front é você, Renato, o melhor repórter policial do estado - respondeu Elói, entregando-lhe uma xícara de café -, eu atuo em áreas menos conturbadas - completou. - Não sei o que é pior - Retrucou Barros -, cobrir conflitos entre policiais e bandidos ou os crimes ambientais praticados pela especulação imobiliária e invasões de áreas e prédios, por sem-tetos. - Renato, não são invasões, trata-se de ocupações - corrigiu Elói. - Ocupação ou invasão acabam dando no mesmo, o fato é que o pau corre solto e você corre tanto perigo quanto eu. E por falar em perigo, você viu? Um meninos de apenas treze anos cometeu um assassinato e está foragido. É lá do seu bairro. - Estou sabendo - respondeu Elói fazendo um gesto de tristeza - estive ontem com a família, são meus amigos. Lembra da garota bonita da televisão? A que vive me pedindo para ajudá-la a ser modelo? - Lembro sim, você até me mostrou algumas fotos, inclusive pedindo-me ajuda. E daí? - Pois é, o garoto foragido é irmão dela - informou Elói. - Puxa, que pena! Então, por favor, quero que me ajude nessa matéria, já que conhece o garoto. - Posso passar-lhe algumas informações, mas no geral é isso: apenas mais um garoto pobre aliciado por traficantes. Na verdade sei pouco ou nada das atividades dele, aliás, todos foram pegos de surpresa, inclusive a família, por sinal gente boa. Mas havia algo óbvio, que nem o meu faro de jornalista percebeu: o garoto andava ganhando uma grana razoável, para a sua idade e para os parâmetros da família. Tinha até adquirido om tv de vinte e nove polegadas, DVD, muitos CD's, além de alguns móveis, eletrodomésticos, roupas para toda a família e se alimentavam relativamente bem. Ele saía cedo de casa e só retornava à noite e a família acreditava em sua versão, que trabalhava como vendedor ambulante, vendendo artesanatos de vidro. De fato ele saía com essas peças diariamente, mas parece que era tudo fachada. O que me espanta é como um garoto, nessa idade... Puva vida, é muito triste! Afinal, que país é esse? Concluiu Elói indignado. 
     - É o país da infância roubada, da juventude desnorteada e de idosos desrespeitados - respondeu Renato Barros.
     - É a herança maldita que FHC deixou nestes oito anos - disse Elói. 
     - Não seja reducionista, Elói. Concordo que foram oito anos terríveis, mas atribuir as mazelas ao Fernando Henrique é desconhecer a história. Isso vem de longa data, mas para não voltarmos a um passado distante, os últimos vinte e cinco anos oram de instabilidade e estagnação, isso sim, deixou uma herança maldita. O conflito social no Brasil não é difícil de entender e já virou clichê: a riqueza acumulada em poucas mãos. Abrir estas poucas mãos recheadas e fazer um pouco desta riqueza chegar a milhões de mãos vazias é o desafio do seu presidente.
     - Meu? Porquê meu? Você não votou nele? Nem no segundo turno?
     - No primeiro turno você sabe em quem votei, no segundo anulei - respondeu Renato.
     - Não acredito, você, um cara consciente... - retrucou Elói. 
     - Calma aí, Elói, porque você acha que quem não votou em Lula não é consciente? Eu não acredito nele, acho-o um populista, não tem formação...
     - Você quer dizer um diploma universitário...
     - E porque não? Lula é quase um analfabeto, vai ser ludibriado, espero estar enganado, mas governar um país é difícil! - disse Renato, exaltado.
     - A sua fala me faz lembrar um poema de Bertold Brecht, que diz "governar só é difícil porque a mentira e a exploração são coisas que custam a aprender". Os acadêmicos, que governaram o Brasil não foram competentes o suficiente para nos tirar do atraso. Que sabe, agora, um ex-torneiro mecânico, pau-de-arara nordestino consiga fazer o que os acadêmicos não conseguiram em quinhentos anos. Apesar de Lula ter transigido com a agiotagem nacional e internacional e com o neoliberalismo, acredito que promoverá mudanças...
     - Lenta, gradual e segura, como a proposta de redemocratização do país, feita pelos militares - interrompeu Barros, com ironia.
     - Renato, vamos fazer um pacto: não pré-julgar um governo, para o bem ou para o mal, que ainda não montou sua equipe. Ao final do mandato, e, obviamente, não sugerindo passividade, a gente faz um balanço, para saber se o país melhorou ou piorou, então a gente conversa. Particularmente não acredito em rupturas, mas se o governo conseguir diminuir as desigualdades sociais e acabar com a fome dos brasileiros, proposta do Programa Fome Zero, já é um avanço, porque para mim, não há nada mais degradante que a fome. Eu não consigo entender como ainda tem gente morrendo de fome e de doenças causadas pela desnutrição e pela falta alimento. Ir à lua tornou-se um passeio, no entanto não se consegue solucionar problemas simples, como a fome, água tratada e moradias. Se conseguir pôr um fim à corrupção ou pelo menos reduzi-la, vai ter mais recursos para as políticas públicas. Vamos trabalhar, porque senão, a sua matéria não ficará pronta, nem a minha. 
     - Está bem, velho guerreiro, vamos à luta, mas depois quero saber daquela garota bonita, se rolou alguma coisa entre vocês...
     - Ah nem me fale, mais problemas à vista! Não gosto de ninfetas; prefiro as experientes. Você, hein! A família no maior sofrimento e você pensando bobagens. Ao trabalho, porque mente ociosa dá nisso - retrucou com humor.

A seguir:


11 - Tenório e Edileuza Decidem se Casar
12 - Um Corpo no Matagal


6 comentários:


  1. Luiza De Marillac Bessa Luna Michel
    17:38 (Há 7 minutos)
    para José, eu

    Amigo Stan: Personagem Zenaide atravessa essa bela narrativa, em suspiros e laivos de política! Antes as mais maduras, do que "ninfetas sem ser politizada"... Abraço da sua amiga que lê e relê todos seus textos dessa geração e das demais, Luiza

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  2. Genial histórias narradas com esmero,capricho e uma pitada de picardia política também.

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  3. Stan: ansiosa para ler os próximos capítulos e o desfecho dessa tão bem narrada história. Parabéns. Abraço de sua amiga Luiza.

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    1. Muitíssimo obrigado Luiza Menin, pelas palavras generosas. Na próxima quarta a história continua. Apareça. Abraço do amigo de sempre.

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