quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Filhos da Terra: Capítulos 17 e 18



Rapidinho:

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor.
Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição
Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.




17 - Vitória

Zenaide sentiu faltar o chão sob os pés, quando fora o diagnóstico confirmou ser ela soro-positivo. Chorou convulsivamente. Por mais que os médicos dissessem que o vírus poderia não se desenvolver, e o coquetel era um medicamento poderoso, podendo, com certos cuidados, levar uma vida normal, ela não se conformava. Sentia-se culpada por ter colocado no mundo uma filha nessas condições. Os exames comprovaram que, a criança que nascera de uma cesariana, não estava infectada. Mas Zenaide não acreditava, dizia estar lhe ocultando a verdade. Chorava mais ainda ao lembrar-se de Francisco, o filho saudável de Edileuza e Tenório, motivo de orgulho da avó. Estava insegura quanto ao futuro da menina, de ela ser rejeitada na possibilidade  de ser portadora do vírus HIV, de não receber a mesma atenção da família. Sentia-se amargurada ao lembrar das inúmeras tentativas de aborto. Nesse momento a mãe precoce necessitava de apoio e orientação, que não faltaram dos funcionários do SUS, nem da família. Ao chegarem em casa foram recebidas com alegria verdadeira. Abraçaram-se. Dona Sônia confortou-a, ao ponto de arrancar-lhe um sorriso. Ao pegar a criança no colo e ver aquele ser frágil, que vencera as dificuldades de nascer, chorou de emoção. - Zenaide, ao invés de ficar triste, devia agradecer a Deus por tudo. Pensou se a criança morresse? Como iria se sentir? Talvez morresse junto ou carregaria um sentimento de culpa por um longo tempo. Você está bem. Quanto a AIDS, procurei me informar. Estarei ao seu lado toda vez que for ao médico, vamos participar, juntas, das palestras. Vai ter de mudar o comportamento, evitando pegar gripe e se machucar. Deve alimentar-se bem, seguir as orientações médicas. Tomar juízo nesta cabecinha oca. Sexo, só de camisinha, para não passar a doença a outras pessoas. Existe um programa do governo para os portadores do vírus... E a menina é linda. Pena não sabermos quem é o pai. Também nem sei se pai faz falta, vocês foram criadas sem e são maravilhosas. Quanto a esta fofinha aqui, hum, coisinha linda, vai se chamar Vitória, o que acha? É uma vitória, que será maior com você pegando um rumo na vida. Porque agora as coisas mudaram e o sonho das passarelas, ó, acabou-se aos dezesseis anos, quase dezessete, com uma filha pra cuidar - concluiu Dona Sônia olhando ternamente para a neta. Zenaide concordou com o nome sem dizer nada. Em seguida foi para o quarto, descansar. 

                                 *****

O que se passava em seu coração, ninguém tinha acesso. Elói arcara com algumas despesas, conforme prometera, mas não se comunicaram durante toda a gravidez. Zenaide sentia sua falta, pois ele sempre tinha as palavras certas nas horas incertas; não tinha coragem de procurá-lo. Sabia das dificuldades que enfrentaria: sem emprego, sem profissão, o que fazer? Dormiu um sono profundo, enquanto Dona Sônia estava sentada na poltrona da sala, admirando a neta, no berço. Apesar de triste, sentia-se confiante. Edileuza e Tenório estavam bem, Marcelo transformara-se radicalmente. Olhou fixamente o semblante da menina e reconheceu alguns traços de Elói: "Minha intuição não falha, Vitória é filha daquele safado, mas a gente não pode confiar em ninguém, meu Deus! Qual a razão de Zenaide não querer revelar quem é o pai? Isso não vai ficar assim". Decidiu dar um tempo à filha, afinal mal acabara de chegar da maternidade e infectada, outra dor de cabeça.
     Colocou a criança no berço e foi cuidar da casa. Só então lembrou-se de Atílio. Foi ao quarto e o encontrou dormindo e roncando. Acordou-ou, passando as mãos suavemente em sua calva: - Vamos, levante-se senhor folgado. Porque não muda de mala e cuia de uma vez por todas para cá?
     - No dia em que eu me mudar para aqui, será o começo do fim de nossa felicidade. Você não vai suportar o meu ronco e saiba que, libero gases insuportáveis - respondeu, puxando-a para o seus braços. 
     - Vou coar um café, venha conhecer a sua neta.
     - O quê? Está querendo me seduzir usando uma neném, sabe que não resisto e acabo vindo mesmo - disse beijando a face da amada, enquanto se dirigia à cozinha. 
     - Sônia forrou a mesa com uma toalha com figuras de frutas tropicais e serviu o café como bolo de chocolate, que Atílio esperou pacientemente ficar pronto. Enquanto Sônia preparava o bolo e o café, conversavam animadamente. Atílio observava os movimentos ágeis da companheira, sentindo-se excitado vendo-a de lá pra cá, rebolando os quadris. Havia, entretanto, algo estranho, apesar da aparente calma. Percebia uma agitação na companheira e ponderou:
     - Estou te achando agitada. Como médium, você sabe, capto energias. Quer me contar alguma coisa?
     - Quero sim! - respondeu de pronto, aliviada -, estou me sentindo abafada. Você sabe quase tudo de minha vida e me entende. Na verdade estou preocupada com a minha filha. Nossa situação financeira é difícil, embora tenha melhorado nos últimos tempos, a emocional também, mas lidar com a doença de Zenaide, esta doença, você sabe...
     - AIDS. Sei - completou Atílio.
     - Pois é. Isso é o principal, afinal a saúde está em primeiro lugar e esta doença... Mas a minha preocupação é outra, agora. Estou pensando sobre o pai da criança. Quem é?
     - Pai é quem cuida, mas qual é a dúvida?
     - Estou desconfiada do jornalista. Já te contei a história, de como éramos amigos, eles eram muito agarrados. Acho que ele pode ser o pai. O que você acha?
     - Zenaide não quer contar. Estranho é, lógico. O sumiço, assim de repente - apoiou Atílio -, mas o que se pode fazer?
     - Estou pensando em procurá-lo, abrir o jogo - respondeu Sônia, uma mão contra a outra. 
     - Tudo bem, mas vai com jeito. Isso seria um problema pra sua filha resolver, não acha?
     - Atílio, ela é de menor, avoada. Além disso está debilitada. Vou procurá-lo sem que ela saiba, falar com ele, quem sabe... Seria ótimo se ele assumisse!
     - Você é quem sabe. Se quiser posso ir junto - ofereceu.
     - Prefiro ir sozinha. Sua presença pode deixá-lo arredio, uma testemunha, entende? Não, obrigada, meu amor.
     - Está bem, faça como achar melhor.
     Em seguida despediram-se.



                                                    Imagem: Diário de Pernambuco


18 - A República em Perigo

O ano de 2005 não foi nada fácil para o governo federal, que até então vinha bem nas pesquisas de opinião. Com as denúncias do escândalo denominado pela mídia empresarial de "escândalo do mensalão", o governo ficou na defensiva. A imprensa não dava trégua, analistas de plantão emitiam opiniões sobre os rumos da república, concluindo que o caminho seria a renúncia do presidente, ou o seu impeachment. Em meio ao tiroteio, envolvendo, inclusive setores da base aliada, a desordem tomara conta do governo. Dentro do próprio partido do presidente, o clima era tenso. Indignação: "esse é o resultado da aliança com os conservadores, quando deveria ser com o povo"; "o rebaixamento do programa do partido, para acalmar o mercado só poderia dar nisso"; "o não rompimento com as políticas neoliberais tornou o governo refém do sistema financeiro e da elite dominante"; "a responsabilidade é do campo majoritário, que não faz a interlocução com o conjunto do partido e com os movimentos sociais, optou por um diálogo com um congresso atrasado, com o baixo-clero, agora não tem o apoio nem de um nem de outro, está isolado". Estas foram algumas opiniões colhidas por Elói, junto à militância do partido, ele próprio atordoado com a gravidade das denúncias. No Congresso Nacional foi instalada uma CPI do mensalão. Mas de maneira geral até mesmo dentro da oposição e na mídia empresarial, notava-se, ainda que, subliminarmente, a preocupação de preservar o presidente da república. Para alguns analistas a sua queda levaria a um descontrole social sem precedentes, colocando em risco a república. Na redação do jornal, Elói também passava por momentos difíceis. Não tinha argumentos para defender o governo, sentia-se frustrado. Para ele o governo caíra na arapuca do financiamento empresarial de campanha em que tudo pode acontecer. A distribuição de cargos e benesses, para garantir a governabilidade, tinha um preço. Elói acreditava que Paulo César Faria, ex-tesoureiro de Fernando Collor à presidência, fora assassinado porque administrava uma sobra de campanha, que tinha vários donos. 
     Como não queria se estressar, ao sair do trabalho foi em busca de uma companhia feminina. Queria fazer sexo a noite toda. Raramente ia a shopping, pois preferia os barzinhos do Maleta. Mas nessa noite fizera o itinerário oposto. Sabia que circulava nos shopping's garotas de programa lindíssimas, com caras de patricinhas. "Hoje é hoje", dizia enquanto se sentava na praça de alimentação, observando o movimento. Quatro garotas lindas encontravam-se numa mesa perto da sua, comendo sanduíches, bebendo refrigerantes. Saias curtíssimas, coxas bem torneadas à mostra. Uma brincava com o celular; outra contava um caso, animada. Todas jovens. Elói às observava atentamente: "Lindas, todas são lindas, a mulata então, parece não ter mais de dezessete anos, mas com um corpo de mulher experiente; as pernas da outra eu vejo a calcinha vermelha". Enquanto esperava o número da senha, liberando a pizza, bebia um shop escuro, observando ao redor, com discrição. De repente sentiu-se ridículo com aquilo tudo e decidiu ir embora após comer a pizza. Foi então que notou uma garota alta e loira, com um celular pendurado no bolso dianteiro da calça branca e justa. Ela virou as costas e seguiu em outra direção. Tinha o traseiro bem delineado, andava como quem flutua. Seguiu-a com os olhos, parecia um anjo sacudindo a longa cabeleira. O seu coração começou a pulsar forte e, sem perceber, levantou-se da cadeira e foi ao encalço da loira. Ela caminhava em direção ao estacionamento. Seguiu-a de longe e a viu conversando com o motorista de um fiat pálio. Aproximou-se, curioso em ouvir. Negociavam valores por uma noite de amor. Em seguida a garota entrou no carro e partiram. Voltou à praça de alimentação, para comer o último pedaço da pizza. Optou por embrulhá-la, para comer no café da manhã seguinte. Voltou para casa e não teve jeito. Ligou o computador e começou a escrever:
     Sempre quis saber qual seria o futuro desta juventude nesse governo, que tem como prioridade implantar projetos de inclusão social. Sei que em quatro anos não se resolvem problemas estruturais de séculos e não se rompe com esta cultura política de um dia para o outro. Mas esse governo não pode passar o tempo todo se desculpando e culpando a herança maldita. Os avanços são pequenos, diante do tamanho das demandas sociais e ambientais. Não se implementou uma reforma agrária necessária ao desenvolvimento do país, os assentados continuam sentados esperando e se permanecerem sentados não sai a reforma agrária, pois os latifundiários e o agro-negócio são poderosos. Pior agora, com o governo enfraquecido por denúncias de corrupção. É uma ironia ver velhos corruptos na televisão, pilantras que sempre dilapidaram o patrimônio público em proveito próprio, exigindo ética. Assassinos fazendo poses de defensores da vida; filhotes da ditadura exaltando valores democráticos; sonegadores de impostos reclamando de tributos elevados. A grande mídia cumpre o seu papel de guardiã de interesses de uma minoria endinheirada de dentro de de fora do país. As eleições presidenciais estão próximas. Se não houver o impedimento de Lula, possivelmente ele será batido nas urnas, e, numa suposta legitimidade, as políticas de privatizações retornarão sobre os recursos naturais, inclusive. A Petrobras será a próxima. De novo ouviremos que as questões das desigualdades sociais serão resolvidas pelo mercado. Enquanto isso o governo continua enrolado em seu próprio rabo. Não se pode culpar a imprensa por suas lambanças, principalmente por saber que ela é seletiva, tem lado. Por mais que o governo tenha cedido na política de interesse dos grandes grupos econômicos, eles não confiam, têm receios de que Lula resolva dar uma guinada à esquerda, rompendo com o neoliberalismo. Contudo seria lamentável perder a eleição presidencial de 2006, quando em quase toda a América Latina a esquerda via impondo derrotas à direita. Continuo me perguntando sobre o futuro dessa e das novas gerações, quando vejo garotas se prostituindo; o narcotráfico aliciando jovens e o trabalho escravo continua sendo praticado em pleno século 21...


                                                                    Imagem: Google


     Não conseguiu escrever mais. A lembrança da garota loira entrando no fiat ocupava os seus pensamentos. Porque sentiu o coração bater acelerado quando a vira? Contivera o ímpeto de detê-la, quando negociava o sexo com o cliente. Sentira-se diminuído ao perceber que fora fazer a mesma coisa. Não se tratava de moralismo barato, nem de pieguice. Um país em que uma pessoa seja obrigada a vender o seu corpo para sobreviver, definitivamente não é um país justo", escreveu e leu, para sentir o efeito. E acrescentou: "Viver em um país em há crianças vendendo balas em sinais; que há exploração sexual de crianças e adolescentes ou de adultos; que tem trabalho escravo e salários aviltantes...
     Parou. Pegou a garrafa de uísque e serviu-se de uma dose, pensando em sua vida. O que fizera de concreto para mudar tal realidade? Para os padrões do país, era um privilegiado. Dava-se ao luxo de morar em um apartamento confortável; dava-se ao luxo de beber uísque doze anos! Voltou ao computador e anotou: Não carrego na consciência nenhum sentimento de culpa, pois não sou o causador das injustiças sociais. Mas isso não me dá o direito de ficar em silêncio. Quero um país em que todos possam viver com dignidade...
     Sentou-se na poltrona e pensou em Zenaide. Quando Dona Sônia o procurara, para saber se ele era o pai de Vitória, respondera calmamente:
     - Não, não sou o pai, mas poderia ter sido. Ela não quis, quando lhe propus registrar a criança em meu nome, mesmo não sendo o pai biológico. 
     - E porque bancou as despesas e nunca mais nos procurou?
     - Vou revelar uma intimidade: não nego que desejei sua filha, mas ela era menor de idade, seria arranjar um problema. Meu sentimento por ela estava confuso, queria ajudá-la, mas ao perceber que a levaria para a cama, preferi sair de cena. Não sei se hoje sou suficientemente bom para tomar uma atitude como a que tomei naquela época. Não tenho isso por obrigação, a responsabilidade é dos governos e cabe a nós, cobrar. E se você, Sônia, desculpe-me por chamá-la assim, porque entendo, que senhor e senhora são de engenhos... Como estava dizendo, se você continuar com a ideia de que eu seja o pai, e muito simples: eu faço exame de DNA. Apesar não termos contatos há aproximadamente dois anos, saiba que trago boas recordações de nosso convívio, e espero o mesmo de vocês - concluiu Elói, dirigindo-lhe um abraço afetuoso. 
     - Por favor, me perdoe. Confio em você, sabe como é o coração de mãe - retribuiu o abraço, chorando.
     - Não sei. Como é o coração de mãe? - perguntou sorrindo, para quebrar o constrangimento.
     - Coração de mãe vê coisas. No fundo ele desejava que você fosse o pai verdadeiro - respondeu, beijando-lhe a face.
     - Por favor, não me leve às lágrimas e me fale de Zenaide, da neta, enfim, de todos.
     - Foi então que Elói ficara sabendo que a garota mais linda do bairro era soro-positivo e levava uma vida relativamente normal, fazendo uso do AZT. Trabalhava pegando bico aqui e acolá, para garantir o sustento de Vitória. - Você podia nos visitar um dia desses. O Marcelo largou a bebida; Edileuza me deu um neto lindo, que se chama Francisco. Tenório e Marcelo fazem planos e Zenaide continua com a cabeça no vento, um pouco menos que antes. Na medida do possível está bem - completou Dona Sônia, desculpando-se e agradecendo tudo o que ele fizera pela sua família.
     Movido por um novo sentimento, Elói decidiu que iria visitá-los, assim que pudesse. O coração de manteiga se manifestava. 







Próximos capítulos:



19 - A Loira Misteriosa

20 - Frango Caipira ao Molho Pardo


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