terça-feira, 10 de novembro de 2020

Abstração

Ilustração: berzé
 


Não sei porque tudo está tão confuso, não sei,
Foi na roça que eu me criei,
Lá não tinha lâmpada elétrica,
Não tinha televisão e o meio de transporte era o cavalo,
a charrete, o carro-de-boi
E eu era feliz.
Não tinha geladeira,
O assento era um banco de madeira e
A escola, coitada, uma casinha tão pequena com
vaga para todos,
Não havia fábricas, o ar era puro,
As águas eram cristalinas
e os peixes nadavam.
As crianças brincavam
os adultos riam.
O teatro era simples
Os atores não usavam máscaras,
Aliás, não havia teatros, ninguém representava.
Não tinha cinema
e Carlitos existia dentro de todos.
Eu era feliz!
Não conhecia Bethoven Mozar, Straus
e a música era linda
os pássaros cantavam.
O rio, com seu curso natural
Passava pelos campos
saciava a sede de todos
e os peixes nadavam.
Os moinhos moviam,
Não conhecia óperas, concertos, ballet’s
E vivia feliz.
À tarde ia ver o sol se por
e o sol ia sumindo...
E eu não sabia que um dia ia sumir,
Não sabia das boêmias
Das noites perdidas.
Cavalgava pelos campos...
O cavalo corria e o cachorro Negrito corria atrás,
O boi Cascudo era traiçoeiro,
Um dia acertou-me uma chifrada no traseiro,
Os pássaros cantavam
os pássaros existiam!
e o espaço era livre.
Às vezes ia ver o João-de-Barro construir o seu ninho,
Ou ver as abelhas colher o néctar das flores,
Ou apreciar o trabalho das formigas e ajudá-las.
Eu corria
Gritava
Saltava
O córrego
Subia nas árvores
havia árvores!
Subia no abacateiro,
Colhia morangos,
Olhava as borboletas de asas pretas
Azul e anil,
Entrava no atoleiro,
Rolava na grama.
Era um moleque travesso,
Na hora do almoço
Corria afoito
Queria comer
Arroz com feijão
havia arroz, havia feijão!
A carne de frango ou a taioba,
A farofa,
O torresmo
Que comia a esmo,
Sem mastigar
E não sabia que um dia ia comer comida enlatada!
Era gostoso o cafezinho com biscoitos,
A pamonha,
O cuscuz,
A comida sobrava nos pratos,
Não sabia que nas calçadas,
Mãos levantadas pediam uma esmola,
para comprar um pedaço de pão!
Vejo a doença espalhada pelas ruas da cidade,
Debaixo das marquises a fome e a doença são rotina,
Crianças vagueiam pelas ruas brincando
corrompendo,
Não regressam ao lar,
Lar não existe.
Os jornais comentam
Guerras assassinatos, seqüestros
e que uma menina de sete anos foi estuprada.
Que mataram Carlinhos!
O Embaixador disse: “mundo moderno, civilizado,
Ideologia”
O que será tecnologia?
Já não vejo a tranqüilidade nos campos,
oprogressoprocuraespaço.
Procuro o horizonte
Não existe horizonte
nem Belo Horizonte.
Está coberto
terrivelmente coberto,
substâncias tóxicas se multiplicam...
Sinto saudades do rio caudaloso,
ai, como é doloroso!
Saudade das águas cristalinas
onde os peixes nadavam.
Não há mais rios,
É preciso fugir, ele está contaminado
contaminando
assassinando.
Procuro a paisagem,
Não existe paisagem,
Foi demolida
Desenhada
Desdenhada
Procuro o verde,
Não existe verde.
As drogarias vendem clorofila
num pequeno frasco!
Pendurada na parede
Uma folha de concreto
verdinha verdinha
autografada.
Lá na rua um grito,
Um apito,
Uma avalanche de carros,
Um corpo caído
Um “Guie sem ódio”!
A sirene apita
precipitam sobre o corpo e o levam
Inerte,
Chegam ao hospital,
Preenchem a ficha,
Assinam três vias,
Esperam na fila,
Esperam uma vaga.
Não é mais preciso,
Está frio
Está morto
e tudo está certo
foi acidente
um incidente
um imprudente,
A medicina ainda não faz milagres!
Enquanto isso
A vida continua...
Debaixo da ponte
No meio da rua
Sob as águas da fonte (luminosa)
Em cima do muro
Nos cabarés
No caminho escuro
Nos cafés
Nas casas de choop
Nos velórios
Na contra-mão
No barulho do trânsito
Na abstração!


J Estanislau Filho

Poema escrito lá pelos idos de 1975. Hoje entendo que eu passava por um choque cultural, pois chegara à Belo Horizonte, vindo do interior e a metrópole mexeu com a minha percepção. 

4 comentários:

  1. Uma obra poética valorosa, tudo pode ser sentido, em todos os tempos! Mas, atualmente, o canto do pássaro encanta mais... Parabéns, Stan! Um Verdadeiro presente, de sua gigante lavra poética. Um abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valeu Luiza, realmente, o diálogo com um pássaro até eu achei que ficou bom rsrs. Volte sempre. Abraço fraterno.

      Excluir
  2. A poesia mostra o progresso sem respeito ao meio ambiente e as diferenças sociais. O poeta sempre atento e preocupado com o progresso selvagem.

    ResponderExcluir