sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Crônica do Amor Virtual 2


Matusalém decidiu não ficar mais aquém das novidades tecnológicas. Jurou passar por uma transformação radical, tendo como testemunha a própria imagem refletida no espelho do banheiro. Sorriu satisfeito, mandou beijinhos à imagem. Sentiu um breve desconforto, pois teve a impressão de que o Matusalém do espelho esboçou um gesto negativo. Na dúvida mandou novo beijo. Ao ser retribuído sentiu-se aliviado.
     Queria arrancar o rótulo de antissocial, que os colegas de repartição pregaram em sua testa e que machucava o seu coração sensível.
     Aspirava adquirir confiança por meio da internet, onde poderia se proteger por pseudônimos e fotos disfarçadas, conforme ouvira inúmeras vezes relatos de alguns colegas. Com amigas virtuais, quem sabe superaria a timidez. Quiçá encontraria um grande amor.
     Devagar Matusalém, devagar, pois nesse angu tem caroço, alertava seu demônio interior.
     Se não fosse tão tímido teria enxergado Cordélia, colega de repartição, mulata de pernas grossas, bunda arrebitada. A mulata tinha este  nome por ser filha de um autor de literatura de cordel. Jogava as tranças para o songamonga, cruzava e descruzava as pernas, acariciava com os dedos os cabelos longos e lançava olhares de peixe-morto ao distraído burocrata.
     Foi a ousada mulata quem o aconselhou a consultar uma psicóloga, "Matusa, o que há com você? A gente trabalha junto a mais de três anos e continua monossilábico, tem algo de errado nisto"! Cabisbaixo respondeu um "não obrigado" com voz inaudível.
     "O que foi que disse, Matusinho?", perguntou Cordélia, inclinando-se ligeiramente, deixando à mostra o colo esplêndido. "Nada, não disse nada", respondeu Matusalém, desta vez quase aos gritos, atrapalhado em meio a papéis, calculadora e carimbos. "Despudorada", disse ao seus botões.
     Pouquíssimas pessoas sabiam que Matusalém morava e cuidava praticamente sozinho da mãe asmática. Dona Emengarda, vizinha e velha amiga da família, era a rara companhia de sua querida mãe, quando ele ia trabalhar. Em acordo tácito, dava a ela uma polpuda grana todo mês e ela vinha com a mesma latomia "que é isto Matusalém, faço isso pela amizade, não precisa". Mas precisava.
     Certo dia, ao retornar do trabalho encontrou-a, como sempre, sentada em sua cadeira de balanço, localizada na varanda, em frente ao belo jardim que Matusalém trazia sempre bonito. Agradeceu e liberou a vizinha após beijar a mãe na testa. Em seguida foi tomar seu banho. Ao retornar, para conversar um pouco com ela, encontrou-a dormindo. Admirou o jardim, aproveitou para fazer umas podas nas roseiras, arrancou mato com as mãos e refletiu um pouco sobre as mudanças planejadas. Voltou a sentar-se ao lado da mãe. Achou estranho o silêncio. Percebeu que ela não respirava.
     É isto mesmo, Dona Armênia faleceu e para espanto geral, Matusalém reagiu serenamente. Como de praxe, chorou, colocou óculos escuros no dia do enterro e cumpriu as exigências do luto, mas quando alguém o consolava, dizia "é a vida, a gente nasce, cresce, fica velho e morre, amanhã serei eu, você, todos nós". 
     Agora morava inteiramente sozinho em um casa ampla, da qual era o único herdeiro. Carro do ano na garagem, bom salário, solteirão, Matusalém era o que chama de bom partido. Choveria candidatas em sua horta, não fosse tão ensimesmado.
     Mas isto mudaria.
     Em tempos de dvd's continuava com o arcaico vídeo-cassete. Peça de adorno brega, pois não existiam mais fitas vhs's. Sentiu um aperto no peito ao mandar tudo para a reciclagem: vídeo-cassete, fitas cassetes (uma montanha), a velha vitrola e os novecentos e cinquenta e sete  discos de vinil. Nelson Gonçalves uma raridade, Altemar Dutra, Djavan, Maria Bethânia, Paralamas do Sucesso, Elis Regina, Paulinho da Viola... todos os vinis do Rei. Acariciou Zizi Possi, verteu algumas lágrimas para Chico Buarque e Gil. Beijou Nana Cayme, The Beatles, Bee Gees. Fora com tudo! Compraria cd's, devd's, pen-driwes. Fora, vida nova Matusalém!
     Porém precisava reestruturar-se. Comprou tv de plasma. Cinquenta e duas polegadas, tela finíssima, home teacher, dvd, celular com acesso à internet banda larga e, lógico, computador completaço, última geração. Uma potência. Net velocíssima. Mas havia um problema: Não sabia operar a parafernália eletrônica.
     Depois de seis meses de curso intensivo, dominou a máquina, conhecia os aplicativos. Matusalém fazia jus ao nome. Queria ir além. E foi.
     Inscreveu-se em sites de namoro, entrou na rede: Orkut; Facebook, MSN, os cambau. Gostou do pseudônimo: Sol Tímido. Quentíssimo, porém tímido. Louras, negras, galegas, baianas, mineiras, paulistas, adicionou todas até o dia em que conheceu Lua Solitária. Trocaram mensagens, bateram muito papo; conversavam até o dia clarear, pela cam. Abriram os corações, ganharam confiança e revelaram suas verdadeiras identidades. Foi amor à primeira visão virtual. E se encontraram pessoalmente.
     Matusalém Abdoo, chefe de repartição, 46 anos. Ignez Maria, perfil balzaquiana, do lar...Idade? Nem sob tortura. Sol Tímido e Lua Solitária. Encaixe perfeito.
     Depois de um namoro fugaz decidiram se casar. Compraram um par de alianças e-nor-mes.
Sessenta dias, tempo do fluxograma de papeis correrem cartórios...
     Quando Ignez atirou o buquê de flores, foi Cordélia quem o agarrou com mãos firmes. Os colegas de repartição compareceram ao casamento e à recepção.
     Matusalém e Ignez estão felizes. Fazem planos de ter um filho, ou filha, o que vier será bem-vindo. 
     Se ficarão juntos e felizes para sempre só o tempo dirá.



J Estanislau Filho - do livro Crônica do Amor Virtual e Outros Encontros. à venda na Editora Protexto: www.protexto.com.br 

8 comentários:

  1. Que texto maravilhoso e envolvente, Estanislau. Parabéns! beijos ternos,

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  2. Obrigado pela presença, ótima presença SanCardoso. Seja bem-vinda. Beijos.

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  3. Escreves com uma graciosidade impecável, o que passa total veracidade da crônica, gostoso de se ler e bom de acontecer... Parabéns Estanislau*****, beijos da Luiza Mchel

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  4. Gosto do seu jeito gostoso, solto de escrever. Entro no enredo. Linda crônica. Sinais dis tempos. Existe alguns finais felizes pela telinha. Abraço da Olynda

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  5. Sempre gostei de crônicas, mas essa sua, a maneira de relatar os fatos, prende o leitor. Parabéns Poeta. Um abraço

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