quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Filhos da Terra: Capítulos 11, 12 e 13



Rapidinho: 

Filhos da Terra é uma novela dividida em vinte cinco capítulos. Narra a trajetória de Zenaide, uma ninfeta, que se envolve num mundo do sexo, droga e fúria. A história de uma garota da periferia; pobre, sensual, que sonha com o sucesso. Zenaide e sua família, num turbilhão de sentimentos. Um jornalista, como um anjo de guarda, surge em sua vida. Um amigo, um pai; um amor. 
Capa: Berzé; Ilustrações do miolo: Eliana; editoração eletrônica: Fernando Estanislau; impressão: Editora O Lutador - 2009, primeira edição 
Agradeço pela leitura e peço a quem encontrar algum erro de gramática ou digitação, por favor, me avise.



11 - Tenório e Edileuza Decidem se Casar

Em meio a esta desordem Tenório e Edileuza decidem se casar. Dona Sônia pediu adiamento, não tinha cabeça pra pensar, mas Edileuza disse que seria uma cerimônia simples, em casa, feita por um amigo kardecista.
      - Kar o quê? Perguntou a mãe.
   - Mãe, eu agora sou espírita kardecista, já te disse. Allan Kardec foi quem formulou a doutrina espírita. O Tenório também é espírita. Estamos frequentando o Francisco de Assis. 
     - Quer dizer agora, que vocês vão fazer aquelas coisas, receber espíritos, queimar pólvora, fazer despachos, pomba-gira... Vocês estão afastados de Deus! Indignou-se a mãe. 
     - Uai, mãe, tem nada disso! Isso aí é candomblé, macumba, umbanda, sei lá. Também não é pra ter preconceito, faz parte da nossa cultura espiritual. Olha aqui, mãe, em todos os lugares e em todas as religiões tem gente evoluída e gente atrasada.
     - Está bem, filha, afinal Deus escreve certo por linhas tortas, mas dá para esperar um pouco? Não entendo porque a pressa, vocês se conhecem há tão pouco tempo! Além do mais, não está vendo o meu desespero? Você não está nem aí para o seu irmão.
     - Não diga isso, claro que estou, mas o que tiver de ser, será. É carma. De qualquer forma o casamento não vai acontecer amanhã, nem é necessário.
    Edileuza não quis revelar o outro motivo da pressa, com receios de que a mãe ficasse nervosa: estava grávida.
   Tenório era trabalhador, pedreiro muito requisitado pela comunidade. Era um negro musculoso, de pernas longas e grossas, cabelo cortado baixinho, pele hidratada, peito largo e lábios carnudos, tinha um sorriso alegre, que deixava à mostra os dentes alvos. Estava no vigor de seus vinte e quatro anos, um ano mais novo que Edileuza. Tinha fama de mulherengo, para irritação da namorada. Ela intuía ser ele o sujeito que a molestara naquela noite confusa, mas nunca teve a coragem de perguntar. Quando ele começou a frequentar a Igreja do Reino do Amor, e mesmo agora, seu cheiro parecia com o do estranho. Às vezes dizia para si, "é ele, minha intuição não falha e se for, não importa, eu o amo e vamos nos casar. Seremos felizes".     De fato eles pareciam ter nascidos um para o outro, mas quem estava no comando era Edileuza, uma mulher decidida. Resolveram esperar o , retorno de Wallace. Contudo não perderiam tempo: foram para o quarto namorar, aproveitando a saída de Dona Sônia, que fora à delegacia buscar informações. O delegado recebeu-a educadamente, compreendeu o sofrimento dela e consolou-a, porém, até o momento não havia indícios do paradeiro do garoto. 
     - Dona Sônia - disse o delegado -, meus agentes estão fazendo o que podem para encontrar seu filho e prendê-lo. Não vamos pressionar a família, porque sabemos tratar-se de pessoas honestas, sei que não estão escondendo o garoto, que se meteu numa enrascada. Não entendo como os pais não percebem o envolvimento dos filhos com o crime! É preciso estar atento. Todos os dias chega em minha delegacia, denúncias de menores armados dentro das escolas, usando crack, promovendo desordens. Alguns são encaminhados ao Juizado de Infância e de Juventude, porém existem centenas de casos que não são registrados, os pais abafam. A política não dá conta, faltam recursos...
     - Ah seu delegado - respondeu Dona Sônia -, quero meu guri vivo, ele é bom e não fará mais bobagens.
     Retornou para casa em prantos, sem notícias. Ao chegar encontrou Tenório e Edileuza beijando-se em frente da televisão: - Não sei como vocês conseguem ficar se beijando e em abraços, sabendo da desgraça que caiu sobre a nossa casa - disse entrando no quarto.
     - Tenório - disse Edileuza, séria - é melhor você ir embora. Minha mãe está sofrendo.





                                                                  Imagem: Google



12 - Um Corpo no Matagal

Alguns dias depois do desaparecimento de Wallace, veio a trágica notícia: seu corpo fora encontrado em um matagal, nas proximidades da represa de Vargem das Flores, em estado de decomposição, com picadas de urubus. Foram estes mesmos urubus, que ajudaram a polícia a localizar o corpo. Depois de liberado pelo IML Wallace foi enterrado no Cemitério Nossa Senhora da Glória, acompanhado, basicamente pelos familiares e por alguns vizinhos. Marcelo não compareceu, pois condenava a conduta do irmão caçula. Dona Sônia estava inconsolável, queria de todas as formas que os coveiros abrissem o caixão, para a última despedida, mas fora impedida pelas filhas, pois o estado de decomposição do corpo, não permitia. Como foi, voltou do enterro, amparada pelas filhas. Algumas semanas depois, após ser levada por Edileuza ao centro espírita e receber, por meio de um médium a mensagem do filho, com as palavras a seguir, ficou menos inconformada:
     "Minha querida mãezinha, não sofra por minha causa, pois estou em um lugar maravilhoso. Encontrei meu pai e ele tem me orientado com amor e dedicação. Aqui é tudo muito bonito e calmo, tenho amigos bondosos, que se recuperam do uso de drogas. Mãezinha querida, tudo o que nos acontece não é por acaso. Felizmente eu não fiz uso de drogas, mas contribui em sua disseminação. Mãezinha, a morte não existe, apenas passamos para outro estágio, em um processo de evolução. Ainda não sei o que vai acontecer, mas de uma coisa tenho certeza, a vida é preciosa e Deus escreve certo por linhas tortas e a senhora é e sempre será minha mãezinha do coração. Não chore, não me chame, liberte-me. Um beijo carinhoso do seu eterno filho, Wallace".
     Assim Dona Sônia passou a frequentar as reuniões do centro, com o genro e a filha, ansiosa pela chegada do primeiro neto, sem saber que um segundo poderia estar a caminho. Edileuza foi quem a consolou nesses dias difíceis, orientando-a espiritualmente.
     - Sabe de uma coisa, mãe, em primeiro lugar a vida não acaba com a morte do corpo.
     - Compreendo, filha, mas não é justo, meu filho só tinha treze anos. O certo é levar alguém que envelheceu. Deus poderia ter me levado no lugar dele. Assim tão jovem... Acho uma maldade! Preciso ainda de um tempo para entender e aceitar. 
     - Muitas vezes o bem está onde pensamos ver o mal. A senhora não pode avaliar a justiça divina pela sua. Nada acontece por acaso, tudo tem uma razão de ser. A razão divina é da razão regeneradora. É preferível a morte na encarnação de seus treze anos aos seu vergonhoso comportamento, que dilacera os nossos corações, principalmente o seu, mãe. Deus achou melhor ele não permanecer na terra. Não se queixe, mãe, por Deus tê-lo tirado desse vale de misérias.
     - Por enquanto me deixe chorar, mas vai passar.


13 - Não Sou Salvador da Pátria

Os problemas pareciam não acabar nunca. Zenaide procurou Elói e disse claramente o que desejava:
     - Elói, preciso muito da sua ajuda. Faço qualquer coisa, viro garota de programa, vendo drogas, qualquer coisa mesmo, para arrumar uma grana e fazer aborto. Um filho vai estragar a minha vida.
     - Calma Zenaide! Vamos pensar direito, aborto é crime, você sabe.
     - Sei. Sei também que existem clínicas clandestinas caríssimas. Vai ou não me ajudar?
     - Ei! Calma lá. Devagar com o andor que o santo é de barro. Quem pariu Mateus que balance o berço! Respondeu irritado.
     - Puxa vida! Pensei que fosse meu amigo - respondeu, começando a chorar.
     - Sou seu amigo, mas convenhamos, que canoa furada você entrou, hein?
     - É só um aborto, não é você que anda dizendo que tem muita gente no mundo, controle de natalidade...
     - Eu falo de planejamento familiar. Já foi a um ginecologista? Fez exames? Como tem certeza de que esteja grávida?
     - Pelo amor de Deus, Elói, me ajude, sei que estou grávida, uma mulher sempre sabe - respondeu num choro torrencial.
     - Uma mulher!... Olha quem está falando. Ficou louca? Não posso fazer isso. É fria! Ter um filho não é o fim do mundo. Quantas meninas, algumas mais novas que você, tiveram filhos e estão bem! Um aborto vai trazer-lhe consequências para o resto da vida. Além de crime, ninguém sabe o que pode acontecer com a integridade física, deixa sequelas, inclusive emocionais - aconselhou Elói.
     - De um jeito ou de outro, vou tirar esse feto. Está decidido. Com ou sem a sua ajuda - respondeu convicta.
     - Vamos fazer o seguinte: primeiro pensar em outra solução...
     - Não, quanto mais demorar, mais complicado vai ficando, tem de ser já!
     - E se eu te fizer uma proposta?
     - Uai, manda ver!
     - Eu garanto médico, pago os exames e ajudo a criar a criança. Por  falar nisso, quem é o pai?
     - Não sei. Transei com vários quando estava no período fértil, também não quero saber. Fumei uns baseados no dia, viajei! Quero mesmo é tirar!
     - Não é assim não, senhora! Estas pessoas precisam ser responsabilizadas.  Puxa vida, mas você caiu nessa de fumar maconha? Não que eu ache a maconha hum horror, mas puta merda... Vamos pegar estes sujeitos, processá-los, você é menor. 
     - Não quer ver a cara deles, não merecem nada. Foram uns brutos, quero arrancar isso de dentro de mim e pronto. Fiz besteira, tô ligada, mas quero consertar - respondeu, soluçando.
     - Você acha que um aborto conserta...
     Elói estava irritado. Mais consigo, por conta de sentimentos opostos: ciúme e compaixão. Tivera inúmeras oportunidades de fazer sexo seguro com Zenaide, amá-la até, protegê-la. Não o fez por medo. Mas a compaixão sobrepôs. Reformulou a proposta:
     - Zenaide, preste atenção: você terá todos os exames por minha conta, garanto tudo e tem mais uma coisa... Parou, levando as mãos ao rosto dela, acariciando-lhe levemente a face, em seguida encostou a cabeça da garota em seu peito e prosseguiu: eu registro a criança em meu nome, assumo o filho ou a filha. Topa?
     - E se casaria comigo... retrucou com ironia, entre risos e lágrimas.
     - Meu amor, minha linda, isso não seria necessário. Tenho idade para ser seu pai. Depois de ter a criança, poderia voltar aos estudos, ter uma profissão, ser livre, ter autonomia, dona de seu nariz. Prometo ajudar, juro!
     - Você é muito bom, Elói, mas não aceito, não é justo.
     - Caramba, você fez sexo pelo sexo, simplesmente?
     - Não me venha com machismo, por acaso os homens não andam por aí trepando com qualquer uma? Fiz, não nego, mas também fui abusada. Não me venha com lições de moral, logo você, um jornalista? Menos, Elói, menos.
     Por esta ele não esperava. Depois de alguns longos segundos acabou dizendo o que estava engasgado:
     - Você foi de uma falta de responsabilidade tamanha, que tenho vontade de te dar umas palmadas. Como foi capaz de transar com vários sujeitos, que mal conhecia, sem se prevenir? Além da gravidez, já imaginou uma doença! Acaso você se lembrou de que a AIDS é fatal? Terá de fazer exames de HIV. O feto pode estar infectado, também. Ficou maluca, não tem saída. 
     - Mais um motivo para eu fazer o aborto - respondeu decidida.
     - Acho melhor contar à sua mãe, ela precisa saber - orientou Elói.
     - Ninguém lá em casa pode saber. Nem hoje nem nunca. Poxa, Wallace morreu outro dia, este sofrimento a mãe não suportaria.
     - É mesmo, não dá pode contar agora - concordou -, mas Dona Sônia mudou muito, está mais compreensiva e vai aceitar numa boa, na hora certa. Ela agora vive dizendo que nada acontece por acaso, que Deus escreve certo por linhas tortas. Boba, ela vai compreender e quem sabe vai até ficar feliz. Um neto, ou neta, sabe-se lá, vai ajudá-la a esquecer Wallace, pense nisso.
     - A santa Edileuza vai dar-lhe um neto. Eu só quero saber se você vai me ajudar. Faço qualquer coisa pra tirar isso da minha barriga. Agulha de tricô, remédio caseiro... Descobri que tem um remédio que é tiro e queda, citoteque, um nome assim.
     - Você pirou de vez. Continuo achando que o melhor é fazer os exames, confirmar como está a gravidez, e se estiver tudo bem, deixe a criança nascer. Pode até não estar grávida, ser alarme falso. Melhor não correr riscos, pois a sua saúde está em jogo, assim como o seu futuro. Apesar da lambança, você não é a primeira, nem será a última. Também não é o fim do mundo. Eu ajudo nessas condições, topa? Não precisa responder agora, vá para a sua casa e pense. 
     - Está certo, prometo pensar. 
     Quando Zenaide saiu, Elói pegou a garrafa de uísque e foi ouvir Pablo Milanês. Sentia-se desanimado, pensando em voltar a morar no centro da capital. Alugar um apartamento no Maleta e dar adeus à periferia. Cuidar de sua vida, que estava um caos. "Zenaide que se vire, Dona Sônia que se vire, não sou o salvador da pátria", dizia enquanto enchia a cara. E assim aconteceu. Mudou-se e não deu o endereço. Mas antes entregou à garota mais linda do bairro, um cartão  com o endereço de uma clínica, para que ela pudesse fazer, sem ônus, os exames que precisasse. Autorizou-a, ainda, a ligar para a redação do jornal "em caso de extrema necessidade". 


                                                                    Imagem: Eliana


Leia na próxima quarta-feira:

14 - O Tempo Continua Implacável

15 - Para Onde Vai o Governo?

4 comentários:

  1. Mais um capítulo inebriante, em crônica, sob muitas nuances. Social e político! Parabéns, Stan. Abraço da Luiza.

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  2. Li com atenção mais estes três capítulos. Histórias do cotidiano, causando sofrimento às pessoas envolvidas, ocorridas por irresponsabilidade ou de maneira brutal, muito bem narrada, caro Escritor. Ansiosa para ler o término dessa obra que daria uma novela, um livro. Abraço

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