quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O Hóspede









João e Maria não esperavam a súbita visita de um velho amigo.
       Sete anos exatos não se viam. Francisco desaparecera, sem deixar endereço. E durante esses anos não tiveram contato algum. Mas jamais esqueceram do amigo. Lembravam o tempo em que se sentavam ao redor da mesa, com uma garrafa de vinho e discutiam literatura. Francisco tinha um bom conhecimento do assunto e um certo orgulho disso. Era capaz de recitar versos de José Régio, Rimbaud, Drummond, Fernando Pessoa, Neruda, Cecília Meireles... Lera os pré-socráticos, além dos principais filósofos modernos. Fazia análise psicológica dos personagens de Dostoiévisky, Stendahl, com profundidade. A liberdade em Sartre; a temporalidade em Faulkner; o absurdismo em Albert Camus, Arrabal, Ionesco e Jean-Genet. Dissertava sobre a narrativa de Hemingway e Machado de Assis. Falava horas e horas do ciclo da cana de açúcar em José Lins do Rego e do ciclo do cacau de Jorge Amado. Os amigos varavam a noite discutindo, mas quem mais se encantava com os conhecimentos de Francisco era Maria. Às vezes João ia dormir e deixava os dois em uma longa jornada noite adentro.
    Não era exibição, faziam isso por prazer, pois amavam a literatura. Diziam que ela descortina o mundo, oferecendo uma larga visão, ampliando horizontes. Nessas horas os filósofos Epicuro, Sócrates, Platão, Hegel, Marx, Descartes, Hurssel, Zenão, Heráclito, Carl Jasper faziam parte do cardápio metafísico. Música e cinema também eram debatidos, para variar de assunto. Até que um dia, Francisco desapareceu...
     João estava distraído, regando a pequena horta; Maria plantava umas mudas de crisântemo, enquanto o filho brincava com um carrinho de madeira, em longas viagens imaginárias.
    Sentido-se observado, João ergueu a cabeça e vislumbrou um vulto. Um homem barbudo estava parado perto deles, provavelmente a um bom tempo. O estranho homem barbudo olhava com olhos de ternura o casal e o filho, com um leve sorriso nos lábios. Maria e a criança perceberam a cena. Ficaram estáticos durante alguns segundos. Reconheceram o velho amigo Francisco. Abraçaram-se e choraram de emoção. Maria, porém, estava séria, embora feliz. Francisco entendeu que o garoto era filho de João e Maria. Abraçou-o dizendo que agora tinham um novo companheiro para os debates ontológicos.
    Conduziram o amigo para dentro de casa e após o banho, serviram uma farta refeição, regada a um bom vinho, enquanto colocavam os acontecimentos em dia. Queriam saber de tudo. Não esqueceram de falar de literatura e da nova safra de escritores, embora sem o entusiasmo de antes. Contaram que deram nome de Francisco ao filho, em homenagem a ele.
    Foi então que Francisco anunciou ter vindo somente para se despedir em definitivo. Iria morar no continente africano.
      Fizeram questão de conduzi-lo ao aeroporto, onde se despediram.
    João e Maria permaneceram em silêncio ao retornarem, e assim permaneceram naquela noite, como se fora estabelecido um acordo tácito. Talvez ambos tivessem o mesmo pensamento: o amigo jamais saberia que aquela criança era seu filho.



Imagem: JEF - Casa de Bichinho-MG


Este conto está em meu livro Crônica do Amor Virtual e Outros Encontros - Editora Protexto.

8 comentários:

  1. Ual! Que final, por isso Maria ficou quando viu francisco. Belo conto.

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  2. Conto genial de um mestre que conduz o leitor pelo seu pensamento. Contudo, já imaginava no meio de seu conto que o Francisco fosse filho do amigo e não do marido de Maria. Mas deixa isso para lá. O importante é a genialidade de sua narrativa, simples e direta...Um abraço

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  3. Já leio seus contos na expectativa da surpresa final. Fico o tempo todo tentando adivinhar. Depois das noites varadas, intui que o Francisco era filho do Francisco. Parabéns, mais uma vez. Fantástico. Sebastião Verly

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